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Paulo Sampaio

"Até sou feminista, mas nunca quis rezar missa", diz freira progressista

Paulo Sampaio

15/01/2020 04h00

Ao fim da missa de sétimo dia em memória do morador de rua Carlos Roberto Vieira da Silva, morto no último dia 5 depois de atearem fogo a seu corpo*, padre Júlio Lancellotti chama à frente da nave da catedral da Sé a irmã Regina Manoel. Coordenador da Pastoral do Povo da Rua da Arquidiocese de São Paulo, Lancellotti luta ferrenhamente desde os anos 1980 pelos direitos dos desfavorecidos.

Muito reverenciada não só pelo padre, mas também pelos cerca de 30 moradores de rua que assistiram à missa, a freira é abraçada por eles e diz algumas palavras sobre a dificuldade de atender àquela população. "A gente faz tantos esforços para que todas as pessoas tenham oportunidade à vida, e no fim a morte parece  cada vez mais sofisticada", diz Regina, 67 anos, há 40 se dedicando incansavelmente à ações com moradores de rua.

Com Padre Julio Lancellotti e o vereador Eduardo Suplicy (PT-SP), no dia da missa de sétimo dia da morte do morador de rua Carlos Roberto Ribeiro da Silva (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Morte sofisticada

O termo usado pela irmã está ligado à tecnologia. Para Regina, a escalada de casos como o de Carlos Roberto tem a ver com a banalização de acontecimentos horripilantes promovida especialmente pelas redes sociais e pela mídia:

"Parece que é preciso vir sempre algo pior para que as pessoas se sensibilizem. A vida está desvalorizada. A do pobre, então. Hoje, aparece uma desgraça, a de amanhã é mais forte, e por aí vai. Tudo muito rapidamente, no ritmo imposto pela internet. Nosso presidente fala uma bobagem pela manhã, de tarde ele já fala outra, de noite, outra. No dia seguinte, recomeça. E fica tudo por isso mesmo".

Albergue não é casa

Em 1977, encantada com os relatos de uma amiga, ela ingressou na Fraternidade das Oblatas de São Bento, ligada à Organização de Auxílio Frateno, fundada em 1955. Na fraternidade, ela prestava assistência sobretudo a mães solteiras e crianças de rua, que na época eram chamadas de "abandonadas".

"O processo migratório no Brasil era intenso, a quantidade de gente nas ruas aumentava. Não havia nenhuma ação do governo direcionada para essas pessoas, a não ser no sentido de reconduzi-las ao estado de origem. Havia um albergue, do estado, mas quem não queria ir para lá ficava na rua."

Nem convento, nem hábito

Para os leigos, a luta de Regina pelos direitos dos mais pobres, enquanto religiosa, pode parecer pouco ortodoxa. Ela nunca viveu em convento ou usou hábito, não é de liturgias e defende que as ações com os moradores de rua devem ir até eles. "Antes da igreja e da religião, eu sigo Jesus. Tanto que pode mudar o bispo, o prefeito, e a nossa fraternidade permanece a mesma nos princípios."

No fim dos anos 1980, depois de uma análise das ações que a organização vinha desenvolvendo, chegou-se à conclusão de que o contexto social havia mudado bastante e que não faria sentido mantê-la. "Era um serviço que não tinha mais futuro. Para nascer o novo, seria preciso antes por fim àquele." Ficou apenas um escritório e 12 irmãs que integravam uma "equipe de base". Nesse "novo caminho", Regina diz que a prioridade passou a ser as pessoas adultas que viviam no centro de SP. 

Convicta desde sempre

Nascida em Botucatu e criada em Assis, em uma família de oito irmãos, Regina Manoel logo decidiu dedicar sua vida à espiritualidade. "Primeiro, eu participava de um grupo de jovens no interior, depois vim para São Paulo e então me uni à organização", lembra ela, que cursou serviço social.

Na entrevista abaixo, ela fala de sua devoção aos menos favorecidos, desde o início, da experiência com o morador de rua (antes e agora), da ausência de políticas públicas para lidar com o problema, e também de celibato, casamento, feminismo e identidade de gênero.

Universa — A senhora escolheu se dedicar à causa da população carente. Sempre como religiosa?

Irmã Regina —  A princípio, no interior, eu fazia parte de um grupo de espiritualistas. Era isso que eu buscava. A ordenação veio bem mais tarde. Quando cheguei em São Paulo, eu fui morar em um centro de espiritualidade, em Vargem Grande Paulista (região sudoeste), e trabalhava na secretaria do Desenvolvimento Social do Estado de São Paulo. Uma das minhas companheiras de comunidade, que era assistente social na Organização de Auxilio Fraterno, me contava como as coisas aconteciam lá e eu fiquei muito interessada.

Um  dia, ela me falou que a organização precisava de uma pessoa para o trabalho diurno da ronda nas ruas, que até então era feito à noite. Eu me candidatei.  As irmãs disseram que não podiam fazer novas contratações, mas sabiam da necessidade de uma pessoa. Então, repartiram o salário de uma delas para me contratar. Nunca tinha visto um desprendimento assim. Pensei comigo: "É aqui !"

Universa — E como se tornou freira? Chegou a entrar para um convento?

Irmã Regina — Não, nunca gostei de uniforme. Aos poucos, me encantei com o modo de vida das irmãs e, no final de 1978, fui morar com elas para uma experiência. Em 1980 iniciei o noviciado, e em 1984 fiz meus primeiros votos. Foi quando me tornei freira. Em 1990, fiz minha profissão monástica.

Universa — Antes disso, nunca pensou em se casar e ter uma família?

Irmã Regina — Eu sempre achei que o casamento e o dia a dia doméstico restringia muito a vida das mulheres. Meus sonhos eram muito maiores. Eu queria ser professora no Amazonas, participar de ações no Brasil todo.

Universa — De certa forma, a senhora escolheu a independência. Considera-se feminista?

Irmã Regina — A gente (organização) nunca se rotula. Se você for fazer uma avaliação profunda da nossa postura de vida, nós somos feministas. Fizemos tudo sem ajuda de nenhum padre. O padre Julio promove a organização, mas não foi ele que a inventou.

Universa — A senhora acha que as mulheres, supostamente mais sensíveis, têm mais empatia em relação ao morador de rua?

Irmã Regina — Olha, essa coisa de "feminista", eu não entro por aí. Se você me perguntar: "Regina, você quer celebrar missa?" Eu vou dizer: "Não! Eu nunca quis ser padre!"  Isso é uma escravidão. Celebrar todo dia uma missa, não, obrigada. Quero estar junto com o povo da rua, onde a gente reparte o pão de fato.

Universa — Para quem convive de perto com o morador em situação de rua, os títulos devem soar desimportantes. Mas o religioso tende a ser machista em relação a padres e freiras.

Irmã Regina –– O povo valoriza o padre. Tem isso inculcado. A gente não tira o valor deles (padres). Mas eles vão embora, a gente segue a nossa vida. Eu acho até que sou feminista, mas não careta, xiita, radical. Faço o possível para não ser machista. Trabalhei em uma casa abandonada na rua Tamandaré (centro de SP), que tinha de tudo. Eu me lembro de um casal cuja mulher batia no homem. Eu dizia: "Não posso concordar. Nem que o homem bata na mulher, nem que a mulher bata no homem. Eu sou contra a violência!" Eu nunca fiz diferença. Na minha concepção, todo mundo é igual, homem, mulher, gay, travesti..

Universa — Antes, não se falava em morador de rua homossexual. Como se não fosse possível ser as duas coisas. Havia preconceito?

Irmã Regina — .Da minha parte, nunca. Eu vou negar um prato de sopa porque a pessoa é travesti? Apenas acho que a sigla agora está enorme, LGBTQ. O que significa esse "Q"?

Universa —  Queer

Irmã Regina — Queer?

Universa — Ao pé da letra, a expressão em inglês designa alguém "esquisito". Na gíria, pode significar "bicha". Mas passou a ser usado em relação a pessoas que não se encaixam nos padrões de identidade de gênero ou orientação sexual determinados pela sociedade. Existe inclusive uma "teoria queer", que defende que o gênero e a orientação sexual dos indivíduos não são uma determinação biológica, mas uma construção social.

Irmã Regina — Vou ficar sempre defasada com essas letrinhas…

Universa — A senhora é celibatária? 

Irmã Regina — Sim.

Universa — Sexo não faz falta?

Irmã Regina — É um detalhe. A afetividade, o carinho, a atenção com as pessoas que precisam da gente, tem muita coisa que pode nos dar prazer. E olha, são mais de 40 anos.

Universa — De lá para cá, o número de moradores de rua cresceu exponencialmente. O que eles mais precisam? 

Irmã Regina — De casa. Hoje, a política forte no município é o albergamento. É uma política equivocada. Não existe porta de saída nesse sistema. E albergue é emergência, não permanência. O que vai trazer resultado é moradia com acompanhamento.

Universa — E o que falta?

Irmã Regina — Trabalho. E empatia da população com histórias de perdas. Se você perguntar para um grupo que não tem acesso ao morador em situação de rua: "O que vocês acham que ele precisa?", a resposta vai ser: "Ah, eles precisam de um albergue." Agora, experimente fazer a mesma pergunta a um grupo de crianças, de qualquer classe social. Você vai ver que eles responderão: "Precisam de uma casa."

A própria igreja não tem espaço para as pessoas da rua. Elas não podem entrar. Um dos programas que se quer implementar é que todas as igrejas de São Paulo possam oferecer água às pessoas. Chegamos a esse ponto. Antes, a gente dizia "não se nega água", pois hoje se nega. Se você chega a um lugar e pede água, não dão. Qual é a coisa que você mais precisa e que ninguém dá? Tanto que tem muita gente que sai na rua hoje entregando garrafinha de água. Não é nem cobertor mais.

Universa — A Organização Auxílio Fraterno fechou as portas no começo dos anos 1980, e reabriu nos 1990. O que mudou? 

Irmã Regina — Pelo tempo de trabalho, pela nossa visão e pela proximidade com a rua, a gente acabou avançando muito nas missões. A grande conquista dessa mudança foi fazer com que as pessoas ganhassem voz; que começassem a discutir sua própria existência; que tomassem sua vida na mão e fizessem escolhas. Porque você não conscientiza ninguém. A pessoa se conscientiza.

Universa — Isso parece difícil para uma população tão carente de educação, de informação. Por vezes, o morador de rua parece reagir tão passivamente.

Irmã Regina — Pois é. "Deus quis assim, é o meu destino." Só que aí você começa a fazer roda de conversa, e a pessoa vê na história do outro algo muito parecido com a dela própria. E diz: "Peraí, o que leva a gente a viver as mesmas dificuldades?" Então,  descobre-se que tem todo um sistema gerando aquilo. E ela começa a ter um senso crítico.  Se você conversa com os meninos do movimento, vai ver que eles têm uma consciência muito grande.

Universa — Mas o Brasil é muito grande.

Irmã Regina — Atualmente, os movimentos são nacionais. A gente tem feito encontros grandes. O movimento dos catadores de lixo, por exemplo, nasceu conosco, na baixada do Glicério, e hoje eles fazem capacitação no Haiti. Discutem  política reversa com a Coca-Cola. Do outro lado, a Prefeitura de São Paulo não apoia. Você entende a controvérsia?

Universa — Em relação ao crack, a senhora acha que as políticas públicas falharam?

Irmã Regina — Não, é pior. Elas praticamente não existiram. Isso fez com que o problema fosse longe demais. Agora, os métodos utilizados no enfrentamento do problema não se adaptam à realidade. Não adianta querer resolver as cracolândias com violência, confinamento, nem com religião. A droga não cai do céu. As famílias e os dependentes que buscam tratamento não encontram. Cada governo quer criar um programa e colocar a sua marca. O único em que vi um pouco de resultado foi o "Braços Abertos" (multi- secretarial, com adesão e redução de danos). Esse é um assunto que precisa ser debatido seriamente, e merece uma implementação firme de programas sem slogans.

 

O caso Carlos Roberto

*Em relação ao assassino de Carlos Alberto Vieira da Silva, tanto os moradores de rua quanto o padre Lancellotti e Regina desconfiam da história contada pelo homem que confessou o crime, Flausino Cândido Filho, 49 anos. Flausino, que também é morador de rua, disse à polícia que havia sacado R$ 10 mil reais dois dias antes, e que só Carlos Roberto sabia disso — portanto, o dinheiro estaria com ele. Padre Julio: "Se o criminoso ateou fogo no Carlos Alberto por causa dos R$ 10 mil, ele acabou queimando o dinheiro também. Não faz sentido."

Para o padre, "a polícia erra ao divulgar tão rapidamente uma versão do crime". "Eles querem dar uma satisfação imediata à sociedade. E a culpa, no fim, acaba sendo sempre do defunto."

Os delegados que estavam apurando o caso afirmaram a princípio que história contada por Cândido ainda precisava ser esclarecida. Procurada, a secretaria da Segurança Pública de São Paulo disse que não poderia informar muito sobre o caso, para não atrapalhar a investigação. Até o fechamento deste texto, não comunicou nenhum avanço.

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.