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Paulo Sampaio

De Duque de Caxias para a Sorbonne, estudante negro diz como 'virou o jogo'

Paulo Sampaio

06/10/2019 04h35

O caminho percorrido pelo estudante Elian Almeida entre Duque de Caxias, na temerosa Baixada Fluminense, e a Université de Paris-Sorbonne, uma das instituições de ensino mais prestigiadas do mundo, foi bem maior que os 9 mil quilômetros que separam o Brasil e a França. É preciso contabilizar a distância imposta pelo preconceito social, racial e geográfico que ele teve de enfrentar até o embarque para a Europa.

Quinto e último filho de uma família de renda modesta, Elian, 25 anos, conta que sua mãe é uma dona de casa que no passado trabalhou como empregada doméstica, e seu pai um crente que tem a vida profissional "atrelada a questões religiosas". Explica que seu nome tem origem hebraica e significa "pertence a Deus".

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Elian Almeida, cercado por seus trabalhos, no estúdio onde mora em Paris (Foto: Arquivo Pessoal)

Líder em homicídios

Em Duque de Caxias, Elian foi criado no bairro do Corte Oito, onde cursou o ensino fundamental na rede pública. A Baixada Fluminense é tida como a região mais violenta do Rio. De acordo com dados divulgados pelo Instituto de Segurança Pública (ISP), em agosto liderou o ranking de homicídios no estado, com 30 % (ou 97 casos). Os números de Caxias representam 22% desse total.

Foi ali que Elian entendeu, desde cedo, que só conseguiria conquistar sua independência através dos estudos. Diante do boletim repleto de notas altas, seus irmãos se cotizaram para bancar para ele uma escola particular. "Eles estudaram o tempo todo na pública, porque na época minha mãe era doméstica e não podia pagar. Então, o esforço da família não era só um sinal de confiança em mim; eu me vi diante de uma grande responsabilidade", conta ele.

Fenômeno educacional

Concluído o ensino médio, em 2015 ele passou no vestibular para o curso de artes visuais na conceituada Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Por um desses contra-sensos do sistema educacional brasileiro, a grande maioria dos aprovados no exame para faculdades públicas, bancadas pelo governo, pertence a uma elite que pode pagar os estudos em escolas particulares.

Isso porque a grande maioria das escolas particulares são mais bem avaliadas que as públicas. Então, paradoxalmente, quem cursou o ensino fundamental em uma escola municipal ou estadual estaria menos preparado para entrar em uma universidade pública. Entrando na privada, precisaria desembolsar um dinheiro que nunca teve para frequentar uma escola paga.

"Ser um estudante negro em uma das melhores universidades do país é um ato político", diz Elian. Ele não pensa em sua formação apenas como um diploma, mas como "uma experiência que trará retorno para negros, pobres e moradores de periferia que nunca tiveram acesso a um estudo de qualidade". 

Elite sucateada

Eis que, por outro contra-senso do sistema educacional brasileiro, em 2016 a UERJ ("uma das melhores universidades do país") estava sendo sucateada graças à crise financeira pela qual passava o estado, depois da gestão fraudulenta do ex-governador Sérgio Cabral — preso naquele ano por corrupção passiva, lavagem de dinheiro e organização criminosa. Em agosto, Cabral foi condenado pela 10a. vez, e agora acumula uma pena de mais de 200 anos de prisão. Seu sucessor, Luiz Fernando Pezão, apoiado por ele, também está na cadeia.

Pioneira em programas de ação afirmativa, a UERJ deixou de pagar bolsas em março de 2016. Professores e servidores técnico-administrativos passaram a receber salários atrasados, isso quando recebiam. O bandejão da faculdade, que era usado principalmente por alunos mais pobres, foi fechado. As aulas que se davam em 2017 eram referentes ao segundo semestre de 2016.

Universidade Estadual do Rio de Janeiro, em 2016, quando se noticiou seu sucateamento

Université de Paris, Sorbonne (Ana Carolina Dani/Folhapress)

Aula com refugiado

Mas Elian já era sobrevivente bem antes de entrar para a faculdade, e logo viu que, mesmo cursando uma universidade renomada no Rio, não alcançaria ali o que imaginou para o futuro. Foi então que se candidatou a um intercâmbio que integra  um acordo de mobilidade entre universidades brasileiras e estrangeiras. Seu interesse era Paris. Mas faltava falar francês.

Informou-se sobre um projeto chamado "Abraço Cultural",  em que os professores são refugiados de todas as partes do mundo: "O meu era da República Democrática do Congo, médico e formado na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Existe uma base pedagógica e de capacitação dos professores. Fiz dois módulos, depois continuei sozinho."
Para bancar as despesas com a ida e a chegada a Paris, Elian promoveu uma vaquinha virtual que angariou 153 colaboradores, incluindo pessoas que ele não conhecia, e que rendeu, em uma semana, 21 mil reais. Conseguiu a passagem com o patrocínio de uma cia aérea. O estúdio onde ele mora é subsidiado pela Sorbonne, faz parte da residência universitária

Ataque racista

No meio do caminho, pouco antes de ir para França, havia outra pedra. Pela primeira vez, Elian passou por um ataque frontalmente racista. Ele trabalhava como educador no Museu de Arte do Rio, no centro da cidade, quando se ofereceu para atender um turista norte-americano que apareceu procurando informações. Ao perguntar ao visitante, em inglês, se precisava de ajuda, Elian foi ignorado. O turista virou-se de costas e disse: "Não quero negros".
Chocado, ele correu até a base da guarda municipal, enquanto o turista americano tentava sair dali, mas acabou sendo levado ao distrito policial.  "Foi um momento marcante, porque eu me vi psicologicamente fragilizado. Já tinha passado por atos racistas, mas de maneira velada, em um comentário, em uma aula na universidade. Há quem acredite que existe democracia racial no Brasil, mas os números de mortos entre pessoas negras evidência o contrário. Uma nova geração de artistas, intelectuais, acadêmicos negros, na qual eu me incluo, está aqui para continuar a reivindicar nossa história.  Essa geração é tudo que o atual governo brasileiro teme."

Elevador de serviço

O discurso de Elian não soa rancoroso, mas documental, como um registro. Ele prefere olhar pra frente: "É importante pontuar mais  uma vez que fui vítima de agressão racial, mas no momento meu objetivo é construir uma base sólida em Paris, continuar minha pesquisa em artes visuais, com a possiblidade de atuar com direção criativa e no campo cinematográfico. Espero que, em breve, eu consiga transformar a experiência que eu acumulei no Brasil e aqui, e levar a quem ainda não tem acesso à educação pública e de qualidade. Quero criar um espaço para reverter aquilo que quase me derrubou e impede que milhões de pessoas negras acreditem em seus sonhos ou os construam."
Em Paris, ele diz que sua mãe, enquanto doméstica, não precisaria utilizar o elevador de serviço. Ele não encontra babás de branco nas ruas, nem tem notícia de quartos de empregadas nos apartamentos. Por outro lado, vê negros ao volante de carros de luxo — não na condição de chauffeurs. Mas não se ilude: "Por melhor que seja o status social de uma pessoa negra, isso não a isenta de sofrer racismo. Está marcado na pele, por uma construção secular baseada em um contrato racial. Mesmo que eu veja pessoas negras sentadas em cafés sofisticados aqui, a constituição de um pensamento europeu como o centro do mundo, e os outros à margem, é fundamental para entender o racismo estrutural. Eles são extremamente elitistas e cultivam de maneira rígida um modo de vida que serve para conservar uma condição centenária de dominação. E não querem perder isso."

Tomado como branco

Por estudar em uma universidade frequentada pela elite do Rio de Janeiro, Elian diz que era tomado como branco. O intercâmbio não levou essa circunstância para a França. "Na Europa, esse código evidentemente não é reconhecido, porque toda a estrutura educacional injusta do Brasil é um fenômeno muito próprio. Então, em Paris eu continuo negro. E isso significa que o racismo é tão presente na França, quanto no Brasil."
No discurso de Elian, fica claro que ele não abandonou a lucidez e o senso de realidade no extenso caminho que tem percorrido até aqui. Isso não o impede de ostentar um sentimento de orgulho, com toda razão. Foi uma vitória para ele. Não necessariamente para o Brasil. Este ano, o governo bloqueou 44% das verbas de custeio das universidades federais, afetando a rotina de aulas e as pesquisas.  Em algumas instituições, as salas de aula ficaram sem luz, o bandejão perdeu o bife e os vigias foram dispensados. Haja alunos como Elian para superar o desprezo do governo pela educação.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.