Governo de SP patrocina debate sobre DSTs no sexo sadomasoquista
Passava das 18h de sábado quando uma morena esguia, o corpo sinuoso dentro de um vestido preto justo com aberturas nas laterais, usando botas de verniz até os joelhos e jaqueta de couro cravejada de spikes, desceu correndo as escadarias da estação República do metrô e entrou no Museu da Diversidade, onde um grupo de praticantes do sexo sadomasoquista a aguardava ansiosamente. "Desculpe, gente, eu estava atendendo um escravo", justificou Morgana Marone, 39 anos, a Rainha Morgana, que há 20 trabalha como "dominadora profissional". Ela foi uma das mediadoras da mesa redonda que o governo de São Paulo patrocinou no último fim de semana para debater sobre "Cuidados com a Saúde na Prática do BDSM (bondage, disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo)".
Participaram também a epidemiologista Naila Santos, do Centro de Referência e Treinamento – Doenças Sexualmente Transmissíveis DST/Aids, da Secretaria da Saúde; o médico legista Dom PC, que é dominador; e o Mr. Leather Brasil, campeão de um concurso disputado entre homens que vestem couro na hora do sexo. Trinta e duas pessoas compareceram ao debate, a grande maioria envolvida com a prática sadomasoquista.
Rainha Morgana explica que atender um escravo, no caso dela, é cobrar para prestar o serviço de dominá-lo por um período de tempo estabelecido. A expertise dela é humilhar física e emocionalmente o parceiro. Ela amarra, prende com algemas, chicoteia, espanca, pisoteia, dá ordens e castiga caso o serviço esteja malfeito. "Quando me indagam de que prática eu gosto, eu respondo que é melhor me perguntarem qual eu não gosto." Sim, ela tem seus limites. Avisa aos clientes, por exemplo, que não faz o chamado "banho marrom", quando submisso pede que o dominador evacue sobre ele. "Não gosto de scat", diz ela, usando a forma reduzida da palavra escatologia.
Alguém aproveita para perguntar à médica Naila Santos sobre as doenças que o "scat" pode transmitir. Ela diz que existe o risco de contrair a hepatite A, cuja transmissão é oral-fecal. "Na criança, a hepatite A é benigna. No adulto, pode matar", ela explica. Em relação à "chuva dourada", como é chamado no meio BDSM o banho e/ou ingestão de urina, nada ou quase nada pode acontecer. "A urina é um líquido estéril. Não oferece risco nenhum", diz a médica.
Mr. Leather levanta uma questão: "Eu tenho histórico de cálculo renal, então pode haver sangue na minha urina. Se alguém a ingere, é perigoso?" A médica diz que teria de haver muito sangue para oferecer perigo.
Dom PC propõe um upgrade para a manipulação anal. Pequenas lesões provocadas pela penetração de dedos ou objetos (cabo do chicote, bastões, vibradores) podem representar riscos? Sim, diz a médica. O vírus da Hepatite A é resistente, pode permanecer no objeto. Já o vírus do HIV, que não sobrevive em contato com o ar, é menos provável. Cogita-se a higienização dos instrumentos com álcool gel, e então Mr. Leather diz que leu a respeito: "Não é suficiente". Um dos participantes fala em usar uma solução de água com (em quantidade mínima) água sanitária. Naila ri e diz que a água sanitária definitivamente não é o ideal para se limpar o objeto, muito menos para colocar em contato com a mucosa anal.
Ela afirma que o perigo maior na introdução de objetos no ânus é não conseguir resgatá-los. "Acontece muito de eles entrarem e se perderem, aí fica complicado."
O estilista e empresário de festas sadomasoquistas Heitor Werneck, que convocou a mesa redonda, pergunta sobre suor e lágrima: "Posso lamber alguém suado à vontade? Tô deixando de lamber por medo". A doutora informa que sim: "É quase impossível se transmitir o vírus da Aids pela saliva ou suor. Não há registros na literatura médica sobre isso."
Segue-se falando de herpes e HPV. "Usar cueca do outro é perigoso?", pergunta Werneck. "Gosto também de roçar na bunda do companheiro: tem risco?" Naila diz que tem uma "péssima notícia". "Herpes e HPV são dois bichinhos chatos. Para pegar, basta o contato de lesão com lesão."
Um dominador pergunta sobre amarrações com corda (o famigerado bondage, ou imobilização do parceiro): "Se a corda roça no ânus, ou na vagina, e causa lesões, há perigo de transmissão de vírus pelo sangue?", perguntam. "Gente, pelo amor de Deus, joga a corda fora", reage Rainha Morgana. "Corda é tão barato. Na 25 (de Março) tem uma loja que vende com um preço ótimo. Compro as minhas lá." Por via das dúvidas, a doutora informa que, de novo, embora o sangue seja sempre o vilão, é preciso uma quantidade razoável para haver transmissão.
A última abordagem diz respeito a uma velha crença do submisso, segundo a qual a responsabilidade de qualquer doença transmitida durante prática BDSM é do dominador. "Muitos acham que, como o dominador controla a relação, ele deve cuidar para que tudo seja feito dentro da maior segurança. Não é assim. Os dois devem assumir juntos o que possa vir a acontecer", afirmam os dominadores presentes. Mr Leather conta que, para evitar esse tipo de situação, a primeira prova a que ele submete o escravo é fazê-lo responder a um "formulário" relatando as doenças de que é portador. Detalhe importante: o percentual de submissos declarados na sala, com boa vontade, não ultrapassava os 30%.
Entre eles, o autônomo Marcelo do Prado, 42, que passa todo o encontro segurando a bolsa de sua dominadora, Francini Zanqui, 38. Ela apresenta um programa sobre BDSM em uma rádio de Sorocaba, cidade a 87km de São Paulo. "Ele (Prado) cuida da minha casa, realiza as tarefas domésticas, e depois eu o espanco com um chicote." Ela conta que o submete à chuva dourada e o ordena que faça o pet play, prática que consiste em ficar de quatro, agindo como um cachorrinho obediente.
O encontro termina por volta das 20h. No dia seguinte, quando o blog pergunta a Heitor Werneck se o registro fotográfico do evento está disponível para publicação, ele informa que a fotógrafa foi assaltada na estação do metrô e que levaram sua câmera. Trata-se de uma prática de violência (não consentida) a que o governo poderia prestar tanta atenção quanto às do BDSM.
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