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Paulo Sampaio

No camarote VIP do Salgueiro, mulherões, alegorias, animal print e rissoles

Paulo Sampaio

07/11/2017 08h00

Um amigo me recomenda ir ao ensaio do Salgueiro no sábado, diz que "tá bombando". Só não vai  comigo porque já não é novidade pra ele (nem para mim, mas eu quero ir). O ensaio é na quadra da escola, que fica na Tijuca, zona norte do Rio.

Regina Celi, presidente do Salgueiro, mostra a representação do enredo de 2018, "Senhoras do Ventre do Mundo" (Foto: Paulo Sampaio)

Nascido e criado na cidade, ainda assim fico maravilhado com o traquejo do carioca para receber seus convidados. Você chega, logo alguém te pega pelo braço, apresenta a todo mundo e em cinco minutos você está comendo um rissole de camarão meio frio, ou um bolinho de milho, disponíveis em um prato de papelão esquecido no camarote VIP. O anfitrião oferece com tanta segurança, tanto humor, que mesmo que não seja o seu salgadinho favorito, é impossível não aceitar. De repente, você se vê até sambando, coisa que nunca fez na vida. Quando venho de São Paulo, onde moro há 30 anos, essas ocasiões me levam a experimentar um retorno proustiano.

Roupa apertada, sorriso frouxo

No caso do ensaio do Salgueiro, em volta de mim orbita uma profusão de mulheres grandes, pedaçudas, cenográficas, que surpreendem pela capacidade de sorrir de verdade, não importando o quão justo, curto e decotado é o modelo do vestido. Aparentemente, elas não passam aperto. São rainhas, princesas, musas, destaques, as estrelas da noite.

Converso com Selminha Sorriso, 46 anos: "Sou a mais antiga porta-bandeira em atividade", afirma ela, que só de Beija-Flor tem 23 anos. (Descubro que as escolas se frequentam — está ali também a filha do presidente da Imperatriz Leopoldinense).

Com 1,69m, 66kg, 104cm de quadril, 80cm de cintura e 63cm de coxa, Selminha Sorriso está dentro de um vestido preto e branco colado no corpo, relativamente discreto para os seus padrões. "É que eu tô vindo do show do Jorge Versilo", justifica. "Aí, eu tenho de ir comportada, né?"  Quando o show é dela, a porta-bandeira carrega no brilho. "Agora eu sou musa da escola também", acrescenta ela, entre sapeca e primeira da turma.

Seu sorriso alvo, amplo e abrangente é acionado inclusive quando ela conta uma história de superação. Conta que ficou viúva no ano passado, quando o ex-policial e presidente da Portela Marcos Falcon foi assassinado.  "Fiquei sabendo um dia depois da passagem do meu marido que ele me traiu muito", diz. Quem contou?  "Uma amiga." Mas só depois de ele morrer? "Ela tinha receio de contar antes."  Enfim: "Eu não quero que você coloque isso de maneira negativa. Quero que seja uma mensagem de força para valorizar a mulher que foi traída: gente, nada de ficar na cama deprimida, se enchendo de comida. Eu levantei e fui ser feliz, tinha um filho pra criar!! Hoje, noto que as pessoas (homens) me olham não como um personagem, mas com algo a mais.."

Musa das musas

No dia seguinte, Sorriso iria à parada gay de Acari, no subúrbio da cidade. Ela diz que é uma inspiração para os participantes: "Sou musa das paradas de todos os bairros", sorri.  Além de musa e porta-bandeira, ela conta que é bacharel em direito; 3º sargento do Corpo de Bombeiros e que desenvolve um "trabalho lindo" com crianças da comunidade.

Posa para foto com o compositor Neguinho da Beija Flor, que vai cantar o samba enredo da escola. Neguinho abre uma bolsa pequena Louis Vuitton que leva a tiracolo e tira a letra de dentro: "Ó Pátria amada, por onde andarás/Seus filhos não aguentam mais/Você que não soube cuidar/Você que negou amor/Vai aprender na Beija Flor)"

Pergunto se os versos têm conotação política, Neguinho finge que não ouve. Repito a pergunta. Ele resume: "Eu não cavuco nem tiro terra."

Selminha Sorriso e Neguinho da Beija Flor, na sala da presidência (*Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Sua Excelência

Assim como a história de Selminha Sorriso e a de Negrinho da Beija Flor — que superou um câncer no intestino –, outras "voltas por cima" vão surgindo à medida em que o blog desbrava o camarote. A própria presidente da escola, Regina Celi Fernandes, 50, que está no comando da escola há apenas nove anos, passou por momentos difíceis. A história dela é razoavelmente conhecida, mas, como estamos no Rio de Janeiro, sempre aparece alguém para contar a versão 'comentada'.

"A Regina era casada com o ex-presidente da escola, Luis Augusto Duran (Fu), um sujeito grosseiro, arrogante, que todo mundo detestava. Ela fugiu de casa com 14 anos para ficar com ele, teve quatro filhos e aguentou tudo com aquele homem. Um dia, descobriu que estava sendo traída pela porta-bandeira da escola. Foi embora só com os filhos e a roupa do corpo."

Com o apoio da comunidade salgueirense, Regina Celi conseguiu se eleger presidente e "hoje é adorada por todos". "Passo mais tempo aqui do que em casa. A essa altura, já estou pensando no Carnaval de 2019", diz ela, enquanto dá atenção a muitas coisas simultaneamente.

Fu se deu mal.  Na versão corrente, ele perdeu tudo, está por baixo, cheio de problemas de saúde. "Mas a Regina é um ser tão iluminado que ofereceu até um rim para transplante!"

Muito simpática em um vestido ao mesmo tempo curto e amplo, com um decote que vai até o meio do abdôme, Regina explica o modelo que está usando, posa para fotos com a filha na sala da presidência e circula animadamente pra cima e pra baixo.

Garrafa d'água e suporte psicológico

Procuro o estilista Daniel Zarmano, 33 anos, autor do vestido da presidente. "A Regina tem mania de só usar preto, porque emagrece. Mas eu mostrei a ela que tudo é modelagem.  Já fiz peça branca, com estampa de onça, desenhos geométricos, tribais, africanos…" Zarmano usa um turbante colorido com vários nós, camisa estilo bata branca com bordados nos mesmos tons e calça clara com rasgos na altura do joelho.

Ele conta que começou desenhando os figurinos de alas inteiras das escolas, depois passou para as roupas dos destaques, e então chegou às das rainhas de bateria: "Meu trabalho inclui tudo, eu desenho a roupa, confecciono e faço pessoalmente os ajustes na concentração. Forneço desde a garrafa d'água até o suporte psicológico. Digo que ela está maravilhosa, que vai dar tudo certo, dou segurança a essa mulher."

O estilista e a modelo: Daniel Zarmano e Regina Celi (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Zarmano conta sua história de volta por cima. Foi quando uma musa fitness da Caprichosos de Pilares o procurou no ateliê, pediu para orçar um modelo e fez com outro estilista. "O barato saiu caro", lembra ele, sem raiva. "Ela me procurou de novo na véspera do desfile,  e eu fiz a roupa em quatro dias. Achei que a cola dos cristais não ia secar, mas, no fim, deu tudo certo!!"  Zarmano diz que começou como assistente do carnavalesco Milton Cunha.

Peço ajuda para achar Cunha. Ele aparece de paletó listrado em tons fortes de azul e branco, óculos de armação grande turquesa e cabelos revoltos. Me olha com uma expressão investigativa. "Olá!", diz. E eu:  "Bonitos óculos." Ele: "Tory Burch, querido, chiquérrimo, riquíssimo, norte-americano!" O paletó foi feito com um tecido comprado no Babado da Folia, diz ele, referindo-se a uma rede de lojas localizada em uma região de comercio popular do centro da cidade conhecida como Saara. "90% da minha criação vem de lá", afirma.

Muito animado, Cunha orgulhosamente se define: "Eu sou uma alegoria." E emenda: "O que é uma alegoria?" Responde: "É o discurso que está no lugar do outro."  "Proponho uma vida exacerbada, UUUUU, meus vizinhos ficam apavorados hauahuaha."

Milton Cunha, autodefinido "uma alegoria" (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Efígie africana

O camarote é coloridíssimo, cheio de informações dispostas aleatoriamente. A peça de resistência são tecidos com estampas de zebra, leopardos e onças pendurados como cortinas. Representando o enredo "Senhoras do Ventre do Mundo", pintou-se ao fundo uma efígie "africana" grávida, com a mão na barriga, adornada com brincos grandes, colares e flechas em tons de vermelho, abóbora, amarelo e cinza.  A 'sinopse' do enredo: "Ela… brotou do ventre negro da África, seu povo a deu o nome de Dinikinesh, seu fóssil de milhões de anos era, aos olhos da ciência, a Eva Africana, que deu à luz a humanidade. A partir daí, a história segue seus passos….."

Tecidos em padronagens de pele de tigre e onça: o animal print dominou a decoração (Foto: Paulo Sampaio/UIOL)

Alguns elementos da realeza do samba posam para fotos à frente do painel com a efígie africana, e aí se entende porque as roupas  precisam ser tão chamativas. Se não forem, fica difícil enxergar até mesmo a rainha do carnaval carioca.  "Sou fitness wellness", diz Jessica Maia, 34, referindo-se a uma categoria de sarada "saudável". Ela levanta ligeiramente a coxa hipertrofiada e sorri com o cetro na mão.

A segunda princesa, Cinthia Camillo, 34 anos, que é orientadora educacional, conta sua história de superação: "Até o ano passado, eu tinha 19 quilos a mais. Sofria bullying da galera, me chamavam de gorda." Enquanto posa para fotos, ela conta que participa de projetos sociais na comunidade e concorreu ao título de rainha, mas perdeu porque "estava acima do meu peso e tinha preguiça de subir o morro andando". Não dá para ter muita pena.

Assim como as colegas de realeza, ela diz que não toma bomba. Com 73kg, para 1,70m, explica que se tornou wellness também. Os quatro posam para a posteridade: Cinthia; a rainha; a primeira princesa, Deisiani de Jesus, 28; e o rei momo, Milton Jr, 38.

 

Cinthia, Jessica, Milton e Deisiani (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Prestes a ir embora, cruzo com uma senhora muito magra, vestida de baiana, que me olha como se me conhecesse desde criança. Bem ao estilo carioca, ela começa a falar comigo: "Sou Salgueiro desde 1974. Faz 43 anos, amigo. Sabe lá o que é isso? Quantos anos você tem?" Respondo a pergunta, conversamos um pouco e, enfim, já são quase 3h. Chamo o uber.

Em tempo: desafortunadamente, a rainha da bateria do Salgueiro, Viviane Araújo, não pode ir  ao ensaio no sábado porque está apresentando em São Paulo o espetáculo Lili Carabina, personagem criado por Aguinaldo Silva e vivido no cinema por Betty Faria.

 

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.