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Paulo Sampaio

Abadiânia, a cidade onde ninguém quer saber dos estupros de João de Deus

Paulo Sampaio

16/12/2018 05h00

A entrada para a cidade (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Em um dia particularmente quente de Abadiânia —  a cidade mais famosa do Brasil na semana passada — hordas de transeuntes vestindo branco, a maioria mulheres, caminham na direção da Casa de Dom Inácio de Loyola, conhecida internacionalmente como um hospital de curas espirituais. Um desavisado poderia imaginar que algum produtor de cinema americano desembarcou na região para filmar um daqueles longas-metragens futuristas, em que a população caminha na mesma direção, usa a mesma roupa e obedece a um grande mestre. O personagem principal seria o médium João de Deus,  76 anos, receptor de uma entidade capaz de passar luz e energia a devotos desenganados ou emocionalmente desestabilizados.

Na sexta 7, o roteiro do longa-metragem ganharia contornos de filme B de terror. Naquela noite, o programa "Conversa com Bial" levou ao ar depoimentos de quatro mulheres que revelavam ter sido sexualmente abusadas pelo médium. Em poucos dias, as denúncias chegaram a centenas e, na quarta-feira, o Ministério Público pediu a prisão preventiva de João de Deus. O advogado de defesa dele, Alberto Toron, solicitou ao juiz permissão para que seu cliente mantivesse os atendimentos com escolta policial — mas não obteve sucesso. Agora, João de Deus é considerado foragido.

João de Deus chega à casa de curas espirituais (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Cidade pequena sem fofoca?

Abadiânia fica a cerca de 80 km de Goiânia, tem 18 mil habitantes e se resume a poucas ruas áridas e a um comércio basicamente esotérico. Mas os poderes sobrenaturais de João de Deus se estendem para muito além de suas fronteiras. Ele já atendeu presidentes da República, um ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) e apresentadoras de TV. Também faz delivery de energia mundo afora.  Apesar de promover seus passes gratuitamente, o médium acumulou uma fortuna de milhões, e é proprietário de mais de 30 fazendas. Diz-se na cidade que ninguém compra uma choupana ali sem pagar pedágio a ele.

Isso talvez explique por que não se encontra em Abadiânia, mesmo entre os senhores de idade, ninguém que tenha ouvido falar dos supostos estupros do médium. Mas como? Não existe fofoca na cidade? Não. Naquele momento, o medo da ruína econômica domina tudo. Praticamente toda a comunidade tira seu sustento do turismo espiritual. Segundo motoristas de táxi e donos de pousadas, o movimento de visitantes caiu substancialmente na última semana — alguns falavam em 50%.

Atmosfera sinistra

Para receber os devotos na Casa de Dom Inácio de Loyola, João de Deus costumava percorrer diariamente os 35 km que separam Anápolis, onde mora, de Abadiânia. Por causa principalmente de problemas de saúde, ele reduziu os atendimentos a três vezes por semana — quartas-feiras, quintas e sextas. Na última terça, a atmosfera alegadamente leve da casa tornou-se sinistra…

Pobre Edna. Sem a menor experiência em "gestão de crise", a assessora de imprensa do médium entrou, ela mesma, em desespero. Morena de olhos verdes, cabelos umedecidos penteados para trás, a assessora a princípio se mantinha sentada à entrada da casa, dentro de uma calça comprida de couro preto e uma blusa levezinha em tom pastel. Contou ao blog que assina uma coluna social em Goiânia — o que, naquele momento, não fazia a menor diferença. Sem nenhuma finesse, os jornalistas avançavam sobre ela para perguntar se João de Deus, apesar das denúncias, apareceria na quarta-feira: "Afinal, ele vai vir!?", queriam saber. Para se proteger, a assessora dava tragadas profundas no cigarro e efetuava cruzadas nervosas de perna, exibindo sapatos de saltos altíssimos.  Respondia com evasivas: "Ele virá.."  Amanhã? "Virá esta semana…"

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Quando soube que João de Deus apareceria na quarta-feira, Edna comunicou aos jornalistas com uma expressão altiva — que se tornaria sombria à chegada do médium. Sem conseguir conter a selvageria dos repórteres e cinegrafistas em torno dele, ela correu em busca de abrigo. Aos prantos, isolou-se em uma das salas da recepção.

Amor, irmãos

Fiéis que aguardavam João de Deus sentados nos três principais ambientes da casa, orando, levantaram-se para gritar "Amor, irmãos", "Paz!", "Mais tolerância do templo!", no que foram sumariamente ignorados. Em pleno tumulto, uma repórter televisiva esbarrou em uma voluntária do  hospital espiritual, e então iniciou-se um barraco. "É assim que vocês se diz generosa, me desejando um câncer?", perguntou a repórter, brandindo o microfone. E a outra: "Aprenda a respeitar o silêncio, para ser respeitada!"

Ali em volta, uma série de PhDs em harmonia ensinavam a forma correta de atingi-la. Uma baiana que se apresentou ao blog como Nishavda explicou o caminho do fluxo de energia. Com uma fala compulsiva, irrefreável, Nishavda parecia estar desesperadamente em paz: "Ela (a energia) vem daqui, ó (levantando o braço até acima da cabeça) e vai por aqui, ó (movimento descendente até o esterno), e, depois, sai por aqui (abdome) em direção ao 'outro' (movimento ascendente, com os dois braços)".

O Homem e a entidade

Pergunto a um rapaz que se diz "médium da casa" como é a coreografia nos atendimentos de João de Deus. Ele diz: "Seu João chega, conversa um pouco com as pessoas, vai para uma das salas da casa e fica ali até que sente as primeiras vibrações da entidade. Quando ela vem, ele começa os atendimentos; na hora do almoço, volta a ser o "médium João"; depois, recebe de novo a entidade para os atendimentos da tarde." Pelas contas do blog, havia cerca de 500 pessoas na casa. Para os voluntários, esse número chegava a mais de mil.

Os visitantes que mantiveram reservas nas pousadas, sobretudo as mulheres, justificam sua lealdade ao médium com uma curiosa dissociação entre o "homem João de Deus" e a "entidade que ele recebe".  Segundo elas, o primeiro, como qualquer outro, está sujeito a momentos de fraqueza — como se o assédio sexual de centenas de mulheres fosse previsível entre homens de carne e osso. Houve também quem invertesse os papeis, transformando as vítimas em algozes: "Um homem como ele atrai inveja. Pessoas que não conseguem atingir sua espiritualidade tendem a querer destrui-lo."

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Os "pacientes" recebem João de Deus (Foto: Paulo Sampaio)

Muita informação

No meio do bolo humano, João de Deus se deixou conduzir sem dizer nada, com uma expressão ausente, até à frente da sala principal. Falou em Deus para a multidão de branco, reafirmou inocência aos jornalistas e foi-se embora. Já era tarde para alegar imunidade. Àquela altura, surgia a informação de que Dalva, uma das quatro filhas dos nove de João de Deus, resolveu "ir à mídia" para declarar que o pai a estuprava desde que ela tinha 10 anos.

Recuperada, a assessora Edna divulgou um vídeo em que Dalva aparece dizendo que seu pai nunca abusou sexualmente dela; nunca deixou que ela passasse nenhum tipo de necessidade; e que tudo o que se estava dizendo era por causa de dinheiro. No vídeo, a filha de João de Deus passa a mão na cabeça do pai e afirma que está envergonhada pelo procedimento de seus filhos — que abriram um processo contra o avô, pedindo indenização por ter vivido sem a mãe por oito anos — e diz que a culpa é do pai dos meninos, "que sempre foi um homem muito ambicioso".

Logo depois, divulgam a notícia de que o vídeo é antigo, de 2017, e que Dalva o gravara obrigada pelo pai. E então, ela aparece para revelar que João de Deus é "um monstro".

A quarta-feira revelou um movimento bem abaixo do normal, segundo fontes da própria casa (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

 Primeira e última

No dia seguinte, em Anápolis, o advogado de Dalva está feliz por receber em seu escritório, pela primeira vez, uma equipe do "Fantástico". Doutor Marcos Bocchini fala baixo, não só para  reforçar o caráter escabroso de seu relato, mas também por uma espécie de respeito reverencial aos visitantes ilustres. "…os primeiros estupros aconteceram quando ela tinha 10 anos; aos 14, ela foi emancipada para se casar; o relacionamento não deu certo, e então o pai a chamou de volta, para morar com os filhos na casa dele. Mas disse: 'A condição, você sabe, é eu continuar a…' Ela foi embora. Aos 28 anos, ele comprou um apartamento para a Dalva em Goiânia, decorou tudo em cor-de-rosa, a cor preferida dela, e a chamou para dar as chaves. Então, disse a mesma coisa, que ela poderia ficar com a condição de…"

Bocchini conta que é sócio da advogada dos filhos de Dalva (Paulo Henrique e João Paulo), que dão entrevista junto com a mãe. Doutora Fabiane Solange alisa com as mãos os cabelos muito longos e loiros-farmácia, enquanto o marido dela, Fernando, que também se apresenta como advogado e sócio do escritório, diz que os dois jovens foram ameaçados pelo avô, e por isso desistiram de um processo aberto em 2017.

Teste de DNA

Tento checar a informação de que um dos dois seria filho do próprio João de Deus. "Ele é pai-avô", afirmou a única fonte "faladeira" que a reportagem encontrou em Abadiânia. Fernando diz que, bem, realmente, "(durante o processo) eles fizeram o teste de DNA justamente por isso". Segundo o advogado, logo depois os dois irmãos levaram uma misteriosa surra. "As fotos estão no 1º DP, onde a gente fez o exame de corpo de delito", diz Paulo Henrique. Encolhida em um vestido preto colado ao corpo, sapatos muito altos, Fabiane Solange olha em código para o marido, como quem diz: "Será que é o momento de falar disso?"

Tento uma "aspa" de Dalva, que tem os cabelos tingidos de castanho-escuro presos em um rabo de cavalo, fuma muito e fala com uma voz rouca, mas Bocchini diz que já se comprometeu com o "Fantástico" e a revista "Veja". Terminadas as entrevistas com os dois veículos, ele compra um espetinho de carne no restaurante da esquina, o Jorjão, e relaxa. Jovem, alto, seguro de seus atributos, Bocchini compõe um tipo charmosão. Em uma conversa leve, ele ri alto com as mãos na cintura, as pernas abertas e os pés acomodados em um sapato de bico fino com fivelas na lateral.

Papo de advogado

Em entrevista ao blog, o pai dos filhos de Dalva, Edson Honda, diz que "essa história de DNA é papo de advogado". "Quando os meninos nasceram, a Dalva estava sem contato com o pai havia dois anos", garante ele. Apesar de tudo o que a mãe dos meninos disse sobre a ambição do pai deles, Honda afirma que o relacionamento dos dois acabou sem grandes brigas e que o sogro sempre foi muito generoso com ele.  "Quando eu engravidei a Dalva, em vez de ele bater em mim, bateu nela", lembra. "E ainda bancou o casamento e me deu dois cheques: um para comprar uma casa; outro para os móveis. Rasguei o da casa, porque não sou de ficar puxando o saco de ninguém, e fiquei com o dos móveis."

Ele chora ao contar que sofre de depressão, e diz que muito da doença tem a ver com "tudo isso que está acontecendo com os meninos". De acordo com Honda, os filhos passaram anos procurando a mãe "em tudo o que foi canto": "Ela se envolveu com droga, sumiu mesmo. Foi para São Paulo, depois apareceu em Belém…" Que droga? Crack? "Tudo que você puder imaginar…" (Outro lado: o advogado de Dalva diz que sim, ela inclusive passou um tempo internada em uma clínica de desintoxicação, quando fez o vídeo com o pai).

Só osso

Honda diz que a falta da mãe durante tanto tempo deixou marcas nos meninos (que, por isso, querem uma indenização). "Eles sofreram demais com a ausência dela. Nunca quiseram nada com os estudos. Um dia, peguei o João Paulo se cortando no braço, com pedaços de um CD que ele tentou engolir depois. O Paulo Henrique se tornou uma criança de humor instável." Quem encontrou Dalva, depois de tantos anos, foi o próprio João de Deus: "Ela estava que era só osso. O cabelo parecia um bombril todo amassado…", diz.

Pego carona com Honda até o centro da cidade e, no caminho, ele aponta para uma casa e diz que foi presente de João de Deus para sua mãe. Tanta generosidade pode explicar muita coisa. Honda, a quem se atribui um ódio figadal ao ex-sogro, é só elogios quando fala do médium. Pergunto se costuma frequentar a Casa de Dom Inácio de Loyola, ele me olha incrédulo. Reage como se a pergunta fosse absurda. "Eu nunca me meti como isso", diz, acrescentando que respeita a crença dos outros.

Edson Honda, ex-marido de Dalva, com os filhos ainda pequenos (Foto: Arquivo Pessoal)

O retorno

No dia seguinte, quinta-feira, volto para São Paulo.

Na sala de embarque do aeroporto, ouço a funcionária da Gol chamando o "senhor Toron" para o voo 1433, das 20h25. Mal pude crer: eu estava prestes a conhecer o criminalista em carne e osso. Mas seria mesmo o Toron que defende João de Deus? A funcionária chamou diversas vezes, até que na última disse o nome completo do passageiro: Alberto Zacharias Toron. Era a minha chance!

Mas o advogado nunca apareceu. A moça da Gol me informou que o embarque estava encerrado, e que o senhor Toron havia perdido o voo. Ou, quem sabe, embarcou apenas a entidade Toron.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.