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Paulo Sampaio

Refugiada lésbica diz que busca plano B para o caso de Bolsonaro ser eleito

Paulo Sampaio

13/10/2018 05h00

A moçambicana Lara Lopes, 34 anos, já sofreu bastante em seu país por ser lésbica. Criada na capital, Maputo, em uma sociedade extremamente repressora, ela chegou a ser agredida verbal e fisicamente, teve dificuldade de conseguir colocação no mercado de trabalho e se desesperou com a notícia do assassinato de sua melhor amiga, morta por causa da orientação sexual. "Um dia, entendi que aquele lugar não era para mim. Deixei meu país sem me despedir dos amigos."

Fã das novelas brasileiras exibidas lá, Lara se identificava com os casais homossexuais retratados nos enredos, e achou que aquilo era um sinal de que a sociedade aqui seria acolhedora. Escolheu o Brasil para pedir asilo. "Desde pequena, eu já me sentia uma menina diferente, mas não tinha ideia do que era 'orientação sexual'. Um dia, já na adolescência, minha prima me perguntou se eu era lésbica, eu respondi que sim, sem saber o significado da palavra. Aí, quando consultei a Internet, tive de desmentir para não sofrer bullying."

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Reconhecida há dois anos como refugiada LGBT, a moçambicana Lara Lopes tem receio do governo de Bolsonaro (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Estabilidade ameaçada

Vivendo há cinco anos em São Paulo, ela conta que a princípio teve dificuldade para se inserir socialmente, conseguir emprego e achar um lugar para morar, mas em pouco mais de um ano  obteve o reconhecimento como refugiada e hoje tem uma vida relativamente tranquila aqui, a0 lado da companheira moçambicana. Ou tinha.

Ironicamente, Lara passou a temer por sua estabilidade como refugiada, desde que o candidato a presidente da República Jair Bolsonaro, do PSL, se tornou o favorito na disputa com Fernando Haddad, do PT, no segundo turno da eleição: "Eu me sinto insegura. Ele já se posicionou contra os homossexuais, a favor da repressão e da tortura. Penso em um plano B, para o caso de ele vencer", diz ela, que não cogita a possibilidade de voltar para seu país.

Filha única, ela descende por parte de pai de uma família cristã, e por parte de mãe, de muçulmanos. "Em meu país, acredita-se que a homossexualidade é uma doença trazida pelos brancos", diz ela, que trabalha com gestão de tecnologia da informação. Sua companheira, com quem ela mantém um relacionamento de oito anos, aguarda para ser reconhecida como refugiada.

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Fantasma da perseguição

Por mais inserido que o refugiado LGBTI se sinta no país para o qual migrou, ele sempre viverá sob o fantasma da perseguição. Essa, pelo menos, tem sido a experiência dos organismos que trabalham no acolhimento desse grupo, no Brasil. Segundo Bernardo Laferté,  coordenador geral do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare), do Ministério da Justiça, "o que leva os refugiados a formarem uma comunidade no país de asilo é basicamente a paridade de origem, não a de ideologia". "As discordâncias de pensamento podem levar os homossexuais, por exemplo, a não revelarem sua orientação sexual, por medo de não serem aceitos aqui também."

A própria Lara diz que, a princípio, não achou prudente revelar aos conterrâneos que é lésbica. "Isso poderia repercutir em Maputo, atingir indiretamente pessoas da minha família", acredita ela, que voltou a Moçambique uma vez. Sua mãe também já esteve no Brasil. Refugiados da comunidade LGBT que são portadores de HIV ou que têm filhos tendem a se achar ainda mais vulneráveis — e a se "esconder" socialmente. Laferté afirma que a melhor maneira de auxiliar na inserção desse grupo na sociedade é "trabalhar questões como tolerância e aceitação do próximo". "Há políticas afirmativas de gênero dentro do próprio ministério de Direitos Humanos", diz.

Processo de reconhecimento

Assim que chega ao Brasil, o refugiado deve se apresentar na Polícia Federal e, ali, ao solicitar o reconhecimento, fazer as alegações que considera importante constarem do processo. Essas informações são enviadas para a coordenação do Conare, onde se busca saber tudo sobre a realidade do país do refugiado. Fazem-se a ele perguntas básicas, como "o que motivou sua saída do país" e "o que aconteceria se você retornasse". "São questões que já podem indicar muita coisa. A gente as faz mais de uma vez, para ver se o entrevistado não cai em contradição", explica Laferté.

O processo de reconhecimento é baseado na Convenção das Nações Unidas, de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados, que estabeleceu que qualquer cidadão pode pedir asilo por fundado temor de perseguição em virtude de opinião política, grupo social, raça, nacionalidade ou religião.  Hoje, há 147 países signatários da convenção. Como a homossexualidade não consta do texto original, ela entra no tópico  "grupo social".

Momento de decisão

É o Conare que decide se o solicitante será reconhecido como refugiado no Brasil. O comitê é composto por representantes de cinco ministérios: o da Justiça, que o preside; e outros quatro, que são o das Relações Exteriores, o da Educação, o da Saúde e o do Trabalho; há ainda mais um membro, da Polícia Federal, e um da sociedade civil. O oitavo representante é do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), que tem direito a voz, mas não a voto.

Bernardo Laferté explica que "a análise do processo não obedece necessariamente à argumentação da coordenação". "Se a gente sugere reconhecimento, o Conare pode indeferir, e vice-versa. E também usar fundamentos distintos dos nossos para julgar", diz. Caso seja reconhecido, o  solicitante passa a ser refugiado. Caso não, tem quinze dias para entrar com recurso.

Colombianos gays

Ninguém é obrigado a declarar a orientação sexual ao pedir asilo, e isso dificulta um levantamento preciso de quantas pessoas desse grupo pediram reconhecimento na Polícia Federal. Segundo o ACNUR, que dispensa atenção especial à comunidade LGBTI, a primeira solicitação de refúgio de pessoas desse grupo ocorreu em 2002; foi feita por um casal gay de colombianos que viviam em uma região com muitos registros de violência homofóbica, promovida por grupos armados.

Desde então, de acordo com uma cartilha lançada em 2017 pelo comissariado, já foram processadas mais de 250 solicitações de refúgio por motivo de orientação sexual. Para a assistente sênior de proteção do ACNUR em São Paulo, Sílvia Sander, é importante "assegurar espaços de escuta das experiências de pessoas LGBTI em situação de deslocamento forçado, para se construir redes mais receptivas às necessidades específicas dessas pessoas nos países e comunidades de acolhida".

A julgar pelos esforços do ACNUR e o comprometimento do Conare, Lara não teria razão para se preocupar. Mas, como ela diz, se tantos brasileiros da comunidade LGBTI consideram seus direitos ameaçados, por que os refugiados se sentiriam mais tranquilos?

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.