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Paulo Sampaio

Ao som de Anitta, torneio gay de futebol reúne 500 entusiastas em São Paulo

Paulo Sampaio

01/08/2017 08h14

As caixas de som emitem as vozes de Anitta e Pablo Vittar no último volume, enquanto eles cantam o hit "Sua Cara" — mas isso não parece atrapalhar a concentração dos jogadores do Futeboys e do Bees Cats Soccer Boys. Os dois times disputam a semifinal em um torneio gay de futebol, promovido por um site de relacionamento. "Sabe no colégio, quando você não é escalado para o time? Aqui, não existe isso. O nosso grupo é formado por gente que gosta de jogar bola e não tem pretensão de ser artilheiro", explica o designer Vinicius Pellegrino, 32, atacante do Futeboys. Há dois anos, ele começou a juntar amigos que compartilhavam o mesmo gosto pelo esporte, para jogar semanalmente. "A gente se encontra todas as quintas, em uma quadra nos Jardins (zona oeste de São Paulo)". Pellegrino afirma que não torce por nenhum time, nem acompanha o campeonato brasileiro: apenas gosta de jogar bola. "Eu não vou chegar em casa, sentar no sofá e discutir o impedimento no gol do Flamengo contra o Botafogo."

Em sua terceira partida, o engenheiro de produção Ruben Baldo, 27, atacante no Bees Cats, conta que sempre gostou de futebol mas parou de jogar aos 13 anos por que sofria bullying. "O ambiente era hostil. Eu era o viadinho que jogava bem", lembra ele, devidamente reconciliado com a atividade em equipe.

Pellegrino (à dir., de bigode) e o time do Futeboys: "padrão futebol-hétero de poses"  (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

A 1a. Taça Hornet de Futebol da Diversidade foi disputada no sábado 29 de julho, no Playball, um clube de locação de quadras na Pompeia, zona oeste de São Paulo. O evento juntou quatro times de três estados; o Futeboys e o Unicorns Futebol Clube, de SP; o Bees Cats, do Rio, e o Capivara Futebol Clube, do Paraná. As regras foram as mesmas do futebol tradicional, porém cada partida tinha a duração de 20 minutos e era disputada por sete jogadores. O torneio foi das 15h às 19h e, segundo os organizadores, atraiu cerca de 500 pessoas. O representante do site de relacionamento Hornet no Brasil, André Fischer, conta que se surpreendeu com a quantidade de times interessados em participar: "Eu já conhecia os meninos do Bees Cats e os do Unicorns Futebol Clube, e eles chamaram o pessoal do Futeboys e do Capivara. Depois que fechamos o evento e postamos na rede, outros oito times LGBT nos procuraram querendo participar. E descobri que existem 22 em todo o Brasil. O Meninos Bons de Bola, de São Paulo, é composto só por homens trans (nomenclatura utilizada em referência a quem nasceu mulher e mudou de gênero)."

Um time, duas quadras

O roteirista André Machado, 37, solteiro, conta que teve a ideia de criar o Bees Cats quando leu uma matéria sobre o Unicorns no jornal. Na ocasião, mandou uma mensagem coletiva para os amigos,  perguntando se alguém estava interessado em jogar futebol. Não tinha muita expectativa: "Achei que não conseguiria gente suficiente para formar um time, mas estava enganado. No primeiro jogo apareceram 18 amigos, no segundo, 30, e hoje são necessárias duas quadras para abrigar todo mundo." O time joga  todas as sextas-feiras, em um clube em Botafogo, na zona sul do Rio. Além de agregar os amigos nos jogos, Machado promove eventos beneficentes com renda revertida para instituições como a Casa Nem (de acolhimento a transexuais); o time Karanba (que usa o futebol para tirar crianças da marginalidade); e a Sociedade União Protetora dos Animais, Suípa.

O nome Bees Cats Soccer Boys demanda um parágrafo só para sua análise etimológica. A partícula  bee, que significa abelha em inglês, é uma forma "fofa" de pronunciar a primeira sílaba do vocábulo biba; que, por sua vez, seria a alternativa infantilizada para a denominação "bicha". Juntando bees, no plural, com cats, de gatos, chega-se à homofonia "biscates"– que dispensa tradução. No subtítulo, os termos soccer (futebol, em inglês) e boys (garotos) compõem uma sequência que soa como "só quer boys".

As preparadas

Ao contrário das torcidas de um jogo de futebol tradicional, onde os adversários chegam ao ponto de se matar, na dos gays tem até beijo de língua. O público compete apenas com as vozes de Anitta, Pablo Vittar, Ivete Sangalo, Banda Beijo e as de toda a trilha elaborada, nesse caso, pelo DJ Ciro Iadocico, 27. Enquanto o Unicorns faz um gol, um grupo de costas para o jogo rebola alegremente ao som dos versos "Só as Cachorras! As preparadas! As Popozudaas, O Baile Todo!", do grupo Bonde do Tigrão. Momentos depois, é a voz de Claudia Leitte que inspira quatro jogadores a executar a dança do caranguejo. Enquanto aguardam a hora de entrar em campo, eles atravessam o espaço reservado para a torcida de ponta a ponta, da direita para a esquerda, ida e volta. O DJ toca músicas que possibilitam "dançar sem limites nem filtro". Muitos reciclam o bullying sofrido na adolescência, devolvendo o que sobrou dele em forma de humor autopejorativo: "Chuta, viado!", gritam. E, em caso de gol: "Arrasa, bicha!"

Três juízes assumiram a arbitragem. Eles explicam que trabalham no clube em regime de escalas e que aconteceu de pegarem o jogo da diversidade. Qual a diferença entre uma partida hétero e uma gay? Lucimeire Figueiredo, 47, afirma que "o respeito entre as equipes, nos jogos gays, é muito maior". Fátima Paula, 30, diz que a competitividade é igual, "mas menos agressiva". Elas acreditam que seria complicado promover algo parecido, só que com lésbicas, porque "é difícil conseguir patrocínio para montar a mesma estrutura". "Você vê, o torneio de hoje ocupou duas quadras, tem DJ e a torcida é grande."  Lucimeire e Fátima Paula dizem que já arbitraram um jogo de mulheres e que, por mais preparo que elas tenham, "os homens exigem mais do juiz". "A gente corre o jogo todo."

A arbitragem ficou a cargo de Fátima Paula, Cristiano Roberto e Lucimeire Figueiredo: "Os gays são menos agressivos" (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Muito bem preparadas fisicamente, as equipes que disputam a taça gay compõem o tipo que os torcedores classificam de "incrível". Mas há divergências quanto à atitude dos atletas: "Eles adotam o padrão-futebol hétero de poses. São gays que querem se identificar com o clichê do macho", acha o produtor Antônio Bernardes, 32.  Para quem não dá importância a esse detalhe, a dificuldade é eleger "o mais gato" no escrete de beldades. Alguém sugere o nome do modelo Gustavo Naspolini, do Futeboys.  Com 1,84m, 79kg e 117 mil seguidores no Instagram, Naspolini conta que é de Florianópolis, tem 28 anos e está solteiro.  Faz um tipo seguro de seus atrativos, econômico nas declarações e disponível quando se trata de posar para fotos. Diz que joga futebol desde criança, colocou a legenda "craque" numa das fotos do aplicativo e afirma que nunca sofreu bullying. "E quem faria bullying com um Deus desses, bicha?", pergunta alguém ali perto.

Gustavo Naspolini, do Futeboys: 117 mil seguidores no Instagram (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

O diretor de arte Bruno Host, 30, que há dois anos fundou o Unicorns, diz que no início investiu apenas na experiência de jogar bola, sem impor aos interessados nenhum compromisso com a habilidade. Desde então, o time cresceu, eles se tornaram uma "frente esportiva" que agrega corrida e treino funcional, e acumularam muitas histórias curiosas. Certa vez, conta Host, o Unicorns jogou contra um time de heterossexuais  e "não deu muito certo". "Eles ficaram tensos, se sentiram obrigados a ganhar porque, na cabeça deles, seria uma vergonha perder para um time de gays. Preferimos, desde então, continuar jogando entre nós." Além do prazer de jogar, a iniciativa de criar o time rendeu a Host dois namorados — ao mesmo tempo. Ele conta com alguma displicência que sim, não é segredo para nenhum deles: "Temos um relacionamento a três", resume.

O médico Juliano Cerci, 37, apenas um namorado (ele aponta do outro lado do campo), é o fundador do Capivaras Futebol Clube, de Curitiba: "Jogamos há um ano, todas as quartas", conta. Ele diz que se recusa a ir a estádio "por causa da forma como eles se tratam na torcida". "O preconceito aflora quando eles se empolgam". diz.

O Bees Cats, em registro para a posteridade; o artilheiro Flávio Amaral, à esquerda do jogador de cabelo descolorido (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Fim do jogo. O Bees Cats saiu vitorioso, muito graças ao artilheiro Flávio Amaral, 26 anos, sete gols, que é jornalista e joga futebol desde os 7 anos. "Trabalhei no Lance e na TV  Globo"', conta ele, que está solteiro há seis anos. Hora de entregar o prêmio: um vaucher no valor de R$ 1 mil, conversível em tratamentos de beleza em uma clínica de estética. "Eu sou ricaa!", grita um dos vencedores, ao posar com o time na foto para a posteridade. "É rolaaa!", bradam vários. Dois zagueiros trocam um beijo profundo na área. Jogadores e torcida seguem para a festa Funfarra, que apoiou o evento.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.