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Paulo Sampaio

"Produzi o 1º filme com travesti 'fazendo ativo'", diz empresário do sexo

Paulo Sampaio

20/02/2018 05h00

Um dos maiores orgulhos do veterano empresário da indústria pornô Marcos Magri, 53 anos, é ter produzido no fim da década de 1980 "o primeiro filme de travesti 'fazendo ativo"'.  Ele explica que quem "faz ativo" em uma relação sexual é "o que come".  Para Magri, que sempre esteve à frente do seu tempo, o filme rompeu fronteiras. "Até ali, o que se esperava de um travesti era que ele fizesse passivo."

O cenário do longa era o bucólico sítio de seu sócio, Juan Bajon, em Campinas, interior de São Paulo. O elenco se compunha de seis atores, três travestis e três homens cis (assim chamados na nomenclatura moderna; na linguagem de Magri, os macho).

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Alteração no roteiro

Recrutadas por anúncios de jornal, as três duplas foram submetidas a testes para saber se havia "química" entre os pares. A princípio, houve. Porém, quando os seis chegaram ao sítio, o que era fogo se apagou. "Os caras não conseguiam ficar excitados. Eu disse que ia dar uma noite para eles se acertarem na cama, e que, se os homens não conseguissem, iam ter de fazer passivo", conta o empresário. Assim, por motivo de força maior, o roteiro foi alterado. "Você acredita que no outro dia, quando eles viram que não ia rolar, deram pros traveco numa boa?"

O produtor diz que compreende a "psicologia da coisa": "Na cabeça dos caras, eles estavam transando com mulheres. O diferencial era uma 'vírgula'."

O título em inglês do filme possui um fundamento linguístico só comparável aos versos do hit Conga la Conga, de Gretchen: "Brazilian in The Boys". Houve uma parte 2,  que na verdade era um restolho da 1. "A gente juntou com outros filmes, fez a chamada 'compilation'. Nem precisava pagar direito autoral porque o texto era só 'oh', 'ah', 'uh'.."

Marcos Magri: distribuidor, exibidor e produtor de filmes eróticos (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Boca do Lixo

Marcos Magri fala do vanguardismo da obra com a propriedade de um empresário que aos 20 anos já ganhava muito dinheiro na indústria do sexo.  O começo foi aos 10, como office boy na distribuidora de filmes "convencionais" do pai, que ficava na Rua do Triunfo, em plena Boca do Lixo — área nas proximidades da Estação da Luz, região central de São Paulo, mais conhecida hoje por abrigar a Cracolândia. "Tudo de cinema na época se concentrava ali, perto da estação ferroviária e da antiga rodoviária, por causa da logística de distribuição. Os filmes eram feitos em negativo e despachados para todos os lugares em latas", lembra Magri, que transportou, ele mesmo, muitos rolos para o embarque.

Na ocasião, segundo conta, independentemente da situação financeira da família, muitos pais orientavam os filhos a trabalhar cedo: "Era comum o cara ser office boy, depois passar a contínuo de banco e mais tarde a funcionário", conta ele, que, contudo, seguiu outro roteiro.

X-Rated

Aos 22, como sócio do pai, ele foi a Los Angeles para comprar títulos comerciais como "Máquina Mortífera 2", "Robocop " e "Dirty Dancing". "Um filme de sucesso custava 250 mil dólares, disponibilizado apenas para cinema, em 35 mm. Nada de vídeo nem TV", lembra.

Eis que um amigo que estava em LA o chamou para ir a Santa Monica visitar uma feira de filmes para adultos ligada à revista AVN (Adult Video News), que promove até hoje o "Oscar do Pornô": "Eu disse que não ia, que não tinha tesão naquilo, mas ele insistiu ('Vamos, pra gente sacanear'), e eu acabei indo."

Lá chegando, Magri ficou extasiado com o aparato montado para a feira: "Era um hotel inteiro, todas as suítes, ocupado por produtoras de filmes eróticos. Eu nunca tinha visto nada parecido, era anormal, assustador. Até então, eu não fazia ideia de que aquele mercado era tão aquecido nos Estados Unidos. No Brasil, havia só uma importadora de filmes X-Rated", lembra ele, adotando a terminologia usada pelos americanos.

Contêiner pornô

No segundo estande da feira, ele já estava indagando quanto teria de desembolsar pelos direitos de exibição dos filmes: "Só dois mil dólares", lembra. "Imagine! E podendo explorar não só no cinema (35 mm), mas na TV e em vídeo." A máquina registradora na mente de Magri deu várias cambalhotas. Ele vislumbrou muitas possibilidades de negócios e, assim, ligou imediatamente para o Brasil para participar sua intenção de comprar alguns títulos. "Meu pai disse: 'De jeito nenhum!', a gente brigou, mas eu comprei. Como o ano tem 52 semanas, calculei dois filmes para exibir em cada uma; escolhi 104. Ao todo, um contêiner de 208 mil dólares. Só que o sucesso foi tão grande que cada filme ficava no mínimo quatro semanas em cartaz. Então, o lote rendeu muito mais que um ano."

Magri conta que chegou de volta ao Brasil em uma quarta-feira: "Na segunda seguinte, um exibidor pagou três mil dólares só por um filme. E meu pai, que era um judeu búlgaro (Benador), virou meu amigo de novo", diz ele, rindo muito.

Anal, oral, lesbianismo

Em pouco tempo, o ex office boy estava riquíssimo.  "Vendi filme para todos os cinemas lançadores de títulos eróticos no Brasil. Em São Paulo, por exemplo, tinha o Cine Ouro e o Art-Palácio; em Campinas, o Carlos Gomes; no Rio, o cine Vitória; em Recife, o Trianon; em Manaus, o Oscarito. Aí, depois, vinham os de segunda linha. Cairo, América…o Áurea foi o primeiro a apresentar show de strip-tease feminino no intervalo das sessões."

Agora, Marcos Magri  fazia viagens cada vez mais frequentes aos EUA. "Os filmes mais valorizados eram os que tinham anal, oral e lesbianismo", lembra. Com o tempo, passaram a enviar os folders dos filmes por fax, para ele escolher os títulos. Pelas tantas, Magri acordou com os donos dos cinemas que ficaria com 40% da bilheteria. Era um negócio e tanto: "O Cine Ouro, por exemplo, tinha 850 lugares, abria às 10h e fechava às 23. Milhares de pessoas assistiam aos filmes por semana."

Mas até que os cinemas ficassem realmente lotados, da maneira que o ambicioso Magri queria, ele precisou se empenhar na divulgação: "Fui ao (jornal) 'Notícias Populares' e propus um esquema em que a capa do caderno de variedades seria a foto do cartaz do filme. Toda a capa! Aí, sim, bombou!"

Importador, distribuidor, produtor

Aos 30 anos, ele locou o Cine Cairo, na Rua Formosa, Vale do Anhangabaú, região central de SP, que tinha 1500 metros quadrados, 700 lugares, mais um balcão. Gastou 100 mil dólares nas "adaptações".  A essa altura, ele já tinha passado de distribuidor de filmes convencionais a importador e distribuidor de  eróticos; mais tarde, virou produtor. E negociava também com os distribuidores de vídeo: "Lembre que eu paguei pelo direito de exibição em cinema, vídeo e TV."

Será que não havia choque de interesses entre os exibidores de filmes nos cinemas e os distribuidores de vídeo? "Não, porque os vídeos eram lançados um pouco depois", diz.

Cine Cairo, já sob a administração de Magri (Foto: Francisco Martins)

Na ocasião, um produtor holandês chamado Walder Laurenz o procurou em seu escritório. Disse que o grande mercado na Holanda ("onde tudo pode") era o de filmes com travestis.  Magri então resolveu produzi-los aqui para permutar com Laurenz por pornôs "héteros" feitos lá. Foi então que ele e o sócio introduziram no mercado o revolucionário "Brazilian in the Boys".

Praça de alimentação erótica

Por volta de 1997,  Magri locou outro cinema, o Saci, na avenida São João, centro, que havia sofrido um princípio de incêndio.  Com o mesmo espírito vanguardista de sempre, ele recuperou o espaço e implementou uma espécie de praça de alimentação erótica. "Foi o primeiro do Brasil a ter cabines com sete opções de filmes pornô, e um buraco de uma pra outra (glory hole) para a introdução do pênis e eventual prática de sexo oral. E darkroom, strip-tease de mulheres e sauna a vapor. Funcionava 24 horas, era frequentado por mil pessoas por dia. Custava R$ 3 a entrada, mas na hora do show eram R$ 7."

Cine Saci: praça de alimentação erótica (Fabio Costa)

Sentado no sofá branco da sala meio bagunçada de seu apartamento em Higienópolis, na região central de São Paulo, Marcos Magri fala de suas incursões pela indústria pornô com um entusiasmo de criança. Diz que nunca escondeu de ninguém que "trabalhava com sacanagem". Teve três mulheres e quatro filhos. Dois deles entram na sala. Primeiro uma moça de 30, depois um rapaz de 29. Comento que não se parecem com o pai. Magri diz que só fez o teste de DNA do filho mais novo, de 5, que mora com a mãe no Acre. "Justamente o que eu tinha certeza que era meu", diz, rindo.

Viado, nem pensar

Agora Magri fala com a sobrancelha arqueada, como se estivesse contando a história do Chapeuzinho Vermelho, do dia em que um amigo que ele não sabia que era gay "veio com a ideia de fazer show de strip-tease masculino no Saci". Ele conta que reagiu mal. Disse: "Eu não quero essa porra, trabalhar com viado nem pensar!"

Com uma autenticidade muito típica, Marcos Magri mostra como a indústria do sexo o fez "evoluir": "Até ali eu pensava que o viado ia me agarrar, me atacar. Mas aí eu vi que nem todo homossexual tem de ser desmunhecado.  No ato sexual, na cama, tudo bem…"

Ele reconhece que o tal amigo teve uma "sacada" que o levou a ganhar mais dinheiro ainda. "Além de tudo, as mulheres (strippers) já estavam me enchendo o saco.  Uma hora chegavam atrasadas, outra hora estavam 'de chico', outra isso, outra aquilo.."

Só transo de olho aberto

Usando toda a sua expertise no chamado "mercado rosa", ele depois foi sócio por um curto período da mais antiga casa noturna gay de São Paulo, a Nostromondo, e abriu outras duas no largo do Arouche; ainda teve uma sauna gay em Santa Cecília, tudo na região central de SP. Embora afirme que jamais tenha sequer experiementado uma relação com outro homem ("Não tenho nada contra, deixo que me abracem, me beijem no rosto, numa boa"), ele dá grandes lições sobre o tema.

  1. No cinema, eu descobri que não existe casa específica para gay. Existe para quem gosta de sexo. Todo mundo se tocava no escuro;
  2. A verdade é que gay não quer gay, quer hétero. 80% deles preferem "dar" (fazer passivo). Eu cheguei até a achar que viado era uma raça em extinção, porque pensa bem: quem ia comer, se todos querem dar?
  3. O cara que sai com travesti quer ser possuído; ele só não pega um homem (cis) porque precisa acreditar que não é tão homossexual assim.
  4. Um homem que se sujeita a ser tocado por outro, mesmo que seja por dinheiro, é porque tem atração; hétero que é hétero não vai "levantar" para outro homem;
  5. O Leo Áquila (drag queen) uma vez me perguntou: "Se fizerem sexo oral em você de olhos fechados, você vai saber se é uma mulher ou um gay?" Eu disse: "Só transo de olho aberto."

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Bicha e negão

Por toda a sua história na Boca do Lixo, tudo o que viveu no mercado do sexo, Marcos Magri se sente no direito de chamar homossexual de "viado" e negro de "negão". Detesta a patrulha da correção política. "Os caras perderam o bom senso. No meio gay, se você diz: 'Ah vá, bicha!", ninguém vai se sentir agredido; a mesma coisa com o negro. Eu fui criado no samba-rock, chamava o negro de negão e ele se sentia valorizado. E eu era muito mais próximo, muito mais amigo, do que esses intelectuais de fachada do facebook. Tudo hipócrita!"

Aos poucos, Magri foi se afastando do negócio das casas noturnas. "Algumas passaram por desapropriação, em outras tive problemas com sócios. Cansei", diz. Sua última casa foi a Freedom, na esquina das ruas Vitória e Vieira de Carvalho, no centro, que ele passou adiante há cerca de dez anos.

Hoje, dedica-se a uma ONG de artes marciais que agrega 250 atletas de todas as faixas etárias, a partir de 5 anos, oriundos da população carente. "Uso meu conhecimento filosófico e espiritual", diz ele, que é faixa preta em judô (marcos.benador). "Ensino coordenação, disciplina e, com a experiência que eu tenho na noite, oriento os jovens a evitar o que não é legal." E assim, Marcos Magri se tornou mais um caso típico de reinvenção e resiliência — para usar duas palavras em voga.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.