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Paulo Sampaio

Moradores de rua comandam brechó informal na região central do Rio

Paulo Sampaio

03/10/2017 08h00

"Um bom vendedor não pode demonstrar fraqueza. Se você diz para o cliente: 'Ah, compra aí pra me ajudar!', ferrou", ensina Vera Lúcia dos Santos, 65 anos, uma das comerciantes que trabalham  no brechó informal que se realiza todos os dias na calçada da Rua da Glória, região central do Rio. Sobre um pano estendido no chão de pedras portuguesas, ela expõe desde ursinho de pelúcia até a reprodução da obra "Allegory of Painting", do pintor francês setentista François Boucher, passando por mesa de futebol de botão.  "Tenho muitos amigos porteiros de edifício, eles fazem a doação", diz ela, explicando a origem dos objetos.  "Nessas feiras de antiguidade de rico, o vendedor manda fazer os vestidos e diz que é a da vovó. Aqui é tudo autêntico." No domingo, o artigo mais caro em seu espaço era um coturno de couro preto, que ela disponibilizava por R$ 50.

"Caraca, show de bola", diz o operador de telemarketing André Luiz Souza, 50 anos, encantado com a bota. "Quanto é?", pergunta, girando-a na mão. "R$ 50", diz Vera Lúcia. Ele procura o número na sola muito gasta: "Ih, mas é 45, eu calço 40", lamenta ele, que se interessou também por um cinto "multiuso": "Procurei muito um desses para levar para o Rock in Rio", diz. E Vera: "Leva!" Souza: "Mas o Rock in Rio já acabou". Vera (baixinho): "Esse aí é caroço."

O assistente de telemarketing André Luiz, o ator de rua Carlinhos Araújo (abaixado) e, ao fundo, Vera Lúcia (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Mãe de um filho que lhe deu um neto, Vera Lúcia conta que o criou com o salário que ganhava na festejada boite Regine's, frequentada nos anos 1970 e 1980 pela alta sociedade do Rio. "Trabalhei como cigarreira a vida toda. Agora, ninguém mais fuma." O ator de rua Carlinhos Araújo, 58 anos, que mora na área, diz que "volta e meia" compra peças para o figurino de seu espetáculo. "Ela é fashion, ela é clubber, ela é retrô. Todo dia está com um look diferente", diz. Araújo costuma trabalhar como "homem estátua" em Ipanema.

Shop-Chão

O brechó informal é conhecido por quem passa pela região por shop-chão. Existe há muitos anos, mas no governo Eduardo Paes houve uma interrupção. "Prefeito ordinário, ditador, nos perseguia", esbraveja o ex-garçom Everaldo Paiva, 39 anos, o Russo. Ele mostra uma mala Samsonite de couro marrom, informa que é o artigo mais caro daquele dia: "O valor dela é R$ 500, mas pra você eu faço por R$ 40", oferece.

Russo diz que morar na rua foi uma libertação para ele

Separado da mulher, sem emprego, Russo diz que sofre de depressão. "Estar na rua o tempo todo é uma terapia. Você tem oportunidade de conversar não só com quem trabalha aqui, mas com quem aparece para comprar. Mesmo que eu não venda nada, o contato com as pessoas me faz bem. Quando assumi que fracassei, e saí de casa, foi uma libertação. A maioria dos comerciantes aqui é população em situação de rua", diz.

Interpretação

Uma das poucas excessões é o funcionário público federal Antônio Compulsione, 62, que trabalha na área de saúde no Ministério Público. Vizinho de Russo na calçada, ele dá sua interpretação do comportamento de seus concorrentes no shop-chão. "Todo mundo tem um passado", ele diz, referindo-se a um emprego formal, uma família, uma rotina. "Mas alguma coisa acontece na vida de algumas pessoas que desequilibra tudo. Perdem casa, a mulher vai embora, eles não têm a quem recorrer. E então, passam a morar na rua. Mas é temporário", explica.

Segurando um estetoscópio sem as borrachinhas que servem para proteger o ouvido, Compulsione afirma que só frequenta a região aos domingos: "Com esse dinheiro, consigo pagar a mensalidade da TV a cabo", diz ele, que cobra R$ 5 pelo estetoscópio. Entre aparelhos de celulares obsoletos, sapatos velhos e bibelôs, Compulsione explica que muitos dos seus fregueses são produtores de TV ou de filmes de época: "A Globo tem um acervo imenso, mas sempre falta algum item. Onde eles achariam um celular desses?", pergunta ele, apontando para um aparelho de pelo menos 15 anos atrás.

Antonio Compulsione e uma cúpula de luminária: fregueses são produtores de filmes de época (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

A cerca de 50 metros de Compulsione está o ex-soldador Mirandes Pereira, 65, que vende discos de vinil. Seu marketing: "É um crime a cultura popular brasileira ir para o lixo." No dia da visita do blog, ele dispunha de discos de Fafá de Belém, Ataulfo Alves, Madonna, Boy George, Cindy Lauper e Bee Gees. Mas, então, ele vende também artistas internacionais? "Música, pra mim, não tem pátria", diz, rindo muito. Com um humor particular, Pereira é a personificação do alto astral: "Ouço algumas canções em inglês, os caras podem estar me xingando, mas se gosto dos acordes, fico fã do cantor."

Segundo Pereira, os discos custam a partir de R$ 20, mas se ele nota que o freguês valoriza a MPB, é capaz de não cobrar nada. "Agora: se é gringo, o preço é mais alto." Ele diz que o dinheiro que ganha ali é suficiente para sustentar a mulher e o cachorro. "Não é pra sempre, só um quebra-galho."

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.