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Paulo Sampaio

Mais de 30 anos depois de trote violento, ex-aluna trans volta à PUC

Paulo Sampaio

15/09/2017 08h00

 

"Foi aqui, bem aqui, nesse último degrau. Eu dei azar. Estava no lugar errado, na hora errada, e apareceram essas pessoas erradas", lembra a transgênero chinesa Liao Tao Ming, 52 anos, na escadaria que dá acesso ao prédio principal da faculdade de medicina da PUC Sorocaba, no interior de São Paulo. Trinta e três anos depois de sofrer um ataque homofóbico que deixou suas nádegas em carne viva, ela  voltou à faculdade para participar do "I Encontro da Pluralidade e Diversidade — Vem Pensar Sobre a Diferença", promovido esta semana por alunos do Centro Acadêmico Vital Brasil, com o apoio da reitoria.

"A comissão organizadora encontrou uma foto da Ming no facebook de ex-alunos, e foi atrás dela. Vimos que seria uma ótima palestrante para o dia do debate sobre a 'Sexualidade na Atualidade"', conta o vice-presidente do CA, Fábio Euzébio Domingues, 23, que está no segundo ano. Domingues diz que "fazia falta um evento como esse, para abordar temas pouco discutidos na faculdade". "Só esse ano houve três episódios de homofobia em festas", conta.

Na escadaria do prédio principal da faculdade de medicina, onde aconteceu o trote, 33 anos atrás (Foto: Arquivo Pessoal)

O encontro foi dividido em quatro temas, um por dia. Além da sexualidade, discutiram-se os "Desafios da Saúde Pública no Brasil"; a "Qualidade de Vida do Estudante na Área de Saúde"; e "Um Papel Social – A Expressão do Ser Mulher". Na quarta-feira, falaram Ming e a vereadora Fernanda Garcia, do PSOL; o debate teve a mediação da estudante trans de medicina Alice Quadros, da Universidade São Paulo (USP). Cerca de 150 pessoas estavam no auditório, a maioria jovens estudantes de medicina.

A história

Ming havia acabado de ingressar no curso de medicina, em 1984, quando três veteranos do sexto ano a obrigaram a permanecer sentada numa barra de gelo seco até que sua pele sofresse queimaduras de segundo grau. O ataque homofóbico aconteceu por volta das 18h de um dia quente de fevereiro, na escadaria que dá acesso ao prédio principal da instituição. Ming tatuou uma borboleta nas nádegas para esconder as marcas deixadas pelo trote. Alguns anos depois, a borboleta havia sido mimetizada no meio das mais de 100 tatuagens que Ming espalhou pelo tronco, braços, pernas, mãos e pés.

O grão-chanceler da PUC na ocasião, o arcebispo dom Paulo Evaristo Arns, a chamou para conversar. "Ele perguntou se eu queria algum tipo de punição para os três alunos", lembra Ming. "Mas eu tive medo. Naquele tempo, não havia essa patrulha da correção política que existe hoje. As pessoas não corriam o risco de ir presas por desrespeito às opções sexuais dos outros, por racismo ou assédio sexual. E a punição não apagaria o que aconteceu. Além das marcas do trote, eu ainda amargaria a responsabilidade pela expulsão dos estudantes."

Ming abandonou a medicina quando estava fazendo residência em Taipé, capital de Taiwan. Na época, ela saltou da especialização em cirurgia plástica ao mundo esteticamente implacável da moda. A partir do encontro fortuito com um agente de modelos, começou a vender aspirantes brasileiros à carreira no mercado asiático. "Naquele tempo, anos 90, os modelos só pensavam em ir para a Europa e Nova York, no rastro da Gisele [Bündchen]. Eu trabalhava com um pessoal que estava na prateleira, meio esquecido, aguardando uma oportunidade. Levei para China e Japão o [Reynaldo] Gianecchini, a Alinne [Moraes], a Fernanda [Lima], muita gente."

Ensaio fotográfico (Foto: Arquivo Pessoal)

E os autores do trote?

Tanto o sub-reitor da universidade, Fernando Almeida, que apoiou o encontro, quanto os alunos do CA, que o organizaram, não acharam importante chamar os autores do trote para participar do evento. Ninguém soube sequer dizer o nome dos três. Não tiveram curiosidade de verificar se os doutores, hoje na faixa dos 60 anos, haviam superado o preconceito. Apesar de reconhecer que o que aconteceu com Ming "é de natureza desagradável, fora dos parâmetros da sociedade atual" e de "achar importante conversar sobre um assunto de interesse da comunidade", Almeida acredita que o episódio "ficou no passado". "Acho que pode ter ajudado a ele (Ming) a tomar uma decisão em relação à própria sexualidade."

Domingues, do CA, afirma que não era o caso de promover um confronto. "Pensamos no evento como um instrumento de abordagem da diversidade."

Ming contou que o líder do trote sexista apareceu recentemente em um churrasco de ex-alunos onde ela estava: "Depois que me viu, ele logo foi embora." Não deu tempo de saber se o médico continua homofóbico, ou se ficou com vergonha. "Ele era um cara popular na faculdade, grandão, vozeirão, como aqueles jogadores de futebol americano de filme", lembra ela.

Bom bocado e torta de limão

Na juventude, Ming sempre reagiu ao bullying tentando se adequar ao "senso comum". "Eu era fraco, queria ser normal. Até onde eu pude, fiz tudo para parecer homem. Raspava a perna lisa para estimular o crescimento dos pelos, engrossava a voz e fazia esportes rústicos. Minha primeira lipo foi uma ginecomastia, porque tinha peitinho e queria me livrar daquilo (cerca de 20 anos depois, ela colocaria próteses de 500 ml de silicone nos seios)." Antes da palestra, Ming visitou o cirurgião plástico Carlos Alberto Borges, que fez a ginecomastia dela e reduziu seus culotes.

 

Veneza, 2003 (Foto: Arquivo Pessoal)

Acompanhada de um assistente e de uma amiga dos tempos de segundo grau no Colégio Bandeirantes, Ming fez uma espécie de reconhecimento da área nas dependências da faculdade. Subiu as escadarias do prédio principal, mostrou aos amigos a sala da anatomia, o lugar onde ficava o IML. Passou pela cantina, onde um senhor a chamou pelo nome e convidou ela e os amigos para tomar um café. Em seguida, o diretor da faculdade, Godofredo Borges, a recebeu em uma sala "vip" com guloseimas como bolo bom-bocado, torta de limão, sanduíche de metro e refrigerantes. Ela aceitou um sanduíche; não come doces.

O auditório tem o mesmo estilo espartano da faculdade. Piso de cerâmica bege, paredes pintadas de salmão claro, cadeiras com braço lateral. Como fazia um dia de calor intenso em Sorocaba, o ar condicionado estava no máximo.

Educação rígida

Um aluno gay do quarto ano iniciou o evento, contando que antes de sair do armário vivia deprimido, seus dias eram longos e cinzentos e ele dormia chorando. Disse que no meio do ano passado um amigo o ajudou em sua decisão, e que não foi algo simples porque ele pertence a uma família árabe, machista.

Três palestrantes depois, Ming assumiu o microfone. Dentro de um tuxedo Valentino, sandálias altas, maquiagem leve, ela disse que sempre soube que era gay, desde criança, mas não havia condições de dividir isso com a família. "Os tempos eram outros, e em casa meus pais tinham um formato de vida muito rígido", lembrou. Contou histórias de preconceito, como a vez em que foi internada com crise renal e, ao consultar o prontuário no hospital ("precisava embarcar para Nova York em dois dias, queria ver como estavam as taxas do sangue, se ainda tinha infecção") encontrou a designação "paciente transformista". "Bastava 'paciente' e meu nome. Não?" Tempos depois, o internado na UTI foi um amigo que eles insistiam em chamar pelo nome de batismo, Adílson. "Eu tinha dito que ele preferia ser chamado de Paula." Dentro e fora da palestra, os alunos a abordaram com  questões de todos os tipos. Desde curiosidades a respeito da reação das pessoas a ela, na rua, até sobre chances de ingressar no mercado da moda.

 

Durante a palestra (Foto: Arquivo Pessoal)

Ming assumiu definitivamente sua nova identidade há cerca de sete anos. O gatilho foi uma festa à fantasia em que ela foi de vestido, peruca e sapatos altos. Ela disse ao blog que, hoje,  se sente mais visível. "Numa comunidade onde o tamanho do pênis tem um valor enorme, a sexualidade de um oriental é praticamente desconsiderada. Eu não existia. Como mulher, mudei da água para o champanhe." Ao final da palestra, à saída do prédio da faculdade, Ming comentou: "O mundo mudou muito, e a prova disso é eu estar aqui como convidada, falando da minha orientação sexual, tantos anos depois de ser atacada exatamente por causa dela. Mas o ser humano vai ser sempre o mesmo. As bases da civilidade continuam sendo a formação familiar, escolar e política."

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.