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Paulo Sampaio

Gay da favela é mais discriminado que o do asfalto, diz 'cantora-bicha'

Paulo Sampaio

04/08/2019 04h00

Durante a campanha presidencial, em 2018, um grupo de eleitores de Bolsonaro invadiu aos gritos e empurrões a apresentação de WQueer e seus dois bailarinos na estação das barcas Rio Niteroi, forçando a interrupção do show   (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Até ingressar no curso de serviço social da Universidade Federal Fluminense (UFF), em Niteroi, região metropolitana do Rio, Wallace Terra, 31 anos, era considerado a "bichinha" da comunidade. "O gay de favela sofre mais preconceito que o gay do asfalto", acredita. "É  pobre, vive em um ambiente conservador e sem acesso a uma educação decente." Na comunidade do Bumba e, depois, na do Caramujo, Wallace não encontrava qualquer recurso intelectual que pudesse ajudá-lo a justificar sua existência. 

Ele diz isso sem mágoa aparente. A estrutura de seu discurso está mais para político-academicista. "A universidade transformou minha vida. Ali eu me senti legitimado como cidadão", diz ele, em um café no centro de Niteroi, com vista para a Baía de Guanabara. Foi cursando serviço social que, sintomaticamente, ele se sentiu fortalecido para assumir algo que sempre perseguiu — uma carreira artística.

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Mix híbrido

Os colegas o estimularam. Primeiro, ele fazia pequenas apresentações na própria UFF. "Sempre cantei samba de raiz, dona Ivone Lara, Jovelina Pérola Negra, sou passista e rainha da bateria do bloco 'Enxota que eu Vou'." Com o tempo, o repertório evoluiu para o funk, por uma questão que ele define como estética, política. Há cerca de dois anos e meio, criou para si o nome artístico WQueer. Uma das traduções do termo em inglês é "viado".

A nomenclatura designa também uma teoria encampada pela filósofa norte-americana Judith Butler, que defende que a orientação sexual e a identidade de gênero são uma "construção social" e que, por isso, as pessoas nada mais fazem nesse sentido do que desempenhar papeis — um ou mais. "O corpo é uma tela em branco, cada um pinta como quer", acredita ele.

O traje de WQueer na hora da entrevista é um mix híbrido. Com 1,77m de altura, ele está em cima de uma bota que o eleva 15cm. Usa um vestido de lantejoulas pretas, maquiagem reforçada e argolas grandes nas orelhas. Mantém propositalmente o corte de cabelo masculino e a barba, para livrar-se de rótulos óbvios. Diz que tampouco está preocupado em ser "passável" (qualidade de quem "passa" como mulher, sem levantar suspeitas): "Não quero ser conhecido como cantora drag.  Prefiro cantora-bicha. Fui chamado a vida toda assim, faz parte da minha história, e eu tenho orgulho dela."

De bichinha da favela à cantora-bicha, com muito orgulho (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Um dia, 12 shows

Para matricular-se no cursinho pré-vestibular, Wallace usou o dinheiro que recebeu quando deixou o emprego de atendente em uma loja de conveniência. Hoje, ele trabalha na área de acesso de gestão na secretaria de Planejamento de Niteroi, e deve ficar lá até que WQueer possibilite o retorno do parco investimento financeiro. "O que eu gosto de fazer é cantar, mas isso não garante ainda a minha subsistência", diz.

A falta de recursos para divulgar seu trabalho levou a cantora-bicha a fazer uma turnê por conta própria. WQueer e dois bailarinos arregimentados na comunidade rodavam a cidade cantando Anitta, Pabllo Vittar, Ludmila e Glória Groove — que ela considera sua maior referência. Faziam cerca de 12 shows, com duração de 30 minutos. "A gente mesmo carregava as caixas de som", lembra.

Shows na rua e clipe autopatriocinado (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Agressão gratuita

As apresentações eram basicamente em três pontos de Niteroi: na praça Tiradentes, na Cantareira e na estação de acesso à barca para o Rio. "O primeiro show foi no dia 17 de outubro, às 18h30, em plena hora do rush. As pessoas paravam para assistir. Na época, ganhei mil seguidores no meu perfil no Instagram."

Foi então que um episódio violento os levou a suspender a turnê. Próximo do segundo turno das eleições, um grupo de eleitores de Jair Bolsonaro invadiu a apresentação do trio aos gritos e empurrões, tentando forçá-los a interromper o show.  "Por precaução, eu anunciei no microfone que nós não tínhamos partido. Piorou. Eles começaram a gritar: 'Artista sem partido!' e a passar a bandeira do Bolsonaro na bunda da gente. Continuei as apresentações, eles ficaram até o fim. Por questão de segurança, deixamos de nos apresentar."

Autopatrocínio

Pouco tempo depois, WQueer postou uma chamada no grupo de cinema da UFF, em busca de alguém que se interessasse em filmar um clipe com ele. "A chamada não teve repercussão nenhuma, eu soube por um amigo que me marcou", lembra o estudante Matheus Bizarrias, 25 anos, que assinou a direção do clipe. "Fiquei pensando o que significava isso: nenhuma manifestação, em um grupo de milhares de pessoas. A gente sabe da estigmatização do funk, até mesmo ali, naquela condição universitária. Podem não ter levado muito a sério."

Bizarrias procurou WQueer, que encomendou uma coreografia ao bailarino Michael Pereira, 24, um dos dois que a acompanha. "Até então, eu só coreografava danças urbanas (hip hop, estilete, jazz funk)", lembra Michael, rindo. Levei uns dias para conseguir. Eu dizia para a WQueer: 'Amigo, não tá rolando"'. Mas a cantora-bicha não aceitava não como resposta. E o bailarino teve de se virar.

Poc de raiz

Nascia o clipe "Poc não tem mimimi", gravado no Morro do Portugal Pequeno, na Ponta da Areia, região central de Niteroi. Wallace: "Eu quis resignificar um termo usado entre os próprios gays para se diminuirem". (Didatismo: criada dentro da comunidade LGBT, a partícula "poc" seria a reprodução do som que o afeminado eventualmente produz com o salto alto, quando anda. Originalmente, "poc, poc"). Mais uma vez, explica WQueer, o trabalho tem um viés político. "Eu canto a bicha pobre, da comunidade, a que sofre bullying sem chance de se defender."

"O trabalho da WQueer é interessante, forte, corajoso, e ela lida muito bem com a câmera, é divertida, autêntica", diz o diretor Bizarrias. Segundo ele, o clipe foi feito sem nenhum orçamento: "A produção é bem simples, fechei o roteiro com a Queer, a gente conseguiu reunir uma galera voluntária, dois amigos montadores, e fomos em frente."

Sem namorado

Wallace não tem namorado. Ele conta que tudo começa bem, até que o pretendente conhece WQueer — e se afasta. Mas ele paga o preço. "O prazer que eu sinto com a WQueer é muito maior do que a ameaça da solidão." De qualquer forma, afirma que não é o tipo que atrai parceiros nos bares e boates gays. "O território ali é heteronormativo, eu não me encaixo."

Filho mais velho de pai alcoolista, Wallace tem dois irmãos e foi criado pela mãe. Diz que é muito respeitado em casa ("fiz um show no casamento do meu irmão, a pedido dele, os convidados adoraram"). Mas uma tia já o fez subir no trio da parada gay de Niteroi aos prantos, depois de perguntar a ele: "Precisa se apresentar na rua vestido de mulher, se expor desse jeito?"

As hostilidades nos shows públicos e as de caráter doméstico fortaleceram Wallace, mas não o livraram da discriminação."O bullying vai existir sempre. O agressor apenas cria novas estratégias, quando percebe que as antigas não nos afetam mais." Ele segue na expectativa de que WQueer brilhe, o que tem sido mais produtivo do que esperar que o aceitem como é. "Hoje, eu sou a principal cantora-bicha da cidade", comemora.

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.