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Paulo Sampaio

Índia Flecha Ligeira, a vedete que cantava, dançava e lutava no ringue

Paulo Sampaio

04/07/2018 05h00

Sem nenhuma afetação de bravata ou autocomiseração, a vedete híbrido de lutadora aposentada Índia Flecha Ligeira toca o nariz com a ponta do dedo indicador da mão direita e constata serenamente: "Não tem mais osso." Na figura castigada dela, a falta de osso no nariz é um detalhe. Índiany, como também já foi chamada, ostenta bochechas intumescidas pelo efeito do silicone; queimaduras nos braços adquiridas na época em que engolia fogo em um circo; e o tronco ligeiramente fora do prumo por conta das fraturas ocorridas em apresentações de luta-livre.

A vedete, a lutadora, a arqueira: três momentos de India Flecha Ligeira (Fotos: Arquivo Pessoal)

Contudo, há nela uma áura de glamour. Vem justamente do mistério da sobrevivência artística. Como pode um flagelo ambulante de 75 anos de idade, 1,55m de altura, alma destroçada, estar ali de maiô de lantejoulas e scarpin de onça fazendo uma retrospectiva de sua carreira?  Como ousa afrontar tão descaradamente os fantasmas que a atormentaram a vida toda?

"Na boate, depois do show, eu descia para as mesas dos caras para conversar. Só pra conversar, porque eu avisei desde o início que comigo não tinha graça. No começo, quando eles me ofereciam bebida, eu dizia: 'Não bebo.' Mas aí a dona da boate falou para eu dizer que bebia sim, que queria um whisky. Ela mandava levarem pra mim um copo com chá, e me dava comissão pelo whisky. Um dia, o cara pediu champagne, mandaram junto com um vaso de flores, eu joguei tudo lá dentro, discretamente."

Moça Bonita

Há 20 anos sem qualquer contato com o palco, Indiany ensaia dois pequenos números para apresentar quinta-feira no Cabaré da Cecília, uma casa noturna estilizada na Santa Cecília, bairro da região central de São Paulo redescoberto por uma turma de moderninhos locais. "Ela vai cantar 'A Uva' e dublar 'Moça Bonita', na gravação de Angela Maria", anuncia o historiador Alberto Oliveira, 24 anos, que a ensaia durante a entrevista.

Morador de um apartamento que já foi quarto de hotel construído há cem anos, na Avenida São João, centro antigo de São Paulo, Oliveira cobriu as paredes do lugar com fotografias de mulheres lendárias como Elvira Pagã, Luz del Fuego e Suzy King.  Logo à entrada, há um totem com a figura de Carmem Miranda. Alto, 1,90m, magro, com um leve acento nerd, ele fala dessas mulheres com a curiosidade de um adolescente que investiga suspeitas de fósseis no porão de casa. "A Indiany vem de uma longa linhagem de índias do circo brasileiro", explica.  "Tinha a Maluá, a Rubla, a Mara. Ela era das mais versáteis, dominava várias habilidades artísticas."

Intervalo no ensaio das músicas que vai apresentar no Cabaré da Cecília (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Surra de corda

Nascida em uma fazenda próxima a Campinas, no interior de São Paulo, Divina Clemente Estevam da Rosa foi a única dos dezesseis irmãos a ser registrada. Por isso, e também pelo ódio especial que sua mãe dedicava a ela, Divina sempre suspeitou que fosse filha adotiva. Na verdade, filha de seu pai com outra mulher.  "Minha mãe me batia com corda de couro de boi, que eles usavam na época para bater em bicho." Aos 14 anos, a menina se casou com um homem que se encarregou de manter a tradição das surras. "Ele arrumava namoradas, passava na minha frente com elas e depois me batia."

Viúva aos 17 ("morreram com ele"),  grávida do terceiro filho, Divina deixou os meninos com a mãe odiosa e foi para a capital atrás de trabalho. Empregou-se como doméstica, mas logo descobriu no Largo do Paissandu, centro de São Paulo (região onde ficava o edifício Wilton Paes de Almeida, que pegou fogo e desabou em maio último), um encontro de artistas e empresários que procuravam novos talentos. Em pouco tempo, já havia se apresentado em vários circos, nos três atos do espetáculo. "Eu entrava com o palhaço, cantava, dançava, engolia fogo."

Imagina-se que frequentar aquele ambiente era uma temeridade para uma menina recém-chegada do interior… "Tinha uns empresários que eram safados, mas sempre me respeitaram. Até me apresentavam como sobrinha deles e diziam que não era para chegar perto de mim."

Artista completa

Um dia, um dos artistas sugeriu a Divina que procurasse o Ginásio Grego Brasileiro e tivesse aulas de luta-livre. Ela foi. Em pouco tempo, havia se tornado uma artista ainda mais completa. De todos os números, a luta era a mais bem paga. "Eu ganhava quinze contos de réis cantando, e vinte no ringue", lembra. Com isso, rodou o Brasil de Kombi, numa caravana integrada por um casal de empresários e sua parceira no ringue, a Pantera Negra: "A Pantera era uma preta grande, forte. Eu entrava de meiga, ficava só na voadora, tesoura pra cá, balão pra lá, chave de braço, double Nelson; a Pantera era desclassificada, dava golpe baixo mesmo."

No fim da apresentação, o empresário perguntava à platéia se tinha ali algum homem suficientemente corajoso para enfrentá-las. Era o ponto alto do espetáculo. "Já estava meio combinado, mas alguns caras resolviam bater na gente de verdade. Eles tinham raiva porque achavam que lugar de mulher era na cozinha, não lutando. Uma vez, em Iporá, Goiás, subiu um com uma bota de esporas, veio pra me matar. O empresário teve de segurá-lo. Mas eu ainda tive tempo de dar com o nariz na cabeça dele. Foi quando eu quebrei o osso", lembra.

De acordo com a ex-lutadora, a platéia torcia pelos homens: "Todo mundo gritava: 'Mata! Arrebenta! Acaba com essas galinhas!'." As mulheres também? "Sim, a cidade inteira!"

Em outro momento, no Alto Araguaia, Mato Grosso, o adversário era um cabo do exército. "A gente fez uma 'australiana' (duas duplas): eu fiquei com um cabo, a Pantera com um sargento. Eu deixava o cara vir pra cima até ele achar que estava levando a melhor. Aí, partia para a ignorância. Pegava por aqui, ó (faz o gesto de uma gravata) e derrubava no estrangulamento. Esse cabo sufocou (ela imita, com a mão no pescoço, cof, cof) vomitou e tudo. "

Naquele caso, e em muitos outros, a trupe teve de sair às pressas da cidade. A apresentação do dia seguinte foi cancelada. "Eles vieram atrás da gente para matar!" A empresária dela na época era Elza Zumbano, tia do boxeador Eder Jofre, considerado o maior pugilista brasileiro.

Uma uva pro mocinho

Na ocasião, ela fazia apresentações diárias e mandava todo o cachê para os filhos. A avó peçonhenta dos meninos dizia a eles que aquilo era dinheiro sujo, que "ninguém podia ganhar tanto se não fosse debaixo de homem". "Mas ela falava isso depois de comer e beber com o que eu ganhava." No auge da carreira, Indiany frequentava o programa do Chacrinha e o de Silvio Santos.

Na década de 1990, foi convidada para fazer apresentações na Itália, e acabou esticando a temporada em Milão por conta de uma oportunidade de trabalho diferente. "Conheci uma brasileira casada com um italiano que queria abrir um rodízio de carnes. Eu os ajudei e passei a trabalhar na cozinha." Ficou vinte anos. Hoje, os filhos têm vergonha do passado da mãe. No dia em que ela conversou com o blog, precisou fazê-lo quase às escondidas. "O mais velho é evangélico, só sabe me criticar."

Mas durante aqueles poucos minutos de ensaio, Indiany se deu ao luxo de esquecer os ingratos e encarnou a estrela. Colocou por cima do maiô um vestido de babados vermelho, enquanto Oliveira acionava o pequeno aparelho de som vintage e se preparava para gravar em vídeo a apresentação. Com uma expressão de garotinha travessa, ela pôs as mãos na cintura, levantou o queixo e começou…: "eu nasci numa parreira/de uma terra colossal/sou uvinha de primeira/e agrado qualquer pa…ladar!…uma uva pro mocinho/que está no canto a me olhar/outra uva pro velhinho/que também sabe chupar…"

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.