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Paulo Sampaio

Bar de refugiados, discos de vinil e papo cabeça: Bixiga é o novo point hipster de SP

Paulo Sampaio

04/04/2017 07h54

Amigos do rolê alertam para uma invasão hipster no Bixiga, região central de São Paulo. Eles acreditam que seja uma dissidência de frequentadores da Vila Madalena, bairro boêmio da zona oeste. A palavra hipster, em SP, está associada a um grupo de pessoas que consome cultura alternativa, sente saudade do que não viveu (Nouvelle Vague, Tropicália, Woodstock), alimenta uma simpatia por refugiados, adora usar palavras como "vegano", "artesanal" e "roteirista" e passa um tempo enorme analisando a obra mais obscura no vernissage – com a cabeça ligeiramente inclinada para a esquerda.

O Bixiga fica em uma região da cidade conhecida pela ocupação afro-ítalo-nordestina. Estão ali as cantinas mais antigas de São Paulo, o galpão da escola de samba Vai-Vai e centenas de cortiços habitados especialmente por baianos, pernambucanos e cearenses que migraram para o sudeste nos anos 80 atrás de trabalho. O hipster tem muito apreço pela cultura "de raiz".

Palestinos e Sírios

Mas o que mais o atrai ali, de um tempo pra cá, é uma pequena comunidade árabe. Trata-se do staff do bar Al Janiah, inaugurado há um ano na principal avenida do bairro, a Rui Barbosa. Dos 20 funcionários, 13 são palestinos, três, sírios, e um, argelino.  À entrada, um ônibus amarelo funciona como livraria "só de clássicos".  Fica aberto a noite inteira. Noor, 24, o encarregado da porta, mal fala o português. Faz anotações na comanda no próprio alfabeto, escrevendo da direita para a esquerda. Poucas vezes foi dada ao hipster tamanha oportunidade de praticar a "aceitação da diferença".

Fachada do Al Janiah; à porta, de preto, o palestino Noor, que anota da direita para a esquerda, na comanda, o nome do frequentador. O ônibus amarelo vende "livros clássicos" (Foto: Gabriel Rastelli Quintão/UOL)

Só no debate

Uma turma de xiitas teme a "madalenização" do bairro.  A Vila Madalena se tornou conhecida pela frequência de cervejeiros que atravessam a noite debatendo temas como "a questão do fim do jornal enquanto papel"; "a questão do empoderamento enquanto verbo transitivo"; "a questão da homossexualidade enquanto manifestação de um desejo reprimido"; "a questão do conhecimento profundo de Chico Buarque sobre a alma feminina"; "a questão do não acontecimento da revolução chinesa em 1925", enfim,  temas muito caros ao hipster.

Hasan Zarif, dono do Al Janiah, afirma que não existe perigo de contaminação. Mas usa argumentos que só fazem aguçar a fantasia de militância do hipster. "Exercemos uma esquerda de linha clara. Não há espaço aqui para ocupação elitizada, superficial.O Bixiga é um bairro de história, a galera que vem pra cá quer manter a tradição. A Vila Madalena é um lugar gourmetizado. A gente não está pregando política ao vento, para vender cerveja", diz ele.

Espaço de tolerância

Com 200 metros quadrados, dois andares e um jardim interno, o espaço do Al Janiah é ocupado de dia com "atividades culturais" como o lançamento do livro "O Avesso do Niilismo: Cartografias do Esgotamento"; e  "de resistência", como encontros da "frente feminista de esquerda" e debates sobre "a situação política no Congo" e "a liberalização da maconha". O próprio nome Al Janiah tem conotação política: trata-se de um vilarejo da Cisjordânia que faz parte dos territórios palestinos tomados por Israel. Apesar de seu posicionamento assumidamente radical, Hasan afirma que o bar é um "espaço de tolerância".  Se o prefeito João Dória aparecer, será tolerado? "Ele não vai se sentir à vontade aqui", desconversa Hasan, que mora em um prédio ocupado na Liberdade, região central.

Hasan Zarif, do Al Janiah, em uma das mesas do bar (Foto: Gabriel Rastelli Quintão/UOL)

O cardápio do Al Janiah é composto por pratos como o shawarma (churrasco tipo grego no pão sírio), kafta (espeto de carne ou frango) e falafel (bolinho de grão de bico). Os doces são feitos por mulheres palestinas da família de Hassan, que agora vivem em São Paulo. Sabendo da autenticidade da receita, o hipster saboreia o cardápio com outro apetite. Na noite em que o blog esteve no bar, cerca de 500 pessoas passaram por lá.

Resistência negra

De acordo com o advogado Hugo Albuquerque, 29, frequentador do Al Janiah, a Vila Madalena é "um assentamento mais jovem". No Bixiga, "a pegada é outra". "Tem a história da chegada dos italianos, da resistência negra, da migração nordestina." Para a jornalista Patrícia Cornills, que também está sempre no bar, o comportamento hipster na Vila Madalena "se baseia na imitação". "Eles reproduzem aquela coisa do boteco carioca. Aqui (no Al Janiah), de fato os donos são refugiados, de fato estão trabalhando, de fato a comida é boa."  Putz, ferrou: o hipster tem fascínio por tudo que é genuíno.

Patrícia  trabalha na organização da CryptoRave, "um dos maiores encontros do mundo sobre Internet", que esse ano vai abordar aspectos como segurança, criptografia, anonimato e privacidade na rede. Ela diz: "Olha pra ele (Hugo). Olha pra mim: a gente tem cara de hispter?" Os dois de fato não representam o gênero, mas é inegável que exerçam um papel determinante na atração de "militantes gourmetizados" para a região.

Cabelos ao vento

Na aparência, o hipster desenvolve um estilo rústico estilizado. Cabelos sem corte, bagunçados, às vezes presos com rabos de cavalo displicentes ou com faixas de tricô; bermudões despretensiosos ou um jeans qualquer que ele catou no armário; camisa xadrez de flanela, colar de pano, tênis gastos e meias pretas. Chega aos lugares na própria bicicleta, que é bastante rodada (ele precisa mostrar lastro), ou de metrô. As mulheres seguem a mesma linha: cabelos sem rumo, secos ao vento, vestido garimpado numa feirinha ou no brechó, pulseiras de couro, aneis de prata e botinhas de cano curto.

Atenção: camisa polo, escova definitiva e SUV são três expressões proibitivas nesses lugares.

Parênteses importantes 

1) De acordo com um especialista consultado pelo blog, o autêntico hipster detesta ser chamado de hipster porque, paradoxalmente, ele despreza modismos.

2) Ainda segundo o consultor, é preciso fazer a diferença entre hipster e hype. Eles podem ter pontos em comum (como barba, tatuagem, camisa xadrez, pulseira de cordão, amor ao cinema, à arte, fotografia etc), mas são bem distintos. O primeiro encarna o tipo "na dele", curte um ambiente sossegado, com luz indireta, tatame; é capaz de assistir sentado no chão da sala da casa de um amigo (em um prédio antiguinho que não tem elevador) a um "recital" de duas horas de música irlandesa; o hype curte tatuagens chamativas, é baladeiro e adora clipes que bombam.

Música cigana

"Hipster tem um viés elitizado, né?", acredita o artista visual Paulo Papaleo, 28, dono do "Mundo Pensante", um bar a cerca de 200 metros do Al Janiah.  Por volta das 23h, a banda Xaxado Novo ensaia no palco do bar um repertório de "música autoral".  Papaleo diz que ali se produz todo tipo de som. Regional, cigano, rock, experimental, jazz, "sempre com um filtro, para não ser comercial". Um DJ toca discos de vinil. Naquela noite, Papaleo produzia um evento de música mexicana no Teatro Mars, outro point que tem a simpatia hipster no Bixiga  – fica do outro lado da avenida Rui Barbosa.

Grupo Xaxado Novo ensaia repertório de música autoral (Foto: Gabriel Rastelli Quintão/UOL)

As paredes do escritório dele, instalado em um mezanino, estão cobertas de desenhos, gravuras e fotos clássicas, conceituais, em preto e branco e coloridas. De dia, o bar, que ele prefere chamar de clube cultural, promove cursos de filosofia, debates e pequenas apresentações de música. O ambiente tem alto poder de persuasão hipster. Papaleo reinvindica  o pontapé inicial na recuperação do interesse cultural pelo Bixiga. "Eu nasci no bairro. Abri o bar há quatro anos, fui o primeiro dessa leva a chegar." Ele tem tatuagens nos braços, barba, aneis grandes, usa jeans rasgados nos joelhos, tênis vermelhos e camiseta preta; sua namora, a tatuadora Sasha Pest, 30, está com um vestido de malha preso por um cinto-cartucheira de couro e bota. "Tem gente que tem problema com a palavra (hipster) né?", diz. (Se ela não tem, talvez esteja mais para hype).

O artista visual Paulo Papaleo, do Mundo Pensante, e a namorada, a tatuadora Sasha Pest, no mezanino onde está o escritório do bar (Foto: Gabriel Rastelli Quintão/UOL)

Lajota quebrada

Duas quadras abaixo, entre as ruas Major Diogo e Conselheiro Ramalho, em uma esquina esquecida da rua Maria José, está o Clã Destino.  Desde sua inauguração, um ano atrás, pelos irmãos William e Kleber Pereira (o "Presunto"), a ideia era manter o aspecto "detonado". "Quando quebra uma lajota no chão, a gente deixa do jeito que está", conta William, que é chef e professor universitário de culinária brasileira.

O sócios do Clã Destino Kleber "Presunto" Pereira (à frente); seu irmão, William (à esq) e Rodrigo Teixeira (Foto: Divulgação)

Apesar da aparente desorganização da cozinha, que fica do lado de dentro do balcão superlotado e é composta por um fogão, uma coifa grande e uma bancada cheia de ingredientes e utensílios, o cardápio elaborado pelos sócios é altamente cultuado pelos frequentadores. A especialidade da casa são os embutidos artesanais, todos de fabricação própria – pastrame, mortadela, lombo canadense e linguiça defumada.  Saem ali pratos como "Tandor Chicken", servido com legumes ao curry e arroz com castanhas; "Samossa", pastel indiano de legumes e "Feijoada".  Toda sexta, como tem feira na rua, eles elaboram um prato com o que houver de mais fresco. Na sexta anterior à visita do blog, teve "uma versão contemporânea de Vichyssoise", sopa francesa composta de batata, caldo de galinha, alho poró e, no caso deles, mix de cogumelos. A cerveja é artesanal, da casa, e o refrigerante, de gengibre, produzido e gaseificado por eles.

Imagem "gourmetizada"do boteco Clã-Destino (Foto: Divulgação)

Ramones

William usa bermudão preto e camiseta idem, com o emblema do bar gravado em silkskreen. A imagem aparece também, em tamanho grande, desenhada com giz, em uma enorme lousa acima do balcão: as iniciais de Clã Destino Gastro Bar (CDGB) fazem referência à lendária casa de rock novaiorquina dos anos 70, onde "nasceram bandas icônicas, como Ramones". O chef dá a entrevista em uma mesa espartana de madeira que fica encostada em uma  uma parede inteiramente grafitada. Como peças decorativas, entre outros, uma batedeira velha da avó dele e uma máquina de escrever Olivetti dos anos 70.  "A ideia é mudar o grafite no meio do ano, para um que retrate a questão afro". O Clã Destino seria um caso de amor à primeira vista para o hipster: "Aumentou muito o número de pessoas que vêm de outros bairros pra cá", diz William. Olha eles aí.

Emblema do Clã Destino Gastro Bar, cujas iniciais remetem à lendária casa novaiorquina "onde nasceram grupos como Ramones" (Foto: Divulgação)

Envolvido com o samba

Mais 200 metros e o blog chega à Casa Rui Barbosa, aberta em novembro. Trata-se de um sobrado com mesas nas calçadas, som de samba vindo de dentro e uma voz feminina cantando Volta por Cima, consagrada por Beth Carvalho. "Reconhece a queda/e não desanima/Levanta, sacode a poeira de dá a volta por cima…" O dono, Rafael Falanga, 30, é cineasta. Usa um gorro por cima do cabelão encaracolado, camiseta desgrenhada, bermuda e chinelo. "Por  que Bixiga?", ele pergunta. Ele responde: "Por causa do meu envolvimento com o samba desde criança. Sempre gostei daqui." Falanga explica que não cobra mais de R$ 5 de consumação "por respeito ao bairro".

Na calçada, em pé ou em mesinhas despretensiosas, os frequentadores tomam cerveja em copo americano, comem coxinha artesanal e trocam ideias sobre assuntos gerais (guerra, paz, terrorismo, Trump, ciclovia, arte, música, cinema, muito cinema). Como não há mesa vaga, um rapaz de rabo de cavalo despencado, barba falha à Che Guevara, alpargatas e camisa tie dye, conversa sobre MPB com uma garota de cabelos curtos e encaracolados, divididos no alto por uma risca incerta, vestido "maria mijona" e sandália de couro rústico. Ela fala do show Álibi, de Maria Bethânia (1979). "Cara, foi um marco. Ela canta muito… Não tô nem falando de afinação. Tô falando de interpretação, de presença em cena. A mulher é um monstro no palco…"

Resgate do choro

Ali ao lado está a jornalista Mayara Castro, 27, em sua primeira vez na Casa Rui Barbosa. Tinha decidido que ia comemorar seu aniversário, na quinta-feira seguinte, no bar. "A casa é tombada, gosto disso, e tem esse resgate à cultura do samba, do choro, dá um ar intimista. Gostei dessas imagens (na parede) remetendo aos sambistas antigos e também à galera do soul. Acho que a ideia é proporcionar uma experiência musical mesmo.."

Falanga contou que no domingo seguinte haveria o projeto "Ferro na Boneca", em que "um grupo de mulheres engajadas politicamente discotecam". Ele diz que é difícil definir o frequentador por causa da variedade de bandas e estilos musicais que tocam ali. "É um espaço cultural voltado para as artes, com foco na música ao vivo", diz.

Existe algo mais hipster do que "espaço cultural voltado para as artes, com foco na música ao vivo"? Ou do que um bar chamado "Casa Rui Babrosa, que funciona em uma casa tombada"? Ou do que, bem, do que o novo Bixiga?

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.