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Paulo Sampaio

Estrela de TV pede comida sem lactose e implica com foto que mostra sutiã

Paulo Sampaio

01/09/2017 08h00

Esse texto é uma ficção baseada em fatos reais; os nomes das pessoas citadas foram trocados para preservar sua identidade

O catering sem nenhum elemento que contenha lactose ou glúten está à disposição da estrela da capa da revista, que nesta edição vai ser mocinha da minissérie das 22h. Vamos chamá-la de "gata". Na copa do estúdio onde se farão as fotos, tem pães feitos com farinha de arroz, queijo branco, suco light e detox, refrigerantes zero, mini-temakis, frutas tropicais (carambola, pitanga e tucumã) e cookies integrais diet.

Pronta para o close up (Foto: Reprodução)

As restrições alimentares foram determinadas pelo assessor dela, Cacá Filipetti*, que aparece no estúdio antes da cliente, pronto para disparar o cartucho de elogios. "A gata é muito rigorosa com essa coisa de saúde. Acorda todo dia às 6, faz 10 minutos de meditação, toma um suco de couve com abacaxi, come uma torrada com  queijo branco, corre com o personal, estuda o texto e vai para a televisão. Grava 14, às vezes 16 horas num dia. Gente, sério, eu não sei como ela dá conta de tudo. Eu não consigo acompanhar o ritmo dela neeem! fodendo. Digo mesmo: 'Vá na frente que eu já tô indo! ahauahauahahHAHAHA. (ao rir, ele abre bem a boca e projeta o queixo para o alto)."

Trabalho é trabalho, vida pessoal é vida pessoal

Repórter: "É verdade que a relação dela com o 'Tito' vai além do profissional?" (chamemos assim o par romântico da atriz minissérie)

Filipetti: "Então, a gata não fala de vida particular. Até queria te dar um toque, ela é muito chata com isso. Qualquer pergunta desse gênero, ela interrompe a entrevista e vai embora."

O maquiador, Teco Palhares*, entra na conversa: "Eu acho que ela tá certa, sabia? Trabalho é trabalho, vida pessoal é vida pessoal. A partir do momento que ela permite que atravessem essa linha, perde toda a privacidade", opina ele, enquanto coloca um estojo grande de maquiagem na bancada do camarim, ao lado de três tipos de escovas.  Caco, que acumula a função de cabeleireiro, veste uma camiseta GG com uma imagem grande de Madonna; calça rasgada nos joelhos; tênis preto com spikes e um relógio quadradão, vistoso, com a pulseira banca. Um dos braços, muito musculoso, é todo tatuado. Usa base terracota no rosto, rímel e lábios "cor de boca". O corte de cabelo valoriza um tufo semi-descolorido que sobe na direção do teto, e isso leva o repórter a se perguntar: "Por que será que os cabeleireiros têm sempre o corte de cabelo mais equivocado?" Em seguida, ocorre uma possível explicação: deve ser pelo pelo mesmo motivo que os comediantes têm sempre o pior humor.

Muita gente envolvida

Repórter (tentando se enturmar): "Você é o maquiador?"

Caco: "Sim, amor, prazer." E na sequência: "Dá licença só um pouquinho, querido, que eu preciso desse espaço", diz, já empurrando o repórter para fora do camarim.

De repente, o jornalista se sente um intruso naquele ambiente. Sua presença parece inteiramente dispensável para o sucesso da capa. Estão no local 11 profissionais: o fotógrafo, seu assistente e um "apoio"; a diretora de arte, a editora de redes sociais e um videomaker (que registra um making off do ensaio); a stylist e uma assistente; Caco e seu assistente;  a manicure.  A pessoa mais importante da produção é o maquiador, de quem a gata depende para deixá-la "maravilhosa"; o stylist vem em segundo lugar: sempre há como valorizar a silhueta malhada da garota da capa; o fotógrafo resolve o resto.

Escapulário em ouro

Um burburinho no hall do estúdio dá conta de que a gata chegou. Recebida pela produção com sorrisos cautelosos, ela tira os óculos grandes Prada e dá uma bufadinha entediada. Assim que avista Teco, muda de humor. "Amoooor! Te deixei mil mensagens no whapp, onde é que você se enfiou?" Teco diz que foi a Miami para maquiar uma cliente que tinha um casamento em Fort Lauderdale (ele projeta ligeiramente a língua para fora, no afã de caprichar na pronúncia). "A-do-ro!", diz a gata; Teco dá um beijo no ombro e arrisca um passo de twerk. "A louca!" Passa a mão nos cabelos compridos da gata, descendo pela lateral atá segurá-los nas pontas. Ela reage com um muxoxo de contrariedade: "Super-ressecado né?" Ele: "Nada que o fofo não possa resolver!" Animada de novo, ela diz que tem uma surpresa para ele e tira da minibolsa Chanel matelassada um escapulário em ouro. "Não acredittooooo!", diz ele, colocando imediatamente a joia no pescoço. "É aquele que a gente viu em Búzios! Sua louca, você comprou!"

Segue-se uma bateria de selfies dos três: ela, ele e o escapulário. "Peraí, vou colocar no 'insta"', diz ele, clicando no celular.

Setenta e cinco looks

A stylist convida a gata para ir até a arara. Tensão. "Pensei nesse look porque puxa para o brilho do seu rosto e, ao mesmo tempo, harmoniza com o verde dos olhos..". E a gata, meio entediada: "Será?" Acaba escolhendo quatro dos 75 looks.

Muito solene, baixando o tom de voz, Cacá Filipetti informa que sua cliente topou dar a entrevista enquanto se maquia. "Que bom, muito obrigado", diz o repórter, procurando parecer obediente. E inicia a conversa: a gata diz que foi convidada para fazer um filme ("não posso adiantar mais que isso, né Cacá?" Ele assente em silêncio); que vai começar a ensaiar um musical "tipo superprodução" ("por enquanto, só dá pra dizer que o papel é grande"); e que está escrevendo um livro infantil: "Esse é o projeto da minha vida. Sempre quis escrever pra crianças. Tô amando esse universo", diz ela, com cara de abelhinha de decoração de bufê infantil.

Pai fofo, mãe hilária

E então, a gata envereda pela relação maravilhosa que sempre teve com os pais, os irmãos, diz que a família é sua base, é para onde ela volta sempre que precisa recarregar a bateria, que todos sempre deram a maior força pra sua carreira: "Meu pai é o meu maior fã. Recorta tudo o que sai de mim na imprensa, curte minhas fotos no 'insta', um fofo. Minha mãe liga pra mim, é hilário, para me contar tudo o que está acontecendo na série. Como se eu fosse uma vizinha que perdeu um capítulo, sabe? Amo."

O repórter pergunta se a gata não sente falta de "alguém". Ela mente. Afirma que está solteira: ao dizer isso, olha distraidamente para as unhas e comenta qualquer sobre cores de esmalte com a manicure. Pergunta a Teco se o blush não está muito forte. De volta à entrevista, ela diz que está com saudade das diabruras de Feijão, seu "dog". "Gente, é a coisa mais fofaaaa do mundooo. Desse tamanhinho", mostra com a mão. Teco desliga o secador por um minuto, e lembra: "E o dia que ele cismou com o bico daquele meu slipper Gucci, lembra? Foi eu sentar na cadeira e cruzar as pernas para ele morder a ponta do sapato e não largar mais. (ligando de novo o secador): Amo."

O assunto muda para a crise no Brasil, a gata fica séria. Diz que "o que os políticos estão fazendo com o povo é nojento, revoltante, uma podridão". Cita o "problema gravíssimo da educação", fala das "filas nos corredores dos hospitais públicos", da "falta de segurança".  Muito emocionada, ela se olha no espelho. Teco diz: "Gata, não pensa nisso que você vai borrar toda a maquiagem." Ela ri e chora ao mesmo tempo, sem conseguir controlar a emoção (nem parar de se olhar no espelho). Uma produtora dá uma fungada e sai pra enxugar os olhos.

O-oh Child

Uma hora depois, já maquiada, a gata entra no look, sobe no salto e caminha para o estúdio. Teco a segue com uma escova na mão, enquanto afasta alguns fios que caem no rosto e espalha as mechas ao redor do pescoço. A referência da imagem é "verão em L.A.". "Tá linda, gata", diz a stylist. "Linda!", diz a editora de arte. "Linda", diz a manicure. "Linda", diz o repórter. O fotógrafo, muito cool, todo de preto com um tênis Adidas vintage, a cumprimenta de igual para igual. Comenta algum detalhe novo no rosto dela. "Você escureceu a sobrancelha?" E ela: "Gente, ninguém tinha visto! Isso é que é um profissional da imagem! Nem o Teco tinha visto!". E Teco: "Então, tá!" Ao fundo, em volume baixo, a voz de Nina Simone canta "O-Oh Child".

Começam os cliques. "Isso é lindo!", diz a stylist. "Maravilhosa!", grita Teco, embevecido. "Fica assim, não mexe!", orienta o fotógrafo, espocando vários flashes. A gata vai ao monitor ver como estão ficando as imagens.  Aprova uma sequência na qual sua boca parece o bico de um pato. "Essas são incríveis", diz. Flora, a produtora, sopra no ouvido do repórter que "todas usam esse truque". Truque? Consiste em levantar os cantos da boca e, ao mesmo tempo, suspender as sobrancelhas, "para conseguir o efeito de um mini-lifting instantâneo".

As esperanças de resgatar a alma que eventualmente habita o corpo da gata se perdem na amplidão do fundo infinito do set. O repórter se sente como uma canoa em frente à onda que virou o Poseidon. Aproveita a troca de look para se despedir. A gata pergunta, enquanto desce do Louboutin: "Deu certo?""Claro", ele responde. E ela: "Se precisar de mais alguma coisa, fala com o Cacá". "Legal! Beijo!" "Beijo, querido."

* * *

Quando a revista chega às bancas, Filipetti liga para reclamar das fotos. Usa o tom de quem anuncia a 3a. Guerra Mundial. Diz que as imagens mostram mais do que deveriam: "Não era para publicar essas em que a fenda lateral do vestido fica muito à mostra. A gente combinou. O sutiã tá aparecendo!"  Cerca de um mês depois, a gata se deixaria fotografar topless, no mar de Saint Tropez, com Filipetti dançando descabelado na proa de um barco. Esses paparazzi!

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.