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Paulo Sampaio

Campeã mundial do jejum, gaúcha tornou-se imortal após 83 dias sem comer

Paulo Sampaio

30/06/2018 04h00

Depois de ouvir a história da faquiresa Sandra, fica difícil se comover com os relatos de mulheres que dizem passar fome em spas cinco estrelas ou em dietas à base de polenguinhos e barrinhas de cereais prescritas por nutricionistas. Campeã mundial do jejum, Sandra chegou a ficar 83 dias sem comer. Em si, o dado já provoca tontura. Mas não termina aí. Ela passava todo o tempo deitada em uma cama de pregos, na companhia de uma cobra jiboia, dentro de uma urna de cristal exposta à visitação pública.

"Era um acontecimento na cidade, as filas para vê-la davam voltas", contam o historiador Alberto Oliveira e o artista plástico Alberto Camarero, autores do livro "Cravo na Carne, Fama e Fome", sobre a vida de onze estrelas do faquirismo.  Na ocasião, as empresas disputavam a tapa o patrocínio desses eventos; as lojas de roupas brigavam para fornecer o figurino, os restaurantes se dispunham a oferecer a primeira refeição depois que a diva saía da urna, e as gravadoras mandavam discos para tocar durante o evento.

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Até Brizola ia

Na verdade, dizem eles, o feminino da palavra faquir não existia até o estouro da modalidade entre as mulheres, na década de 1920. Para dar uma dimensão desses eventos, Oliveira conta que "as pessoas mais importantes da cidade tinham, cada uma, a chave de um dos cerca de trinta cadeados que trancavam a urna". "O prefeito, o delegado, o padre, os maiores empresários, alguns jornalistas."

Segundo Camarero, o ex-prefeito de Porto Alegre e governador do Rio Grande do Sul (mais tarde do Rio), Leonel Brizola, era um visitante contumaz das urnas de Sandra. Apesar do assédio dos homens mais ilustres da época, a vida amorosa de Sandra se resumia a uma relação furtiva com um jogador de futebol, que sumiu no mundo depois de engravidá-la da única filha, Tanara. Isso foi antes de ela ficar famosa..

Sandra em quatro momentos: entrando na urna; em jejum avançado; desfalescente, à saída; e recuperando-se no hospital (Fotos: Arquivo Pessoal)

Bilheteira de circo

Maria Nunes dos Santos nasceu em 1930, pobre, na cidade de Três Forquilhas, interior do Rio Grande do Sul. Com seis anos de idade, foi enviada à capital para morar com uma família que, acreditava-se, a criaria. Na verdade, fez dela sua criada, como conta a professora universitária Andrea Athaydes, 49, filha de Tanara. Aos 19, diz Andréa, depois de passar muita vontade de comer pratos reservados apenas aos patrões, sua avó resolveu testar sua capacidade de ignorar completamente a fome.

A ideia lhe ocorreu quando conseguiu trabalho na bilheteria de um circo itinerante, onde o lendário faquir Silki se apresentava em um número. Desde o início, era a atração que mais a intrigava. "Todo dia, na hora do almoço, ela ia visitar a urna do Silki", conta Andrea. Até que o empresário dele perguntou o que ela queria lá. Maria mentiu: "É que eu também sou faquir."

Síncope em dez dias

O circo vislumbrou na disposição da jovem uma oportunidade de faturar muito. "Eles pensaram: 'Se com homem, o número do faquir dá dinheiro, imagine com mulher"', conta Andrea. Então, a desafiaram a passar por uma prova para ver quanto tempo ela aguentava em jejum. Desta primeira vez, Maria foi enclausurada discretamente em uma urna no interior do estado, em Rio Grande. Em dez dias, sucumbiu a uma "síncope".

Ao contrário do que se imaginava, o fracasso daquela primeira empreitada só fez aumentar na aspirante a faquiresa o apetite pela superação. Teimosa, ela se submeteu a uma segunda prova, desta vez em Santa Maria; então, conseguiu ficar 25 dias sem comer. Os empresários logo decidiram que ela estava preparada para Porto Alegre. Renomeada "faquiresa Sandra" pelo próprio Silki, em dez provas ela havia se sagrado campeã gaúcha, ultrapassando inclusive seu ídolo e mentor. O recorde superava todos os até então alcançados por mulheres e homens.

Panfleto distribuído em uma das primeiras provas; apenas dez dias sem comer (Foto: Arquivo Pessoal)

Entre o lânguido e o mórbido

Na ocasião, a França era uma espécie de "central mundial do faquirismo". Os resultados auferidos nas provas daqui tinham como parâmetro global os dos faquíres de lá. Mas em nenhuma parte do mundo o aparato, digamos, barroco para entrar na urna era tão elaborado quanto no Brasil.

Embora Andrea fale da avó como uma mulher avantajada, voluptuosa, os Albertos contam que Sandra atraía mais por ser uma figura exótica, misteriosa, dona de uma expressão que trafegava entre o lânguido e o mórbido. Usava roupas bufantes, eventualmente chegava à urna de turbante, para que o personagem remetesse à Índia. "Ela era mítica. Esses espetáculos tinham um cunho transgressor, ao mesmo tempo religioso e erótico; misturavam o sagrado e o profano. O povo assistia como se fosse coisa do outro mundo."

De calça e blusa acetinadas bufantes, turbante e cobra: entre o lânguido e o mórbido (Foto: Arquivo Pessoal)

Biografias inventadas

Em determinado momento, guardadas as proporções, as faquiresas se tornaram mulheres adoradas como as modelos de hoje — só que elas passavam fome em público, não às escondidas. Ficaram famosas a curitibana Mara; a mineira Ione; a paulista Malba; e a sensacional Suzy King, de origem desconhecida.

As biografias dessas deusas eram descaradamente forjadas por elas mesmas, que jamais deixavam o público saber tudo sobre sua vida pregressa. Mentiam origem, ocultavam amantes, inventavam parentescos com povos ciganos. Já no hospital, reforçavam as olheiras decorrentes da fome, aplicando uma maquiagem escura. Até mesmo o peso que elas perdiam era uma informação controversa. Os jornais falavam em 20 quilos, mas como pode alguém perder só isso depois de dois meses e meio sem comer?

A intrusa vingada

Um dia, Silki resolveu trazer Malba de São Paulo para jejuar em uma urna em Porto Alegre. A ideia era bater o recorde mundial. Indignada com a invasão da paulista, a gaúcha decidiu fechar-se em outra urna, quinze dias depois. Disse que só sairia quando Malba entregasse os pontos. O tiro de Silki saiu pela culatra. Por um evento que ele não havia planejado, e que favoreceu Sandra indiretamente, o recorde acabou sendo dela.

O noivo de Malba, um pugilista-golpista que administrava a bilheteria dela, tornou-se amante de uma das vedetes contratadas para fazer shows paralelos nas imediações da urna. "Ele fugiu com a mulher e todo o dinheiro de Malba", conta Alberto Oliveira. Faminta, pobre e deprimida, ela acabou pedindo arrego em "apenas" 80 dias de jejum. Apesar de estar com as olheiras no chinelo, Sandra pode esvair-se mais tranquila. Sua ideia era ficar 100 dias na urna, mas com 83 ela pediu para sair.

Os recordes anteriores haviam sido quebrados pela mineira Ione (76 dias); pela francesa Ivette (78 dias) e por Malba. De acordo com Andrea Athaydes, ela só não foi à França participar de uma prova internacional porque não tinha com quem deixar Tanara depois que a avó da menina, Claudina, que cuidava dela, morreu.

A reviravolta

E então, depois de sobreviver a dez anos de urnas, Sandra sucumbiu do lado de fora, desta vez por amor. Perdidamente apaixonada pelo guarda que tomou conta dela na última prova, a faquiresa ficou noiva dele, e os dois foram morar juntos.

A primeira exigência do homem foi que ela deixasse de ser faquiresa. Sandra até deixou, mas dez anos depois deu uma bota no folgado. Expulsou-o de casa. Aos 75 anos, muito sintomaticamente, Maria Nunes dos Santos morreu no anonimato, em decorrência de falência total dos órgãos. "Por causa de todos aqueles anos jejuando, ela adquiriu uma diarréia crônica que acabou por enfraquecê-la e levá-la à morte", diz Andrea.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.