A vida toda enfrentei abuso sexual, diz musa da pornochanchada Nicole Puzzi
1976 — Nicole Puzzi tinha 18 anos e estava pilotando o Fusca que seu pai havia lhe dado de aniversário, quando foi surpreendida pelo gesto abrupto do homem que ocupava o banco do carona. Tratava-se do "diretor de uma importante revista da época".
"Do nada, ele abriu a braguilha e colocou tudo pra fora. Nós estávamos naquele pedaço da (avenida) 23 de Maio em que tem uma curva grande. Como não se usava cinto de segurança, dei um jeito de empurrá-lo pra fora do carro. O idiota ficou lá, com pau na mão, no meio da 23."
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Uma das musas mais festejadas da pornochanchada, Nicole Puzzi participou de cerca de 30 longas-metragens rodados na chamada Boca do Lixo, região do centro de São Paulo que muito tempo depois ganhou os noticiários rebatizada de Cracolândia. Produzida no Brasil nos anos 1970 e 1980, a pornochanchada é um gênero de cinema que mistura erotismo, humor, galãs de ocasião e mulheres 'boazudas' seminuas. Entre outros, Nicole fez "Pensionato das Vigaristas", "Reformatório das Depravadas" e "Retrato Falado de Uma Mulher sem Pudor".
Ela é uma das palestrantes do Festival Path 2019, que se realiza no dia 1º de junho, em São Paulo. Fala sobre "A arte como propulsora da inovação no Centro de São Paulo", junto com Laura Maringoni, Ana Weiss e Vera Santana. Mais informações sobre o evento no fim da matéria.
Possuída pelo pecado
Antes de se tornar atriz, Nicole foi modelo, trabalhou no circo e em shows com o grupo "Os Trapalhões". Estava com 17 anos quando o comediante Dedé Santana a apresentou ao muso David Cardoso, "rei da pronochanchada", com quem viria a contracenar em seu primeiro filme, "Possuídas pelo Pecado", dirigido por Jean Garret. No cartaz do filme, ela aparece como Nicole Saline: "Alguém colocou lá esse Saline. Era só Nicole." Ela lembra: "Fiz o teste, o diretor gostou de mim, perguntou a minha idade. Menti. Ele me pediu o RG, eu disse que traria no dia seguinte. Fui até a Praça da Sé, entrei num 'despachante' daqueles que anunciavam 'tire seus documentos aqui' e, em uma hora, eu estava com 18 anos."
Hoje, aos 60, em excelente forma física, Nicole Puzzi não esconde a idade nem tira mais a roupa diante das câmeras. Está em outra fase. Agora, apresenta o programa "Pornolândia" (Canal Brasil), em que fala sobre sexo e comportamento com antigos colegas da Boca, celebridades de todas as áreas e personagens do entretenimento erótico atual. "Eu não me coloco como jornalista ou apresentadora. Aqui eu sou Nicole", explica ela, que já conversou com figuras como Jean Wyllys e Zeca Balero; a dominatrix Dommenique Luxor; o ator Castor Guerra, com quem contracenou; e a estilista Madame Sher, conhecida por desenhar corselets exclusivos.
Diretor e fã
Roy LP, diretor de "Pornolândia", conta que sempre foi consumidor de pornochanchadas e fã de Nicole. Ele a conheceu quando chamaram a filha dela, Dominique, para trabalhar no estande do canal na Erotic Fair, feira de produtos do mercado erótico. "Um dia, a Dominique não pôde ir, apareceu a Nicole para substituí-la. Ela se desculpou pela filha, eu pensei: 'Imagina, pode vir todo dia'." Na ocasião, Roy perguntou a Nicole se ela topava apresentar um programa no canal; ela topou, ele produziu um piloto e apresentou para a direção. "Pornolândia" está entrando em sua sexta temporada.
No dia em que o blog esteve com Nicole, ela recebeu a youtuber Vanessa Danielle, 31, do canal "Barbaridade Nerd". Vanessa contou um pouco de seu atribulado histórico sexual. Disse que sofreu abusos dos 5 aos 7 anos e estupros dos 15 aos 17; na sequência, iniciou um relacionamento com um aficionado por filmes pornográficos, que a convenceria a repetir na cama as posições que as mulheres faziam no vídeo. "Terminamos depois de três anos, e em seis meses ele se casou com uma garota virgem", conta ela. Na época, Vanessa adotou o nome Barbara Costa e enveredou por uma curta porém profícua carreira de atriz de filme de sexo explícito e garota de programa. Ela agora otimiza o passado em seu canal. "Precisava fazer alguma coisa com tudo aquilo", acha.
Além de apresentar o "Pornolândia", Nicole está no elenco do espetáculo "Mississipi", da Cia de Teatro Satyros, que estreou na semana passada e retrata a vida de um grupo de pessoas conhecidas nas imediações da Praça Roosevelt, centro de SP. Ela também dirige um curta sobre o centro e a Boca, e é madrinha da ONG "Abrigo Chácara da Dolores" que acolhe cães de rua. "Eles me preocupam muito."
Rock pesado
O homem arremessado à distância no primeiro parágrafo deste texto tinha acabado de jantar com Nicole Puzzi no restaurante Massimo, frequentado na ocasião por políticos graúdos, executivos de grandes empresas e colunáveis. Os dois conversaram sobre a assinatura de um contrato. "Achei estranho o cara me chamar para jantar no Massimo, um restaurante caríssimo, e me pedir carona. Vi que ali tinha história. Mas mesmo assim o levei, até para não parecer mal educada."
A postura radical de Nicole em relação a abuso sexual foi a mesma desde sempre. "Enfrentei isso a vida toda", diz. Fã de bandas como Led Zeppelin, Deep Purple, Black Sabbath e The Who, a roqueira Nicole volta e meia fazia um solo: "Eu era foda! Falava alto, dizia palavrão, nunca fui de nhenhenhém. Uma vez, em uma emissora de TV, o diretor foi me empurrando em direção a um sofá, eu caí sentada, ele em cima de mim. Perguntei: 'Ôpa! Tá querendo me comer? Então me leva para um lugar mais confortável. Esse sofá é muito duro.' E assim que ele baixou a guarda, eu disse bem alto: 'Sabe quanto você vai me comer, otário? Nunca!!"
Técnica antiabuso
A musa da pornochanchada calcula que, em pelo menos 40% das vezes em que a chamaram para trabalhar, havia "segundas intenções". Um pouco por instinto, um pouco por experiência, Nicole desenvolveu uma técnica que considera infalível para arrefecer as intenções do abusador: reduzi-lo em sua virilidade. "Se você diz: 'Olha lá, hein, essa merda tem que crescer para eu querer! Aliás, isso aí levanta?', o assunto morre", garante.
Nicole Puzzi reconhece que a necessidade de "falar mais alto que os homens" ("se não, eu estaria perdida") a levou a assumir uma postura "quase masculina" com eles. Muito livre, ia pra cama apenas com quem queria ("nunca fiz concessões"), e não sentia constrangimento em se levantar e ir embora, se qualquer atitude do parceiro a desagradasse. Diz que, caso não fosse bom, não sofria: "Tive orgasmo? Ótimo. Não tive? Que bosta, vou embora."
Casar, jamais
Afirma que nunca, nem quando era criança, sonhou em se casar. Lembra-se de ter tido dois amores na vida. O primeiro, antes dos 20 anos, era "um cantor famoso da época da Jovem Guarda", que a deixou para ficar com "uma mulher horrorosa, mas rica". "O pai dele se opunha ao nosso relacionamento."
O segundo ela conheceu em 1984, quando estava saindo do teatro onde se apresentava no espetáculo "O Terceiro Beijo", com texto de Walcyr Carrasco. "Depois de quase me atropelar, ele saiu do carro desesperado, pediu muitas desculpas. Tinha o olhar muito triste. A gente conversou um tempão, ele me contou que estava com câncer. Não tinha ideia de quem eu era e isso foi maravilhoso. Me apaixonei no ato", conta. Ele morreu dois anos depois. Nicole não foi no enterro. "O que eu ia fazer no cemitério? Ele era separado, mas tinha filhos, família. Sempre tive horror a essa história de 'amante'. Detesto ser coadjuvante."
Produção independente
A única filha de Nicole, Dominique, 35 anos, não é de nenhum dos dois grandes amores. Ela engravidou de um namorado de quem "até gostava bastante, mas hoje é um nada". Na época, ela estava filmando a superprodução "Gabriela", baseada no livro de Jorge Amado, que tinha Marcelo Mastroiani no elenco. "Foi um momento maravilhoso da minha vida. Deixei de ir a Hollywood e à Italia, para promover o filme, mas estava tão feliz que aquilo não teve a menor importância."
Como mãe solteira, precisou engrossar a voz de novo, só que agora para defender a filha. A direção da escola em que Dominique estudava pediu que a retirasse de lá, porque Nicole não era casada com o pai da menina. "Minha filha tinha uns 7 anos, estava no Santa Marcelina, ali em Perdizes, um colégio caríssimo. Quase dei na cara da freira. O preconceito não era só contra a Dominique, era contra as mulheres. Contra a opção de ter um filho sozinha."
Babá trans
Segundo Nicole, Dominique sempre tirou de letra o fato de ser filha de mãe solteira, que era "musa da pornochanchada", e de ter uma babá travesti. Juliana foi trazida de Jaú, interior de SP, por uma tia da atriz. "Quando ela chegou em casa, foram me chamar no quarto", lembra Nicole. "Vi que havia algo de diferente no sorriso da minha tia. A mãe da Ju, tadinha, que veio junto, estava quase rezando para eu aceitá-la no emprego. Fiquei com ela, claro."
Dominique, que é engenheira química, atriz, dançarina e instrumentadora cirúrgica, diz que foi descobrir que a babá era trans "quando tinha uns 10 anos". "Ninguém tentou me esconder, mas é que eu a via como mulher cis. Pra mim, era minha melhor amiga na época, me ajudava a fantasiar as bonecas e brincava comigo", lembra. Juliana morreu cerca de 12 anos depois, de complicações relacionadas à Aids.
Criada pela mãe e a avó, Dominique conta que cresceu em uma casa de mulheres fortes, e isso foi muito importante em sua formação. "O que eu achava mais diferente era minha mãe ser reconhecida na rua, elogiada e criticada por pessoas que nunca vimos antes."
Nietzsche e Émile Zola
Quando fala de sua carreira, Nicole Puzzi refere-se a ela mesma como atriz de pornochanchada — mas explica que há dois tipos de filmes daquele gênero. Os que eram "feitos de qualquer jeito", e os que poderiam ser considerados "obras-primas". Afirma que só participou dos do segundo tipo. "Foi na Rua do Triunfo (principal da Boca) que eu conheci Nietzsche (filósofo alemão). Quem me apresentou foi o Ody Fraga, o cara que mais escreveu roteiros de pornochanchada, inclusive baseados na obra de Émile Zola (romancista francês conhecido por integrar a escola literária naturalista)."
O orgulho da própria filmografia leva Nicole Puzzi a reagir com indignação quando dizem que o cinema que ela fazia era "inferior". "As pessoas acham que a pornochanchada era feita por gente ignorante. Ignorante é quem pensa assim." Nicole ataca o que chama de "intelectuais preconceituosos". "O Aguinaldo Silva nos chama de musas dos punheteiros. Então, ele é o pai dos punheteiros. Um homem que eu considerava inteligente, um dramaturgo, não tem noção de quem é Walter Hugo Khouri? Rogerio Sganzerla? Saiba que todo cinema nacional que veio depois daquele período teve os filmes feitos na Boca como referência."
Procurado, Aguinaldo Silva não respondeu ao blog.
Silvio de Abreu também foi lembrado. "O Silvio tem uma posição importante na teledramaturgia da Globo, podia muito bem escalar uma atriz da Boca, de onde ele veio, para uma novela. Não tenho nada contra ele, sempre me atendeu, mas por que não valorizar uma Helena Ramos, uma Patrícia Scalvi?" Silvio de Abreu não quis comentar.
Newton chama!
Enquanto a produção de "Pornolândia" dá os retoques finais em seu cabelo e maquiagem, e a acomoda no set com Vanessa Danielle, Nicole mostra um humor autodepreciativo que a redime de qualquer eventual amargura: "Ó o peitão em desabamento. Newton chama!" Ela diz que é um "símbolo sexual recordista". "Há 44 anos recebo propostas indecentes de gente de todos os sexos. Acho que nem a Mae West chegou a tanto."
Engraçada, mas falando sério, ela diz que sofre do "complexo de Gilda" que acometia a atriz Rita Hayworth (os homens dormiam com o símbolo sexual e acordavam com a atriz): "O cara diz que é apaixonado por mim, que ama meus filmes, adora o programa, tal, tal. Agora: precisa ver se ele aguenta passar uma semana comigo. Deve achar que eu ando de salto em casa, uso esse vestido (decotado), e base, delineador, cabelo feito. Eu lido com cachorro, gente, lavo pêlo com sarna, vivo de chinelo e bermuda."
Nicole de raiz. É, vai ter muita gente querendo sarna pra se coçar.
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