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Paulo Sampaio

Maria Zilda Bethlem: "Comi todo mundo no Rio, São Paulo, Nova York e Paris"

Paulo Sampaio

18/08/2019 04h00

A combinação do rosto delicado com a voz rouca, em um corpo suavemente torneado, fez da atriz Maria Zilda Bethlem uma das mulheres mais desejadas de sua geração. Ao contrário de inúmeras beldades alegadamente feministas dos anos 1980, Zilda nunca viu problema em ser atraente. "Imagine, eu aproveitava! Exercitei muito minha sedução. Comi todo mundo no Rio, em São Paulo, Nova York e Paris", diz, rindo muito. "Passava a régua!"

Ela já fazia teatro e TV desde o começo dos anos 1970, mas o reconhecimento de seu talento, beleza e sex appeal — para usar uma expressão da época —  aconteceu na novela "Guerra dos Sexos" (1983), sucesso retumbante do horário das 19h. Comédia rasgada escrita por Silvio de Abreu, a novela tinha nos papéis principais Fernanda Montenegro e Paulo Autran, aclamados já havia muito tempo como os "maiores atores do Brasil". Zilda fazia Vânia. "O personagem do Paulo Autran (Bimbo) chamava a Vânia de 'belas pernas'. Aí, pronto, as pessoas começaram a reparar nas minhas pernas." Em "Vereda Tropical", sua novela seguinte, a atriz já habitava o panteão de astros inatingíveis da emissora.

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Zilda/Vânia, em "Guerra dos Sexos", 1983 (Foto: Divulgação)

Um vaso, um abajur

Muito generosa, Maria Zilda (que na época ainda não assinava Bethlem) compartilhava suas pernas (e o resto) com homens e mulheres: "Tudo", diz. "Eu olhava e dizia: 'Você!"' Isso não a impediu de ter vários relacionamentos marcantes, nenhum deles muito duradouros, e de tornar-se mãe de dois filhos, Rodrigo e Rafael, o primeiro com um engenheiro, o segundo com o diretor Roberto Talma — ambos os pais, mortos.

O último casamento foi com a arquiteta Ana Kalil, 20 anos mais nova, com quem ficou oito anos. Um recorde. "As mulheres se compreendem melhor. O relacionamento de mulher com mulher, depois de uma certa idade, é muito menos sexual do que do homem com a mulher. As mulheres mais velhas têm mais necessidade de ter uma companheira para fazer compras, viajar, ir ao teatro." Desde o final com Ana, há dois anos, ela diz que não se interessou por ninguém: "Quando eu olho para uma pessoa, é como se estivesse olhando para um vaso, um abajur, uma poltrona."

Discurso de formatura

Para ajudar a superar a perda, Zilda começou a escrever contos. Neles, ela relata não só as histórias de amor, como as de família, a relação com a bebida, as drogas, o trabalho e as "participações especiais" em sua vida (dedica capítulos à atriz Tônia Carrero, ao cantor e compositor Cazuza e ao escritor João Ubaldo Ribeiro).

Pretende ainda amadurecer os textos para buscar um editor. "Sempre gostei de escrever. Quando terminei o curso normal, o discurso de formatura foi escrito por mim", orgulha-se ela, que era filha única de um deputado exilado, que se tornou adido comercial na embaixada do Brasil em Portugal, e de uma professora.  Na verdade, o pai, nordestino, tinha outra família, da qual só se soube quando Zilda já estava crescidinha.

Com Claudio Cavalcanti e Ary Fontoura em "Hipertensão",  de 1986 (Foto: Divulgação)

Melhores amigos

Lá no início, muito antes de virar uma estrela e participar de mais de 30 novelas — uma dezena de espetáculos teatrais e o mesmo tanto de filmes –, Maria Zilda procurou diversos executivos de TV, oferecendo trabalho. "Eles faziam aquela cara de diretor da Globo, não davam a mínima. Eu pensava: 'Me aguarde'."

Um dia, em 1979, ela bateu na porta da veterana Tônia Carrero. "Eu disse que sabia que ela ia montar um espetáculo ("Teu Nome é Mulher", de Marcel Mithois) e perguntei se tinha um papel pra mim. Ela respondeu: 'Tem, sim. Você pode fazer a minha filha'." As duas foram muito próximas até a morte de Tônia, em março do ano passado, aos 95.

Com Tônia Carrero (Foto: Divulgação)

Libriana com ascendente em touro, Maria Zilda afirma que determinadas conjunções em seu mapa astral apontam para uma certa "mania de cuidar dos outros". Diz que "tem lá uma linha ligada a enfermagem". "Quando a Tônia ficou muito doente e ninguém mais ia vê-la, porque ela não falava, eu a fiz cantar uma música inteira, no dia do aniversário dela." Zilda pega o celular e fala no fone: "Incluir no livro a história da música que a Tônia cantou, e a linha da enfermeira no mapa astral."

Morro da Urca

De Cazuza, que morreu em 1990 vítima de Aids, Zilda diz que se aproximou mais quando a saúde dele já estava bastante debilitada. Ela foi a primeira a cantar o hit "Brasil", que virou abertura da novela "Vale Tudo" (outro sucesso), na voz de Gal Costa (também no auge). "O Caju (Cazuza) estava em Boston, se tratando, quando a gente gravou o show no Morro da Urca (zona sul do Rio). Ia ao ar no "Fantástico", e eu falei com o (diretor Paulo) Trevisan que queria que o Caju fizesse a cabeça (chamada). Ele estava já magrinho, a pele do rosto escura, mas fez com o maior prazer!", lembra.

Budas Ditosos

Mais realista do que chorosa, Zilda afirma que "100%" de seus amigos morreram. "Da turma dos intelectuais, eu era a mais nova", diz.

Um dos queridos era o escritor João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), com quem  "almoçava todos os sábados". Pergunto se ela assistiu ao monólogo "A Casa dos Budas Ditosos", baseado no romance homônimo de Ubaldo. Apresentado desde 2013 por Fernanda Torres, conta as aventuras sexuais de uma baiana libertina. Já foi assistido por cerca de 1 milhão de pessoas. Zilda responde séria: "Não assisti, nem pretendo." Por quê? "Porque antes de publicar o texto, a primeira pessoa a quem João Ubaldo mostrou foi pra mim. Eu disse: 'Eu vou fazer essa peça'. Eu bobeei e, quando soube, já estavam adaptando para o teatro. Briguei com ele mortalmente. Mas voltamos a nos falar, claro."

Mãe de traficante

Maria Zilda Bethlem está no ar na série "Pico da Neblina", da HBO, dirigida por Quico Meirelles. A história se passa em uma São Paulo fictícia, onde a maconha foi legalizada e agora se pode comercializá-la livremente. Zilda faz a mãe de um ex-traficante (Vini/ Daniel Furlan), que abriu uma loja gourmetizada para vender a droga e enfrenta impasses com o passado. "Minha personagem sofre de câncer, vive sem apetite, e o filho garante que a maconha vai fazê-la melhorar. Ele dá pra ela, a mulher engorda, mas fica doidona."

Sobre uma eventual legalização da droga na vida real, a atriz acredita que "economicamente resolveria o problema da dívida externa do Brasil". Quanto ao problema social, da violência, ela afirma (sem levar em conta o tráfico) que "um baseado não estimula a agressividade em ninguém". "As pessoas dão risada, contam história, falam loucuras, dormem…Não é como o álcool, que sujeito vai lá, compra um copo de cachaça por R$ 2, toma três e, se não estiver em um dia bom, sai querendo matar meia dúzia."

Destilado, não

Zilda diz que ela própria já foi "uisqueira", passou a sofrer de uma espécie de "amnésia" eventual e fez coisas que prefere não recordar. "De repente, eu tinha um apagão durante uma festa e no dia seguinte eu não me lembrava de nada. Nunca sentia dor de cabeça, de estômago, coisa nenhuma. Só ressaca moral. Era horrível quando me lembravam o que eu tinha feito."

Ela resolveu se consultar com um neurologista, e ele disse que o problema estava no álcool destilado. "Troquei pelo fermentado, hoje bebo vinho e champanhe e não me acontece nada."

Taça e aerador

Ela se levanta: "Você falou em bebida, me deu vontade de abrir um vinho. Sabe, meu pai morreu de cirrose hepática. Bebia whisky, e bebia muito. Ele dizia que os três segredos para beber bem são: que a bebida seja de qualidade, que não se misture destilado e fermentado e que a pessoa nunca esteja sozinha."

Com um aerador, ela serve em duas taças pequenas um vinho português.

Timidez camuflada

A conversa envereda para as festas. Zilda diz que quando era mais jovem saía muito à noite, e nessas ocasiões precisava de aditivos para vencer "uma timidez que pouca gente conhece". Na ocasião, anos 1980, a droga social era a cocaína. Frequentadora das colunas sociais e de clubes noturnos como o lendário Hippopotamus, a atriz conta que era "da gandaia". Mas localiza isso em um tempo remoto:

"A loucura mesmo foi até os anos 1990. Quem tinha um mínimo de bom senso sabia que aquilo era destruidor. Não sei os homens, mas as mulheres depois dos 40, 45 anos percebiam que, se permanecessem naquela onda, iam ficar um bagulho."

O curioso, diz ela, é que tem gente que não era nascido e fica com inveja de quem viveu tudo aquilo. "Mas não tem jeito: aquele tempo não volta. Inclusive, porque hoje a 'cocaína' é uma mistura de farinha de trigo com pó de vidro."

Maria Zilda no Hippopotamus, entre o jornalista Tarso de Castro, o humorista Chico Anysio e o diretor Daniel Filho (Foto: Arquivo Pessoal)

Puro fumo

Sentada no sofá da sala da casa de três andares onde mora há 35 anos, no Jardim Botânico carioca, zona sul da cidade, Maria Zilda afaga o gato Osho e pega no bolso do moletom branco um cigarro de "puro fumo" ("sem todas aquelas 5 mil substâncias tóxicas dos industrializados"). Está sem maquiagem, com o cabelo puxado para trás e preso dos dois lados por grampos. Usa pantufas. Diz que só fez cirurgia estética nas pálpebras. "Penso que o rosto tem de guardar um pouco da nossa história. Tristezas, alegrias, gargalhadas."

Naturalmente engraçada, ela comenta que quando voltava da dermatologista, no dia da entrevista, a locutora da rádio que ouvia informou que a cantora Madonna estava fazendo 61 anos: "Dei um grito de alegria, quase bati o carro! Pensei: 'A Madonna também faz aniversário! Meia um! E eu, daqui a pouco, vou fazer 66. Meia meia!"'

Capa da "Playboy", 1985, quando fazia "Vereda Tropical" (Foto: Reprodução/UOL)

Novela sem avó

Apesar de garantir que não sofreu crise de idade, como muitas atrizes, ela se queixa de "falta de papéis para atores velhos no Brasil". "Não tem mais avó em novela. Atrizes de 20, 30 anos já se enchem de Botox, ficam deformadas, você não as reconhece. E eu não vejo compromisso dessa geração com o ofício de atuar. Muitos não estão minimamente preocupados com o personagem, querem apenas aparecer na TV. Você dá R$ 5 mil, uma cocada e uma mariola, e eles topam fazer."

Por essas e outras, Maria Zilda Bethlem resolveu não participar mais de novelas. "Quando fiz 'Êta Mundo Bom!', em 2016, decidi que foi a última. Pensei: 'Não é possível que eu tenha vindo ao mundo nessa encarnação só para fazer novela'." A decisão veio junto com um desencanto em relação ao aparato em torno das celebridades. "Eu não queria mais aquela coisa de entrar nos lugares e (imitando o barulho dos flashes) pá, pá, pá. Isso foi me enjoando."

Ator-celebridade

Para ela, muito do advento do ator-celebridade se deve ao apelo das mídias sociais. "Um diretor amigo meu me contou outro dia que eles estavam fazendo a escalação de uma novela e ficaram em dúvida entre duas atrizes jovens. Aí, um deles disse: 'Escolhe essa aqui que dá mais clique'."

"Aí, você pega atrizes como eu, a Renata Sorrah, que eu nem sei se tem Instagram, a Debora Duarte, a Lúcia Alves, ninguém é chamado. A TV Globo acabou."

Beleza madura

A beleza de Maria Zilda amadureceu, ganhou a dignidade das veteranas, sem prejuízo do magnetismo próprio de sua personalidade. Nitidamente desacelerada — não desanimada — ela diz que não tem mais muito interesse em sair de casa à noite. "Pra quê? Pra pagar 150 reais por um prato de comida e ainda correr o risco de levar um tiro na rua? Prefiro comer na minha casa."

Por conta disso, Maria Zilda Bethlem diz que está "quase chegando no ponto da Greta Garbo (atriz sueca que se recolheu no auge da carreira)". "A diferença entre mim e ela, é que ela não queria mais ser atriz. Eu, não. Eu tenho um tesão de mico pelo que eu faço."

Maria Zilda conta tudo no programa Senta que lá Vem

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.