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Paulo Sampaio

O Boni me fez sentir humilhado, diz ator da Globo e dublador de Wolverine

Paulo Sampaio

25/08/2019 04h00

Isaac Bardavid e a versão em "boneco" de Wolverine (Foto: Taís Vilela/UOL)

O ator Isaac Bardavid, 88 anos, trabalha há 61 na TV e já fez 43 novelas, mas o público nas ruas costuma reconhecê-lo mais pela voz do que pela fisionomia. Quando ele fala, os ouvidos ao redor instintivamente ligam sua figura à de personagens como o Esqueleto (He-Man), Wolverine, Tigrão (ursinho Pooh) e Freddy Krueger, entre muitos outros. Todos dublados por ele. 

Momentaneamente, os fãs daqueles personagens transferem sua admiração para Bardavid, que, por sua vez, não se incomoda em ser idolatrado "por tabela". "O trabalho do dublador não é arte, é uma colagem feita em cima do que já existe", diz ele, sem afetação de falsa modéstia. Eleito em duas ocasiões o melhor dublador do Brasil (nos anos 1960 e em 2017), Isaac Bardavid acredita que "arte é aquilo que você cria a partir do nada". "Quando o sujeito tem um bloco de mármore e esculpe um Davi, aí sim a gente chama de arte." 

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Tigrão, ao centro, a caricatura de Bardavid e os diplomas do dublador (Foto: Taís Vilela/UOL)

Surra de guarda-chuva

Se alguém tenta sugerir ao inarredável Bardavid que sua opinião é um tanto radical, ele se impõe na base do talento vocal. "Um dublador depende mais de habilidade do que de qualquer outra coisa!", diz ele, apelando para um vozeirão que remete ao malvado capataz Francisco, da novela "Escrava Isaura" (1976), seu personagem mais lembrado na TV. Com Lucélia Santos e Rubens de Falco nos papéis principais, a novela foi exibida em cerca de 80 países e assistida, só na China, por 300 milhões de pessoas. O ator construiu um Francisco particularmente convincente.

"Por mais de três vezes eu escapei de apanhar na rua. Numa delas, no supermercado, uma senhora de uns 70 anos começou a dar guardachuvadas com muita força no meu rosto, perguntando porque eu maltratava tanto a Isaura. Eu perdi a paciência. Segurei o braço da mulher e falei: 'Eu só não revido porque estou vendo que a senhora é uma velha descontrolada!"'

Bardavid reconhece que, se conseguisse moderar seu temperamento e fosse mais político, estaria em "outro patamar" (na escala de prestígio na TV). Ele levanta a mão para mostrar a altura do patamar. "Sempre me dizem que eu falo o que não deveria", diz ele, antes ou depois de fazer declarações como: "As atrizes sorriem na frente do público e se mostram muito amigas, mas é pura falsidade. Eu morro de rir quando vejo na tela da TV aquela beijação, e minha querida pra cá, minha querida pra lá. Tudo aquilo é representação. Ali, todas são rivais."

Isaac Bardavid com Léa Garcia, que fazia Rosa em Escrava Isaura, cúmplice do capataz Francisco (Foto: Acervo/TVGlobo)

Oito às cinco

Em papeis coadjuvantes, Isaac Bardavid sempre  "funcionou muito bem" –como se diz no jargão televisivo. Depois de Francisco, ele foi o dono de um botequim em "Locomotivas" (Cassiano Gabus Mendes/1977), e irmão do pai do galã (Márcio Hayala/Tony Ramos), em "O Astro" (Janete Clair/1978) –duas novelas de muito sucesso.  Nos anos seguintes, em um momento particularmente ruim de trabalho, ele se perguntou com amargura porque não era contratado da TV Globo, se todos os colegas que começaram junto com ele tinham sido.

Havia uma suspeita. "Eu era do tipo que ia para a televisão, fazia o meu trabalho e voltava pra casa. Na época, os atores se reuniam no (restaurante) Fiorentina (famoso ponto de encontro de artistas no Leme, zona sul do Rio), eu ia para Niterói (na região metropolitana, onde mora até hoje). Não sabia nem quem era o chefão na Globo, o sujeito que mandava em todo mundo."

De braços abertos

Um dia, Isaac Bardavid resolveu ir pessoalmente à direção da emissora. "Tomei coragem e bati na sala do Boni (José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, diretor-geral)", lembra.  "A secretária perguntou a quem deveria anunciar, eu disse, e momentos depois ela me fez sinal para entrar."

Boni, que nunca havia visto o ator em pessoa, o recebeu de braços abertos: "Bardavid! A que devo a honra?"

Muito humildemente, o visitante explicou sua angústia. Em tom de surpresa, Boni perguntou: "Mas você não é contratado?? Então está resolvido! Vai ser agora!" O coração do desempregado, pai de três filhos, pulsava: "Ele (Boni) pegou o telefone na minha frente e fez uma ligação. Em seguida, disse para eu passar na sala do (Edwaldo) Pacote (assessor administrativo) para acertar minha contratação."

Chá de cadeira

A espera por Pacote, segundo Bardavid, levou cerca de duas horas. "Em dado momento, eu perguntei à secretária se ainda demoraria muito tempo. Ela me informou que 'infelizmente o sr. Pacote teve um problema de saúde em casa e precisou ir embora'. Abrindo a agenda, ela perguntou: 'Vamos remarcar para quarta-feira (dali a dois dias)? Pode ser às 14h?"'

Na quarta-feira, Bardavid enfrentou mais duas horas de espera, seguidas de outra desculpa da secretária e novo agendamento de horário. Nunca mais voltou. "Compreendi que não ia ter contratação nenhuma. Aquilo era combinado entre os dois (Boni e Pacote). Eles iam me deixar esperando até que eu desistisse. Não devo ter sido o primeiro. Saí dali me sentindo muito humilhado, o último dos atores."

O blog procurou Boni, mas sua secretária informou que ele estava em trânsito, na ponte-aérea, e não se dispôs a anotar um recado. Edwaldo Pacote morreu em 2009.

Piada de sapatão

O desprezo da direção da TV Globo não impediu Isaac Bardavid de fazer ainda muitas novelas na emissora –não como contratado, nem com salário digno de um veterano. Se por um lado ele não possuía a ganância esperada de um ator naquele ambiente, por outro pode manter-se fora do alcance de intrigas. "Eu não ameaçava ninguém", diz.

Em seis décadas de televisão, ele só consegue se lembrar de um momento particularmente delicado, com uma atriz que fazia sua mulher na novela em que dois trabalhavam (ele não quis revelar nomes).

"Eu contei pra ela uma piada de sapatão, sem saber que ela própria era sapatão. A mulher passou a me ignorar como se eu fosse um merda. Aquilo me deixou chocado. Essa atriz, pra mim, morreu."

Politicamente incorreto

Caso frequentasse o Fiorentina, Bardavid provavelmente saberia a orientação sexual da colega. O que não adiantaria muita coisa. "Não sei a quem interessa essa história de politicamente correto. Nós perdemos todas as nossas liberdades individuais. Antigamente, a gente fazia piada de preto, de português, de bicha, ninguém ficava ofendido", diz ele, que é judeu descendente de turcos.

Eleitor de Bolsonaro, Isaac Bardavid não se arrepende de ter votado no presidente, cujo desempenho é considerado desastroso por especialistas de todas as tendências. "Ninguém é Deus", diz o ator. "Não estão deixando o homem governar".

Assim como Bolsonaro, Bardavid encara o "comunismo" do mesmo jeito que He-Man enxerga o Esqueleto. Ao elogiar Lucélia Santos, por exemplo, dizendo que ela é muito bacana como colega de trabalho, ele abaixa o tom e completa com uma voz ao mesmo tempo grave e soprada: "Vermelha (comunista) que só ela. Agora mesmo está denegrindo a imagem do Brasil lá fora", diz ele, referindo-se às críticas que a atriz faz em Portugal, onde mora, ao governo Bolsonaro.

E piada de judeu, podia? "Claro! Cansei de ouvir!"

Ponto eletrônico

Em um novo rompante de revelações, Isaac Bardavid afirma que "essa história de ator dizer que precisa de uma concentração enorme para entrar no personagem  (ele se contorce em um arremedo cômico e coloca as mãos dramaticamente na cabeça) é tudo balela". "Muitas vezes os capítulos da novela chegam para a gente em cima da hora da gravação, e mal dá tempo de ler. Você acha que alguém vai 'estudar o personagem'?  Muitos atores, mas muitos, usam ponto eletrônico."

Bardavid gosta de contar a história de um ator muito seu amigo, que só trabalhava com ponto eletrônico. Os dois atuaram juntos em um espetáculo de teatro e, no dia da estréia, a crítica mais temida da época, Bárbara Heliodora , foi assisti-los. "Ela elogiou muito a atuação dele, disse que era contida kkkk. Mal sabia ela que a contenção era a espera pelo ponto."

Sem nenhuma arrogância, Bardavid afirma que até hoje tem uma memória excelente e nunca usou ponto. "Eu não posso usar, por causa disso aqui, ó (aponta para o aparelho para surdez no ouvido)."

Palavra de veterano

Casado há quase 60 anos, ele e a mulher moram separados há 30. "Não estava dando certo, nos separamos fisicamente, mas não no papel." O casal tem três filhos, cinco netos e um bisneto.

O trabalho mais recente de Isaac Bardavid em TV foi na minissérie "Os Carcereiros", da Globo (2017). Diz que não assiste novelas ou séries, nem mesmo quando ele está no elenco. Prefere não se martirizar. Com a experiência de quem começou junto com a televisão, ele é taxativo: "Todo ator minimamente honesto, quando se assiste na TV, tem obrigação de achar que poderia ter feito melhor."

Errata: Diferentemente do publicado anteriormente, o ator Isaac Bardavid interpretou o feitor da fazenda Francisco, aliado de Leôncio (interpretado por Rubens de Falco). 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.