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Paulo Sampaio

"Não somos nazistas. Meu avô era baiano e preto", diz 'careca do subúrbio'

Paulo Sampaio

04/12/2017 08h00

Carecas assistem à apresentação da banda Dose Brutal (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Mesmo depois de conversar com o porta-voz do "Carecas do Subúrbio", Raphael Donato, o Doná, 34 anos, é difícil entender a ideologia do grupo formado em 1983. À primeira vista, eles parecem preocupados em mostrar o que não são. "Temos fama de nazistas e facistas, mas não somos nada disso. Não somos violentos, não somos racistas, não somos antissosicais, não gostamos de confusão", diz Doná.

E afinal, o que vocês são?

"Não somos de esquerda nem de direita", diz Alessandra Cassoni, 26, a Polaca, uma das poucas mulheres presentes ao evento Dezembro Oi, que não tem nada a ver com a operadora de celulares. Trata-se de uma festa tradicional do grupo, que no sábado reuniu em um galpão escuro da Avenida Celso Garcia, no Brás, zona leste de São Paulo, cerca de 100 "carecas" de diferentes tribos para confraternizar.

O blog entrevista quase vinte pessoas, e ainda assim tem dúvidas a respeito do motivo da existência do Carecas do Subúrbio. Um agravante é a diferença de idade entre os componentes. Enquanto os fundadores, que são a maioria, têm mais de 50 anos,  o próprio porta-voz estava no berço quando o grupo surgiu. Não parece haver correspondência entre os supostos inconformismos das duas gerações.

Morto por engano

O Dezembro Oi deste ano homenageou o garoto Guilherme Oliveira, o Pateta, de 19 anos, que há dois meses foi assassinado "por engano" em um bar de Artur Alvim, extremo da zona leste.  Os agressores o tomaram como elemento de outra gangue: "Os caras acharam que ele era da White Power. Um dos garotos era negro."

Pateta, à direita, morto por engano (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Apesar de reconhecer que "todos nós (carecas) temos histórias de violência", Doná diz que o grupo só ataca para se defender, ou para lutar por seus ideais. "Existem vários grupos de carecas. Tem a gente, tem os do ABC, tem o White Power…Uns realmente são violentos, mas nós, não. É complexo", diz.

A produção do evento exibe um vídeo com imagens de Pateta. Os carecas estão emocionados. Polaca sobe no palco e fala com a voz embargada. Usa corte de cabelo "chelsea" (rente à cabeça, com franja, descolorido), saia preta, blusa branca, suspensório e coturno. "O Pateta era um careca de verdade! ", diz. "Não tenho muito o que falar, porque nesses momentos a gente não tem o que falar. Mas ele morreu acreditando na nossa família! Um grito de Oi pro Patetaaaaa!" Todos levantam um braço com o punho cerrado: "UUUUUhuuu".

Rebeldes para sempre

Doná explica que, para ser careca, não é necessário ter a cabeça raspada. Tem careca com cabelo. De acordo com o protocolo, o aspirante a careca do subúrbio deve ser apresentado por alguém do grupo, depois passar dois anos mostrando fidelidade aos ideais deles, e só então tem direito a usar o colete com o brasão que os identifica: "O Pateta estava prestes a ser coletado", diz o porta-voz.

Cinco bandas tocam punk rock. No momento, o vocalista da Dose Brutal, Wagnão, dá uns urros ininteligíveis no palco. É possível discernir algo como: "Ô, ô, violência! Mas tudo isso vai acabar quando eu me revoltar…" Como todos os integrantes do grupo têm mais de 50 anos, a prometida revolta parece bastante remota. Ele continua: "Carro bomba!! Carro Bombaaa!" Cerca de 30 carecas pulam a esmo na plateia. É dose.

Pelo que se entende, os carecas são pessoas "sensíveis às injustiças do sistema", e isso explicaria seus modos agressivos, mas no fundo a índole deles é extremamente dócil. "Eles falam em carro bomba para colocar pra fora esse sentimento de raiva. Nossa luta é pelos direitos dos cidadãos em nome de toda população", diz a técnica de seguros Janaína Vaivuckis, 34, devidamente coletada.

Legítima defesa

Gustavo Palito, 29, entra na conversa. Conta de uma "treta" que o grupo teve com os Carecas do ABC: "A gente reagiu, mas foi em legítima defesa. Não íamos correr. Assim como no passado, hoje também existem guerreiros", explica.

Palito morou um tempo na Irlanda e, por isso, se sente mais habilitado a falar do que se trata o autêntico movimento skinhead. Ou do que não se trata o carecas do subúrbio: "Lá eu conheci o verdadeiro movimento careca", diz, em tom professoral. "Tinha o Sharp — Skinhead Against Racial Prejudice — e o Rash — Red Anarquics Skinheads –, de esquerda. Aqui as coisas são um pouco diferentes. Tem os do ABC, os punks, os 'antifas'." Polaca explica que os integrantes do Antifas "não sabem o que querem da vida: são skatistas, molecada que recebe mesada, não tem visão econômica do País, política, não tem o visual do movimento". Ela, ao contrário, está com todas as credenciais em dia.

Doná e Polaca finalmente desembucham. Explicam que os carecas do subúrbio são "centristas","anticomunistas", "nacionalistas". Frequentam manifestações contra o governo corrupto, mas sem radicalismos. "Não vou deixar de tomar Coca-Cola porque é americana. A Coca-Cola movimenta a economia do país!", diz Polaca.

Para testar reações, digo que Hitler era nacionalista. Ela conserta: "Ele era nacional socialista: aí é que está a pegadinha que leva as pessoas a confundirem a gente. Nós só queremos enaltecer a nossa pátria, as coisas que foram feitas aqui."

Homofobia relativa

Abordo a questão da homofobia, sempre associada a carecas. E Palito: "Cara, meu melhor amigo é homossexual. Um dia, a gente estava em um churrasco, ele chegou e disse: 'Preciso te contar uma coisa.' E eu: 'Fala aí'. Quando ele falou, eu disse: 'Pô, mano, isso eu já sabia"'.

Mais uma vez, os velhos carecas parecem distantes dos novos. Carlos Alberto de Mello, 53 anos, o Carlão, que se apresenta como "agente de apoio sócio educativo" ("pode colocar 'segurança') conta com ar de quem vai fazer uma grande revelação que o que aconteceu na praça da República em 2000, quando 30 skinheads mataram a pancadas o adestrador de cães homossexual Edson Neri da Silva, de 35 anos, "não foi bem o que saiu na imprensa". "Eu conhecia gente que estava lá (no grupo dos skinheads)".

Sem nenhuma cerimônia, Carlão vai lembrando: "Os caras (skinheads) só estavam brincando com eles (gays). Disseram: 'Ô bichona!', e os gays reagiram fazendo assim (ele abaixa e vira de costas). Não precisava ter matado os caras (gays)."

Realmente.

Definindo-se como autêntico careca, Carlão vai em frente: "Tenho amigos homossexuais, respeito a  opinião deles, isso existe desde que o mundo é mundo. Agora: eu não pego minha mulher e fico me agarrando com ela na rua. Os homossexuais querem impor o estilo deles."

Carlão emite sua opinião com a singeleza de um ogro que solta um arroto: "A mídia passa uma imagem nossa que não existe. Você viu algum tipo de racismo entre nós? Falam que somos nazistas. Não somos! Aqui tem negro, nordestino…Meu avô era baiano e preto!"

Carlão (à esq.) com o amigo João Gomes (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

 

 

 

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.