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Paulo Sampaio

Repórter se veste de Papai Noel e enfrenta o sol do Saara ao meio-dia

Paulo Sampaio

24/12/2017 11h00

"Esse Papai Noel tá muito light! Magro demais, fraquinho! Não convence não, amigo!", diz o locutor Josimar Mendes, 27, que na antevéspera do Natal bate palmas e grita as ofertas do dia na porta de uma loja de brinquedos na Rua da Alfândega, no centro do Rio. A região é conhecida como Saara, sigla para Sociedade dos Amigos das Adjacências da Rua da Alfândega, uma alusão também à origem árabe da maioria dos comerciantes que se instalaram ali desde o começo do século passado.

Por volta do meio dia, o sol a pino e a temperatura próxima dos 40, Papai Noel se sentia bem mais fraquinho do que Mendes poderia supor. Talvez mais do que se estivesse no próprio deserto, já que na versão carioca do Saara foi preciso enfrentar o acachapante vapor produzido pelos 80% de umidade relativa do ar. Dentro da indumentária de cetim vermelho, enchimento na barriga, bota, barba espessa e gorro com pompom, o bom velhinho sobreviveu a uma espécie de sauna natalina.

Papai Noel, como se sabe, é uma figura folclórica originária do Hemisfério Norte, onde as temperaturas no Natal frequentemente caem abaixo de zero. Aqui, o dress code deveria ser outro.

Enfim, a experiência foi bastante calorosa — em todos os sentidos.

A anfitriã

A acolhedora Ethel Nigri, que é judia e não festeja o Natal, mesmo assim empenhou-se incansavelmente com os lojistas da região para providenciar o traje de Papai Noel e ainda me deixou vesti-lo no segundo andar do sobrado onde funciona seu comércio, na Rua da Alfândega. O pai de Ethel foi um dos mais antigos comerciantes da região. "Eu nasci aqui", diz ela, para dimensionar sua relação de afeto com o Saara.

Enquanto eu vestia a roupa, ela tomou a providencial iniciativa de ligar o ar condicionado. A fotógrafa Bruna Prado pedia para eu colocar a bata devagar, eventualmente tirar e recolocar. Não por sadismo, claro, mas porque queria traduzir nas imagens o calor do momento. Examinando o cenário e o resultado produzido, dá pra afirmar com segurança que Bruna é uma artista.

Eu e ela caminhamos por mais de uma hora pela região, a esmo. A fotógrafa manteve uma certa distância, para não deixar claro que aquilo era uma experiência jornalística. Fui abordado por crianças afetuosas, e rejeitado por tímidas ou rabugentas, com as quais, confesso, me identifiquei. Na infância, sempre fui refratário à aproximação de adultos fantasiados.

Encanto de civilidade

O Saara revelou-se uma excelente escolha. Talvez pelo fato de ser uma região popular, não houve  nenhum caso de criança que se sentisse dona do Papai Noel. Ninguém abriu o berreiro por não ter atenção exclusiva. Também não se registrou ocorrência de fofos querendo enfiar o dedo no olho do bom velhinho, ou jogar seu gorro longe.

Mesmo as que tinham muita vontade de posar para foto davam um jeito de conseguir numa boa. A ponto de Papai Noel se pegar emocionado, com crianças no colo e penduradas em seu pescoço.

Guilherme Gustavo, Isabele e Ana Sophie amolecem o coração calejado do bom velhinho (Foto: Bruna Prado/UOL)

Dez a zero

A dada altura, apareceu outro Papai Noel, que, claro, dava de dez no meu. Luciano Costa, 43, 1,73m, 102kg, contou que há 20 anos veste o personagem natalino "por amor". Faz hoho, toca uma sineta e posa para fotos, sem ganhar um tostão. Diz que as pessoas se aproximam para pedir de tudo: casa própria, marido de volta, um amor eterno. "Aparece muita gente com o emocional baixo", avalia. Pai de uma filha de 16, Costa diz que foi uma criança "muito doentinha", e esse seria um dos motivos pelos quais se sente feliz "distribuindo carinho".

Luciano Costa, 43, 1,74, 102kg, se veste de Papai Noel "por amor" há 20 anos (Foto: Bruna Prado/UOL)

Além do locutor Josimar Mendes, muitos adultos se aproximaram. Mulheres especialmente. Numa loja de enfeites natalinos, um grupo me fez tirar barba e gorro, para ver a cara por trás do personagem. A propósito, durante o populoso trajeto houve quem se aproveitasse da confusão para aplicar passadas de mão boba tanto na vanguarda quanto na retaguarda de Papai Noel.

Selfie com Ana Paula da Silva, Janyelle Pereira e Ana Caroline Custódio (Foto: Bruna Prado/UOL)

Maquiagem antitranspirante

Em uma esquina da Avenida Passos, o ator Maximilian Ribeiro, 37 anos, posa de estátua. Prateado dos pés à cabeça, o boné inclusive, ele paralisa os dois braços flexionados e gira ligeiramente o pescoço. Os dois Papais Noéis dão uma parada para interagir. Há cinco anos posando de estátua diariamente na mesma região, Ribeiro diz que é autônomo e ganha uma média de R$ 150 por dia. Não há nenhuma gota de suor em seu rosto.  "A maquiagem segura", ensina ele, enquanto oferece florezinhas estilizadas.

Com o Papai Noel autêntico e o ator Maximiliam Ribeiro, que faz homem-estátua há mais de cinco anos na região, diariamente (Foto: Bruna Prado/UOL)

Pelas tantas, o cinto do Papai Noel dá uma afrouxada, e a barriga arranjada com um precário embrulho de tecido mole começa a desabar, o que o obriga a juntar os joelhos quando anda. A essa altura, ele já engoliu pedaços de barba, o bigode entortou e o gorro quase cobre o olho. Algumas crianças franzem o cenho, com expressão de medo. Outras não estão nem aí, e abraçam o bom velhinho desabado mesmo. Um terceiro grupo chega perto porque a mãe mandou, para fazer foto.

Papai Noel próximo da desintegração (Foto Bruna Prado/UOL)

E então já são quase 13h, e a experiência está se esgotando — ou esgotando Papai Noel. Voltamos para a loja de Ethel. Ela nos orienta a ir à vizinha Festas 234 para devolver a fantasia à dona, Nagela Dabdab, que gentilmente vestiu o personagem. Como estamos no Saara, sugiro a Bruna experimentar pelo menos um quibe. Nossos amigos recomendam o restaurante El Gebal, do presidente do polo, Toni Haddad. Ali eu como bem mais do que o que pretendia. Esfihas, manaish com zattar, mate da casa, doces de tâmara e nozes com mel. Josimar Mendes com certeza não reconheceria o Papai Noel light do começo do post.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.