Topo

Paulo Sampaio

"Nesse governo, tudo pode retroceder", diz mentora da lei do feminicídio

Paulo Sampaio

21/07/2019 04h00

"Quando a gente tem uma ministra da Mulher e dos Direitos Humanos que vai pelo evangelho e acredita que a mulher é inferior ao homem, nunca se sabe o que pode acontecer", diz a promotora aposentada Luiza Nagib Eluf, citando Damares Alves. Luiza foi uma das mentoras da lei do feminicídio, que alterou o artigo 121 do Código Penal e qualifica o homicídio da mulher por razão de gênero como crime hediondo. Desde a sua edição, em 2015, a lei conquistou um número fabuloso de apoiadores, e  também de detratores. Apesar da incrível visibilidade que o feminicídio ganhou na mídia e do caráter aparentemente perene, Luiza acredita que "no governo atual, tudo pode retroceder".

A ex-promotora fala com a autoridade de quem já enfrentou a resistência do conservadorismo. Ela conta que quando apresentou a proposta da lei a uma "comissão de ilustres" do Senado Federal, em 2013, foi recebida com muita hostilidade. "Não esperava que a grande maioria fosse virulentamente contrária, justo em um momento em que o assunto bombava em toda a América Latina", lembra. Na ocasião, Luiza recorreu à secretaria de Políticas para Mulheres, que no governo de Dilma Rousseff era comandada pela ministra Eleonora Menecucci, e lá foi acolhida sem reservas. "A ministra imediatamente abraçou a proposta, que virou projeto de lei apresentado pela secretaria."

Veja também: 

Foi 'por amor'

Antes de 2015, o homicídio de uma mulher cometido pelo marido, namorado ou amante era frequentemente tratado como "crime passional". Os advogados de defesa inclusive usavam a expressão com o fim de atenuar a gravidade da conduta do réu. Falavam em "ato desatinado, cometido em um momento de violenta paixão"; ou que ele (o assassino) tinha agido "por amor"; "por ciúmes"; "em defesa da honra". "A lei do feminicídio representou um avanço extraordinário no direito da mulher, não só por possibilitar o levantamento de números confiáveis a respeito desse tipo específico de homicídio, como por dar a devida importância a essa estatística. Não faz tanto tempo, o Código Penal vigente no Brasil, criado em dezembro de 1940, classificava o estupro como 'crime contra os costumes"', lembra Luiza.

A enorme repercussão alcançada pela lei do feminicídio encorajou muitas vítimas de violência doméstica a denunciarem seus parceiros. Por isso — e também pela persistência dos homens que adotam um comportamento abusivo  — registrou-se um aumento de 34% nos casos, entre 2016 e 2018, passando de 3.339 para 4.461 processos. Os dados foram divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, que acompanha o tema. Como colaboração para que o assunto jamais caia no esquecimento, o blog relembra abaixo quatro "crimes passionais" emblemáticos.

Bolero na Prisão

||Créditos: iStockfotos.com/Reprodução/Arquivo pessoal/Divulgação
||Créditos: iStockfotos.com/Reprodução/Arquivo pessoal/Divulgação

"Eu a amava com certeza", disse o músico Lindomar Castilho, 20 anos depois de matar a cantora Eliane de Grammont, sua ex-mulher, na madrugada do dia 30 de março de 1981. Lindomar apareceu no bar Belle Époque, em São Paulo, onde Eliane fazia uma apresentação acompanhada do violonista Carlos Roberto da Silva, o Carlos Randall, e atirou segurando a arma com as duas mãos. O casamento deles tinha durado dois anos, mas Eliane pediu o divórcio alegando que o marido exagerava na bebida e frequentemente batia nela. "Levantei os olhos do violão e dei de cara com o Lindomar apontando a arma para Eliane", conta Randall, que era primo do assassino e foi o pivô do crime. De acordo com Lindomar, que alimentava um ciúme doentio da mulher, Eliane mantinha um caso com o violonista. "Ele foi o causador de tudo", desabafou Lindomar à revista IstoÉ Gente, depois de sair da cadeia.

Conhecido por cantar boleros e sambas-canções como "Você É Doida Demais", tema do seriado Os Normais, da TV Globo,  ele disparou cinco tiros na direção da mulher. Um deles acertou a barriga de Carlos Randall, que havia se colocado à frente de Eliane para protegê-la. Com a ajuda do dono da boate, Randall conseguiu desarmar o assassino. O violonista ainda tentou socorrer a cantora, levando-a ao Pronto-socorro Brigadeiro, mas ela morreu no caminho.

Ao tentar fugir, Lindomar foi dominado pela polícia e preso em flagrante. Na ocasião do julgamento, houve uma grande manifestação de feministas na porta do fórum, quando as mulheres gritavam o bordão "bolero de machão só se canta na prisão", enquanto um grupo autodenominado "os machistas" ofendia e jogava ovos nelas. Em 1985, por 4 votos a 3, o júri condenou Lindomar Castilho a 12 anos e dois meses de prisão por homicídio triplamente qualificado, cometido por motivo torpe, meio cruel e recurso que impossibilitou a defesa da vítima; e, no caso de Randall, por lesão corporal culposa. Na prisão, o cantor gravou um disco que aludia dramaticamente à sua situação, chamado "Muralhas da Solidão".

"Defesa da honra"

||||Créditos: iStockfotos.com/Reprodução/Arquivo pessoal/Divulgação
||Créditos: iStockfotos.com/Reprodução/Arquivo pessoal/Divulgação

A socialite mineira Ângela Diniz e o playboy paulista Raul Doca Street namoravam havia quatro meses quando, na véspera do Réveillon de 1976, depois de uma briga por causa de ciúmes, ele a matou com três disparos no rosto e um na nuca. O advogado de Doca, Evandro Lins e Silva, alegou legítima defesa da honra. Disse que Ângela costumava provocá-lo, comparando-o com os ex-namorados. No dia do crime, afirmou, "ele perdeu a cabeça".

Naquela tarde, ainda segundo Lins e Silva, Ângela teria chamado a alemã Gabrielle Dayer, uma loira curvilínea que vivia de artesanato no balneário, para um ménage à trois. Única testemunha do crime, Gabrielle caiu misteriosamente de um penhasco na praia da Ferradura, no centro de Búzios, quatro meses depois. O playboy foi condenado a dois anos  com sursis, o que levou a opinião pública a reagir com indignação.

Graças à ação intensa dos movimentos feministas, houve novo julgamento e, em 1981, Doca Street pegou 15 anos de cadeia. Na época, criou-se o slogan "quem ama não mata", que virou até nome de minissérie na TV Globo. Ao deixar a penitenciária, Doca voltou a ser vendedor de carros, passou a viver com uma corretora de imóveis em um apartamento de dois quartos no bairro de Pinheiros, zona oeste de São Paulo, e escreveu um livro intitulado "Mea Culpa".

Jogo sujo

||Créditos: Reprodução/Arquivo pessoal/Divulgação/Getty Images
||Créditos: Reprodução/Arquivo pessoal/Divulgação/Getty Images

Até 12 de junho de 1994, a vida do astro do futebol americano O. J. Simpson fora um relativo sucesso. Apesar de ter tido uma adolescência conturbada, com direito a alguns meses de detenção por delinquência, ele tornou-se internacionalmente conhecido não só como atleta, mas também como radialista e quase ator. Simpson já havia gravado o piloto de uma série chamada Frogmen, em que faria o líder de um grupamento da Marinha, com estréia prevista para setembro daquele ano. Antes disso, porém, uma tragédia mudou dramaticamente o destino do jogador. Na madrugada daquele dia 12, gritos vindos do casarão onde morava sua segunda mulher, a ex-garçonete Nicole Brown, em Los Angeles, levaram alguns vizinhos a verificar o que estava acontecendo. Ao chegar, eles se depararam com uma cena horripilante:  o cadáver de Nicole jazia sobre uma enorme poça de sangue, com a garganta cortada, a poucos metros do corpo de seu amante, Ronald Goldman, morto com 22 golpes de faca.

Nicole era mãe de dois dos cinco filhos de Simpson e se divorciou dele depois de relatar vários episódios de violência contra ela. Alegou diferenças irreconciliáveis. Como Simpson embarcou poucas horas depois do crime em um voo para Chicago, a polícia a princípio só o convocou como testemunha.  Com o decorrer das investigações, porém, as evidências o apontavam como o principal suspeito. Gotas de sangue das vítimas foram detectadas em suas meias;  uma luva recolhida na cena do crime fazia par com outra, encontrada na casa dele; e havia pegadas no local compatíveis com o tamanho de seus pés. Simpson negou, seu advogado (o polêmico Robert Shapiro) tentou desclassificar as provas, mas não foi possível evitar a expedição de um mandado de prisão para cinco dias depois. O jogador se comprometeu a se entregar às 11h, mas desapareceu. A polícia acabou descobrindo seu paradeiro, ele fugiu de carro e iniciou-se uma perseguição cinematográfica, transmitida ao vivo para todo o país.

Preso, Simpson foi réu em um processo considerado nos EUA o "julgamento do século". Em 3 de outubro de 1995, o veredicto foi transmitido ao vivo para mais de 100 milhões de telespectadores.  A defesa conseguiu suprimir boa parte das evidências e, o que contou muito, alegou que Simpson era vítima de racismo por parte da polícia de Los Angeles. O júri composto por nove negros, dois brancos e um hispânico o inocentou. Na esfera civil, contudo, ele não conseguiu escapar.

Condenado a pagar uma indenização de US$ 33 milhões para as famílias das vítimas, ele Simpson não conseguiu cumprir a determinação do juiz e, em 1999 teve seus bens leiloados. Mais tarde, por determinação da Justiça, restringiu seus gastos a "despesas normais e necessárias". Em 2007, lançou o livro "If I Did", onde narra como teria cometido os crimes ("se tivesse cometido"). Toda a renda foi usada para saldar as determinações do processo civil. No mesmo ano, foi acusado de sequestro a mão armada e condenado, em junho de 2008, aos 61 anos, a 33 anos de cadeia.

(Fotos: Reprodução)

Assassino estressado

A defesa de Antônio Marcos Pimenta da Neves, assino confesso da jornalista Sandra Gomide, alegou no júri que ele estava sob "violento estresse emocional".  Chefe de Sandra no jornal o Estado de S. Paulo, onde era diretor de redação, Pimenta Neves não se conformou com o término do relacionamento com ela, iniciado em 1995, e a acertou com um tiro nas costas, outro na cabeça.  "Estressado", foi internado horas mais tarde no Hospital Albert Einstein, afirmando que havia sofrido uma overdose de sedativos.

Pimenta Neves havia demitido Sandra pouco depois do fim do relacionamento, alegando incompetência. Na sequência, passou a denegrir a imagem dela no mercado. Duas semanas antes de atirar na ex-namorada, invadiu o apartamento dela, deu dois tapas em seu rosto e ameaçou matá-la. Sandra registrou um boletim de ocorrência, a polícia abriu um inquérito e a família dela contratou seguranças, mas logo os dispensou, achando que o jornalista não seria capaz de fazer o que fez.

O crime aconteceu em 6 de agosto de 2000, em um haras no interior de São Paulo. Sabendo que ela apareceria no local, Pimenta Neves foi antes para lá e a aguardou. De acordo com o dono do haras, o jornalista preparava-se para deixar o lugar, quando avistou o carro de Sandra. Depois de aproximar-se, os dois iniciaram uma discussão e ele a atingiu com o primeiro tiro quando ela se virou para entrar no carro. Disparou o segundo quando ela já estava caída no chão.

O assassino confessou o crime em cinco dias — mas só foi a júri em seis anos. Condenado a 19 anos, dois meses e 12 dias de prisão, ele pode recorrer em liberdade graças a uma série de recursos impetrados nos tribunais superiores. Em setembro de 2008, ao analisar um recurso de anulação do julgamento, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) manteve a condenação e reduziu a pena para 14 anos, dez meses e três dias. Pimenta Neves só foi preso em 2011, e ainda assim permaneceu na cadeia em regime fechado por apenas dois anos e quatro meses. Então, em 2013 conseguiu a progressão para o regime semi-aberto; e em 2016, a transição para o aberto.

O juiz Carlos Henrique Scala de Almeida, que concedeu o benefício, ressaltou que "o reeducando aguardou o julgamento em liberdade por longo período, entre os anos de 2000 e 2011, e não se envolveu em novos delitos". No novo regime, o jornalista deveria cumprir o resto da pena em sua casa, na zona oeste de São Paulo, podendo passear durante o dia. Na ocasião, 16 anos depois do crime, a defesa de Pimenta Neves afirmou: "Ele tem 79 anos, está cego de um olho, com 30% da visão do outro e grandes chances de ter câncer de próstata. Depois que cometeu o crime, ficou dez anos respondendo o processo em liberdade e jamais cometeu um delito sequer. Qual a necessidade de manter este senhor na cadeia?"

A opinião pública, em especial o movimento feminista, que tinha acompanhado revoltada o histórico de impunidade do réu confesso, jamais se conformou. O caso de Pimenta Neves foi um dos mais lembrados na aprovação da lei do feminicídio.

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.