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Paulo Sampaio

A história da manicure suspeita por engano de participar do sequestro de Patrícia Abravanel

Paulo Sampaio

29/06/2017 08h00

A manicure Josiene Santos Batista, 42, sonha em ter sua história contada em um livro. Por causa de uma arma registrada no nome dela, Josiene se tornou suspeita "por engano" de participar do sequestro da filha de Silvio Santos, Patrícia Abravanel, em agosto de 2001.

Josiene Santos Batista: "Minha história vale um livro". (Foto: Arquivo Pessoal/Divulgação)

A história começa no início da década de 1990, quando ela ainda era menor de idade e passou a tomar conta de uma lanchonete arrendada por seu marido, Gilvan Santa Rita, hoje com 46 anos, em um clube esportivo no Grajaú, zona sul de São Paulo. Como Gilvan trabalhava nos Correios, ele achou melhor ter uma arma para a proteção da mulher, que ficava sozinha no balcão.  "Comprei um revólver 38 com cano refrigerado longo (Taurus) para que ela pudesse se defender, e registrei a arma no nome dela", conta ele.

Grade reforçada

Um tempo mais tarde, em junho de 1995, Josiene e o marido foram presos por participar de "vários assaltos em um comércio num dia só". "Nós inventamos o arrastão", diz Gilvan, rindo. "Mas hoje estou aposentado." Levada para o 25º Distrito Policial, em Parelheiros, Josiene teve a arma apreendida. Dez meses depois, em abril de 1996, ela pulou o muro da cadeia e se "evadiu". "Eu e duas colegas serramos a grade reforçada que ficava no alto e pulamos. Quando caí do outro lado, quebrei os dois pés. A dor não foi maior porque a adrenalina era muito grande." Ela lembra que, enquanto rastejava pelo mato, ouvia os cães farejadores da polícia atrás delas. "Até que nós vimos um caminhão e imploramos ao motorista que nos desse carona.  Como estávamos muito sujas, descabeladas, dissemos que tínhamos sido assaltadas. Ele nos deixou na esquina da delegacia, imagina. A gente ali, pertinho dos policiais. Mas conseguimos escapar."

Josiene nunca mais foi capturada. Tornou-se foragida, sem residência fixa. Morou em Caraguatatuba, no litoral de SP, em São Mateus, na zona leste, nos Remédios, na zona oeste… ela e o marido viviam de bicos e trabalhos temporários que não careciam de carteira assinada. "Graças a Deus estou há 28 anos com essa pretinha, mas nunca tivemos filhos." Gilvan explica que, como Josiene era menor de 21 anos na época do "arrastão", o prazo para a prescrição da pena foi reduzido à metade — mas como ela fugiu, ainda restam pendengas judiciais para resolver.  Ele próprio passou um ano e meio no Carandiru. Hoje está desempregado.

Final feliz, em termos

Aos poucos, a manicure retomou a rotina e passou a viver em relativa tranquilidade. Até que em 2001 a filha do empresário Sílvio Santos, Patrícia Abravanel, então com 23 anos, foi sequestrada por um bando de seis pessoas. Passou uma semana refém, tempo em que Silvio Santos negociou pagar R$ 500 mil de resgate. Patrícia deixou o cativeiro dirigindo o próprio carro, um Passat importado blindado. O final até ali foi feliz, mas muito ainda estava por vir. Era preciso capturar os sequestradores.

Policiais do 91º DP descobriram que o mentor do bando, Fernando Dutra Pinto, estava escondido no flat L'Etoile Residence Service, em Barueri, região metropolitana de São Paulo. Cercado, Dutra conseguiu fugir pela parede externa do flat, após travar um tiroteio com a polícia que deixou dois dos três investigadores que participaram da ação mortos. Marcos Amorim Bezerra recebeu quatro tiros nas costas e um na cabeça;  Paulo Tamotsu Tamaki foi alvejado sete vezes, também por trás. O terceiro investigador, Reginaldo Guatura Nardis, levou um tiro, mas sobreviveu. Abandonou o Taurus que portava no flat. A arma era, justamente, o 38 refrigerado longo de Josiene — com número de série NB906317. Por coincidência, Nardis trabalhava no 25º DP cinco anos antes, quando a manicure foi presa por causa do assalto.

Livro ou filme?

O fato é que revólver de Josiane foi parar nas mãos de Fernando Dutra Pinto. Na manhã seguinte, o sequestrador tomou a direção da casa de Silvio Santos e, depois de se aproximar, cortou o fio de energia da cerca eletrificada, pulou o muro e fez a família do apresentador refém — sempre com o Taurus da manicure. Avisada, em duas horas a polícia cercou a casa e passou a negociar com o sequestrador. O resgate, que teve lances espetaculares e contou com a presença do governador Geraldo Alckmin, vale outro livro — talvez um filme.

Dutra disse que queria um helicóptero e uma médica. Logo a polícia trouxe a médica e a irmã do sequestrador — para convencê-lo a render-se. Um dos primeiros policiais a entrar na casa contou que "Silvio Santos é o mais tranquilo da família". Dutra se rendeu, o governador Geraldo Alckmin e o secretário de segurança Marco Vinicio Petreluzzi entraram na casa e saíram com Silvio Santos. Posaram para fotos.

O espetáculo ainda se prolongou. Patrícia apareceu na varanda da casa, disse à imprensa que passou a semana tranquila, foi bem tratada e que perdoava os sequestradores. Atribuiu o crime ao "sistema de corrupção". "O povo brasileiro é bom e está sendo mal cuidado pelos governantes. Quando você passa fome e vê os filhos dos amigos passando fome, você faz qualquer coisa", disse.

Torres Gêmeas

A arma de Josiane foi apreendida de novo, mas desta vez com grande alarde. A imprensa passou a noticiar que "o grupo de sequestradores pode ter mais uma comparsa". "A casa da minha mulher caiu", diz Gilvan, referindo-se à brutal exposição de Josiene na mídia. "Ela passou a sair nos jornais até como chefe da organização." A manicure lembra que se tornou duplamente foragida. "Agora tinha de me esconder também dos vizinhos, que queriam me denunciar."

Ela conta que a mídia persuadiu até os amigos: "Tinha gente que dizia: 'Vocês entraram numa grana boa, hein?' e pedia dinheiro emprestado, acreditando que nós estávamos ricos", lembra. "Outros, que nos conheciam muito bem e sabiam que a gente não tinha nada a ver com o sequestro, deram entrevista só para aparecer na TV, dizendo: 'Nunca imaginei que eles fossem capazes disso'." Ela e o marido precisaram deixar a casa onde moravam, na zona sul. "Fomos para a zona leste, onde ninguém nos conhecia."

Sem contar Osama Bin Laden e os terroristas da Al-Qaeda, Josiane foi provavelmente a única pessoa que não lamentou o ataque do 11 de setembro em Nova York, nos Estados Unidos: "Os jornais só me deixaram em paz quando as Torres Gêmeas foram atingidas", conta.

Mas houve ainda uma circunstância providencial. A mãe de Josiene trabalhava como diarista na casa do editor de uma revista semanal, que desfez o mal-entendido em uma matéria esclarecedora. "Eu agradeço muito a Deus de ter colocado aquele moço no meu caminho", diz.

Comportamento estranho

Além de Fernando Dutra Pinto e o bando —  incluindo Josiene — , havia mais gente sendo investigada. Suspeitou-se de que os policiais teriam ido ao flat não para prender Dutra, mas para ficar com o dinheiro do resgate. Nos bolsos de Bezerra e Tamaki, os investigadores mortos durante a ação da polícia, foram encontradas cédulas que fariam parte dos R$ 500 mil pagos aos sequestradores por Silvio Santos. O dinheiro compunha uma sequência numerada, para facilitar a posterior identificação.

A corregedoria da Polícia Civil abriu um inquérito para investigar a "operação desastrosa", que deixou Dutra escapar, e também o comportamento considerado estranho do delegado do 91º DP à época, Armando Roberto Bellio, que esteve no flat, levou o que encontrou do dinheiro do resgate (R$ 464 mil), mas não registrou a apreensão — e ainda deixou um pequeno arsenal do sequestrador sobre a cama.  A corregedoria queria entender também porque a delegacia anti-sequestro não foi comunicada de que Dutra estava no flat. O blog tentou saber o resultado do inquérito, mas a assessoria da secretaria de Segurança Pública de SP não retornou até a postagem deste texto.

Tortura e negligência médica

O bando foi capturado, e Fernando Dutra morreu, em 2 de janeiro de 2002, no Centro de Detenção Provisória do Belém, zona leste de São Paulo. Uma ONG de direitos humanos divulgou um relatório que apontava que o sequestrador foi vítima de tortura e negligência médica.

A arma de Josiene teve mais do que 15 minutos de fama. Na hora da rendição, Dutra a entregou nas mãos do governador, sob flashes da imprensa. Nunca mais o casal a recuperou. "Era um treisoitão de respeito. O policial (Nardis) deve ter crescido os olhos mesmo em cima dele", diz Gilvan.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.