Topo

Paulo Sampaio

Ex-militante vira "pessoa espiritualizada" e desapega da política: "O presidente não me merece"

Paulo Sampaio

07/07/2017 13h13

* Esse texto é uma ficção baseada em fatos reais

Fazia tempo que a dona de casa e professora eventual de inglês Maria Lúcia J, 47 anos, não se encontrava com  a fotógrafa free lancer Helena K, 43.  Da última vez, quatro meses antes, na feirinha de livros da USP, a conversa delas foi cheia de energia; as duas  falaram da "situação dramática da política", do "caos institucional", da "ruína social", da "necessidade de transformação urgente".  Acompanhadas dos filhos universitários, elas combinaram de ir à virada feminina juntas, de panfletar por transparência na passeata do domingo seguinte, enfim, ambas estavam transpirando militância.  "Não é possível que a gente não consiga tirar esse cara de lá. O país tá parado, todo mundo acompanhando as manobras mais sórdidas dele para se livrar das acusações, e ainda aquele congresso vagabundo nos virando as costas", bradou Helena. E Maria Lúcia: "Mas o parlamento é legítimo, amiga, foi a gente que colocou eles lá!" E Helena. "A gente colocou, a gente tira!" Como sempre, a professora de inglês saiu da conversa revigorada, acreditando que "o Brasil tem jeito".

* * *

Agora, as duas se encontravam em um concerto com peças de Ravel e Debussy na Sala São Paulo. Morena, alta, cabelos secos ao vento, calça jeans, bata e sandália de couro, Helena estava com uma amiga chamada Clare, de 54 anos, que se apresentou como homeopata. Maria Lúcia, que também era morena, mas adepta da escova definitiva e da bolsinha Chanel, foi com o marido, Fabiano, que era médico endocrinologista. Logo ficou claro que Helena e a homeopata estavam namorando. Maria Lúcia achou aquilo "genial". Louca pra praticar sua cidadania, ela abraçou a amiga longamente, elogiou a cor de sua bata e já ia começando a falar de Brasília, quando Helena se esquivou. "Sabe, Maria Lucia, eu não quero mais sentir raiva. Fiz uma opção pela espiritualidade. Decidi me livrar de tudo o que me faz mal. Percebi que minha briga era muito mais comigo mesma do que por uma ideologia."

Maria Lúcia ficou no vácuo. De uma hora para outra, Helena havia se tornado uma "pessoa espiritualizada" #sqn.  Por conta disso, anistiou antigos inimigos figadais, passou a praticar o bem indiscriminadamente e a contrapor com a espiritualidade a tudo aquilo que demandava dela um mínimo de esforço. Em vez de dizer, por exemplo, que tinha preguiça de ir para a Paulista gritar pelo direito das mulheres, ela pregava a "não raiva". "Não dá para deixar que esse ódio nos contamine. Eu faço a minha parte, eu me aproximo das pessoas, é isso que vai nos salvar nesse Planeta."

Sentindo-se traída, desamparada, mortificada, Maria Lúcia não se conformava com o que ela considerou a "desistência" de Helena. Queria chamá-la de fraca, denunciá-la, mas se sentia refém da espiritualidade da outra. Qualquer coisa que dissesse seria covardemente desclassificada com o discurso do desapego. Helena o usava descaradamente como antídoto contra contrariedades: "Malu, você não consegue enxergar que essa revolta está te consumindo. Se o motorista do carro de trás buzina, abstrai. O problema é dele com ele. Aliás, vende o carro, compra uma bike, respira fundo. E olha: o presidente da República não te merece."

"Assim é fácil", pensou Maria Lúcia. "Tudo o que é ruim não me merece."  E caiu na besteira de insistir. "O presidente não me merece, mas tá gastando meu dinheiro para comprar voto de deputado." E Helena: "Desapega, criatura. Se espiritualiza."

O clamor de Helena por espiritualidade só fazia fustigar ainda mais ainda a revolta de Malu. O concerto acabou sem que ela tivesse ouvido uma nota musical.  Os casais se despediram.

Dois meses depois, a professora de inglês flagrou a fotógrafa esbravejando com a homeopata em uma esquina do bairro onde moravam. Chegou perto para cumprimentá-las. Deu um abraço "espiritualizado" em Helena, outro em Clare e comentou: "Tô tão desapegada hoje."

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.