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Paulo Sampaio

Post sobre adolescentes trans gera nota de repúdio e resposta de psiquiatra

Paulo Sampaio

09/04/2019 16h28

Foto: Getty Images

A Antra (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) divulgou na segunda-feira uma nota de repúdio à entrevista concedida ao blog pelo psiquiatra Alexandre Saadeh, do Hospital das Clínicas, a respeito de transgeneridade na adolescência. (Confusos, adolescentes querem ser trans para fugir do padrão, diz médico). Saadeh se viu na responsabilidade de comentar a nota.

Na entrevista, o psiquiatra informa que especialistas no Brasil e também na Europa, Canadá e Estados Unidos têm observado que muitos adolescentes, atraídos por um fenômeno midiático e para fugir de um padrão, mostram-se desejosos de se assumir trans — mesmo sem nunca ter apresentado nenhum conflito de gênero. Em sua experiência com essa população, Saadeh percebeu que "na medida em que a mídia divulga a existência de pessoas trans e isso se populariza, muitos transexuais saem da invisibilidade, e isso é importante, mas ao mesmo pode haver a banalização da questão e o tratamento dela como uma moda". Coordenador do AMITGOS (ambulatório transdisciplinar de identidade de gênero e orientação sexual do instituto de psiquiatria do Hospital das Clínicas da faculdade de medicina da USP), Saadeh trabalha há 25 anos com população trans adulta, e há nove com crianças e adolescentes.

A Antra considerou os "apontamentos" do médico  "nocivos e tendenciosos", afirmou que "as informações sobre as identidades trans não se baseiam em nenhuma evidência científica consolidada" e qualificou-as de "completamente equivocadas". "Não existe nenhuma evidência científica capaz de sustentar a ideia de que as identidades trans sejam uma 'moda' capaz de 'confundir' pessoas suscetíveis. Pesquisas que especulam uma nova forma de 'disforia de gênero de surgimento rápido' (que atingiria particularmente meninas jovens) estão profundamente comprometidas em função de falhas metodológicas e vieses ideológicos", acredita a associação.

Abaixo, o texto completo da nota de repúdio da ANTRA e o "outro lado" do psiquiatra Alexandre Saadeh.

NOTA PÚBLICA da ANTRA a respeito da entrevista do DR. Alexandre Saadeh à Universa.

As instituições que assinam conjuntamente esta nota, vêm a público se posicionar sobre a matéria em lide, visto que a mesma faz uma série de apontamentos que consideramos nocivos e tendenciosos frente ao avanço das discussões sobre da autonomia das pessoas trans e a própria despatologização das identidades trans anunciada em junho de 2018 pela OMS e que vem sendo encampada pelo Conselho Federal de Psicologia, que publicou a Nota Técnica 01/2018, tratando especificamente como abordar o assunto.

Na entrevista, Saadeh alega existir "uma maior adesão às variações de gênero como fenômeno midiático" e que pessoas "confusas" e "instáveis" seriam, de alguma forma, "atraídas" ao que se supõe ser um "novo paradigma" decorrente de um "fenômeno mundial". Como se a transgeneridade fosse algo passível de ser contagioso ou transmitido de uma pessoa para outra.

Tais informações e representações a respeito das identidades trans não se baseiam em nenhuma evidência científica consolidadas e estão completamente equivocadas. O que nos faz ter um olhar atento sob suas declarações, visto que o mesmo é coordenador do único serviço especializado no atendimento de crianças e adolescentes trans.

Ele alega que os jovens e crianças seriam de alguma forma "sugestionáveis" a se tornarem transgêneros (quando de alguma outra forma não seriam) em decorrência de alguma espécie de moda ou contágio social. Tais alegações acabam não apenas sendo imprecisas e cientificamente infundadas, mas também coniventes com a reafirmação de estigmas e incompreensões que precisam ser urgentemente superadas, tal como a noção, mesmo que vaga, de que as identidades trans constituem um perigo social a ser evitado. Afirma ainda que pessoas estariam transicionando para se tornarem celebridades midiáticas, ignorando todo contexto de violência que uma pessoa trans, ao externar publicamente sua condição, passa a estar exposta.

Inverte a lógica da luta por visibilidade, sugerindo que a representatividade trans nos diversos espaços sociais estaria "incentivando" que pessoas cisgêneras passassem a se identificar como trans – bem semelhante ao discurso fundamentalista que designa e sustenta a "ideologia de gênero" como algo maligno. Saadeh acaba abrindo mão de observar as singularidades de cada pessoa e que o fato das lutas trans estarem saindo da invisibilidade ter permitido com que mais pessoas pudessem ser quem são de verdade e passem reivindicar as suas reais existências, não mais sob um viés normativo-cisgênero.

Não existe nenhuma evidência científica capaz de sustentar a ideia de que as identidades trans sejam uma "moda" capaz de "confundir" pessoas suscetíveis. Pesquisas que especulam uma nova forma de ''disforia de gênero de surgimento rápido'' (que atingiria particularmente meninas jovens) estão profundamente comprometidas em função de falhas metodológicas e vieses ideológicos. Tomemos como exemplo o artigo de Lisa Littman, "Rapid Onset of Gender Dysphoria in Adolescents and Young Adults: a Descriptive Study", publicado no Journal of Adolescent Health. A autora sugere a existência de um novo "tipo" de disforia de gênero, de suposto "surgimento rápido", decorrente do que a pesquisadora supõe ser uma espécie de contágio social alimentado por um fenômeno midiático, das redes sociais e pela pressão de pares/colegas. Zinnia Jones, Ashley Florence, Alexandre Baril, Julia Serano, Brynn Tannehill, apenas para citar alguns autores que perscrutaram este tipo de alegação, encontraram falhas metodológicas gritantes que enviesam por completo a pesquisa, tais como o fato de Littman se basear somente em relatos, obtidos em fóruns online, de pais que não aceitam as identidades trans de seus filhos.

Desta forma, a entrevista reafirma velhos estigmas e contribui para perpetuar tabus contra travestis, mulheres transexuais, homens trans e demais pessoas trans. Junto a isso, responsabilizando a visibilidade que a comunidade trans tem conquistado pelo que ele chama de "banalização da transexualidade" e reafirmando o olhar médico de que pessoas trans não teriam autonomia sobre suas escolhas, suas vivências ou que nossas existências seriam, vejam só, uma fraude. Ignorando os avanços das pesquisas e discussões sobre a autonomia e os efeitos positivos de um desenvolvimento livre de estigmas e preconceitos contra a condição trans, para justificar um olhar extremamente arcaico e patologizante e que mantém o poder do saber médico, tendo controle sobre a individualidade da pessoa.

Repudiamos esta abordagem, os problemas que ela apresenta e seus efeitos negativos. E reafirmamos nosso compromisso para o enfrentamento de posições tendenciosas que ferem o direito à livre expressão da individualidade humana, a autonomia e a luta pela despatologização das vivência trans.

Brasil, 08 de abril de 2019.

Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA)
Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos (ABGLT)
Articulação Brasileira de Jovens LGBT (ARTJOVEMLGBT)
Coletivo LGBT do MST
Coletivo Transtornar (Campinas/SP)
Fórum Nacional de Travestis e Transexuais Negros e Negras  (FONATRANS)
Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero (GAdvS)
Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE)
Rede Nacional de Operadores de Segurança Pública LGBTI (RENOSP-LGBTI+)
União Nacional LGBT (UNALGBT)

Esclarecimentos relativos à Nota Pública de Repúdio à entrevista do Dr. Alexandre Saadeh à Universa.

Não é primeira e, acredito, não será a última vez em que sou acusado por associações trans de favorecer visão cisheteronormativa, patologizante e excludente em relação à população transexual. Desta vez em uma entrevista na qual defendo essa população, mas também informo da possibilidade de algumas pessoas, apesar de se identificarem como transexuais, são adolescentes, sem história pregressa na infância e possivelmente sugestionáveis pela mídia.

Ou as minhas declarações na entrevista não foram bem lidas, ou se foram, reinou a má interpretação.

Vejamos:

O texto fala claramente de um grupo de adolescentes ou adultos jovens e não a maioria da população trans. Esta população específica busca não apenas o AMTIGOS, mas vários centros de acompanhamento à crianças e adolescentes com disforia de gênero pelo mundo.

Essa parcela da população adolescente trans não apresenta em sua história ou passado a vivência de incongruência de gênero que a maioria da população transexual costuma apresentar. Mas na puberdade ou pouco depois revela-se transexual e busca centro de acompanhamento para mudanças corporais. A grande maioria nasceu no sexo feminino, mas diz ter identidade de gênero masculina.

Esse fenômeno vem sendo questionado em vários países como uma nova manifestação comportamental e gerado vários entendimentos, inclusive sobre a influência midiática sobre ele. Em nenhum momento afirmo que a mídia seria responsável pelo surgimento da transexualidade, mas sim dado visibilidade a ela, o que é ótimo. O que afirmo é que essa é uma das possibilidades explicativas para esse fenômeno adolescente. Em nenhum lugar afirmo ser a única explicação possível.

Não entendo o tom da nota de repúdio, já que todos que trabalham com adolescentes sabem que essa é uma fase do desenvolvimento humano onde a experimentação, exploração e exercício da liberdade de ação contribuem para o estabelecimento e reconhecimento de quem verdadeiramente se é.

Muitos transexuais mais maduros, em sua fase adolescente se reconheceram como homossexuais e isso em nada influenciou em sua identidade final. Muitas vezes por que era o que a mídia na época informava e reproduzia sobre diversidade sexual.

Não podemos esquecer que até nove anos atrás, não se falava de crianças e adolescentes transexuais. Fui o primeiro profissional a divulgar o tema e ainda o faço.

A proposta da entrevista foi de esclarecer a população que a visibilidade trans foi importante para todos, não só para esta população em específico. Mas que também pode estar influenciando alguns adolescentes mais sugestionáveis e ávidos por aparecer. Em nenhum local da entrevista afirmo que uma coisa é decorrente da outra.

Também seria interessante as associações todas, antes de desqualificar o artigo de Lisa Littman, lessem os comentários e a republicação do artigo original, bem como ler outros artigos existentes no PUBMED de 2018 e 2019 sobre "rapid onset of gender dysphoria". Também penso ser interessante a leitura do artigo Outbreak: On Transgender Teens and Psychic Epidemics, de Lisa Marchiano de 2017.

Outras leituras também importantes, que qualificam o trabalho do AMTIGOS são:

Ensuring comprehensive care and support for transgender and gender diverse- children and adolescentes de Jason Rafferty no American Academy of Pediatrics.

Ethical issues in gender-affirming care for youth de Laura L. Kimberly et al.

Também não afirmo, nem poderia, que TODO comportamento trans é decorrência de influência midiática.

Digo claramente que para esta população específica de adolescentes que se afirmam transexuais na puberdade ou logo após, sem história pregressa e que geralmente nasceram no sexo feminino, mas se identificam como homens, que essa seria uma possibilidade. Digo especificamente que ainda não sabemos os porquês, mas temos de interrogar, questionar e pensar sobre. Afinal de contas, trabalhamos com pessoas e não com ideologias, teorias ou patologizações. Quanto mais pudermos questionar, fazer hipóteses e pensar livremente, sem censura, melhor para todos.

Se não acreditasse em todas essas premissas, não trabalharia com crianças e adolescentes e suas famílias, que têm no AMTIGOS um local de acolhimento, acompanhamento, afeto e orientação.

Agradeço a todos os colaboradores que conhecem o trabalho que desenvolvemos e a todos que acompanhamos com ética, respeito e aceitação. E não com especulações ou recriações de interpretação em um texto que se fez claro para muitos leitores.

Agradeço a oportunidade de explicar pontos polêmicos de um documento acusador e que faltou com a verdade em sua leitura.

Alexandre Saadeh: médico psiquiatra e Coordenador do AMTIGOS-IPq-HCFMUSP.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.