"Sem capa", homofobia entre gays e só dizer "use camisinha" disparam a Aids
Há 30 anos no Centro de Referência e Treinamento DST/AIDS*, o médico sanitarista Arthur Kalichman, atual Coordenador e Diretor Técnico Substituto do CRT, conversou com o blog sobre uma pesquisa encomendada pelo Ministério da Saúde que revelou que, em São Paulo, um em cada quatro homens que fazem sexo com homens tem o vírus do HIV.
Kalichman afirma que o número de infectados em decorrência das relações entre homens é o único que cresce na mesma proporção em todo o mundo. "Trata-se de um fenômeno global, ao contrário da transmissão pelo uso de drogas injetáveis, que desde os anos 1980 caiu muito no Brasil, mas é muito grande, por exemplo, na Rússia. Já na África, a transmissão se dá mais entre heterossexuais."
Ele acredita que para combater a transmissão do HIV é preciso ampliar o debate sobre sexualidade ("há pais que não falam do assunto com os filhos, e acabam perdendo quem eles acham que estão protegendo"); renovar as campanhas públicas de combate à transmissão ("apenas repetir 'use camisinha, use camisinha, use camisinha' não faz mais efeito"); e criar uma estratégia de prevenção combinada ("as pessoas passam por momentos diferentes da vida, ou tem necessidades específicas; uns tomam o medicamento preventivo porque têm uma vida sexual ativa — mas então encontram um parceiro, casam, sossegam, e mudam de estratégia, passam a usar camisinha; ou fazem o teste regularmente.").
O estudo do Ministério da Saúde fala de homens que transam com homens, mas não menciona mulheres que transam com mulheres. Kalichman afirma que não conhece caso de transmissão entre lésbicas em São Paulo. "Esse número é irrelevante. Acho que nem no Brasil existe caso notificado." Ele diz que a maior parte das mulheres soropositivas contraíram o vírus em transfusão de sangue ou do parceiro. "O problema da mulher é o homem."
Por que se usa a expressão 'homens que transam com homens'?
Porque muitos desses homens não se identificam como homossexuais. No Brasil, os papéis de "ativo" e "passivo" nas relações sexuais são valorizados. Uns acham que, porque são ativos, não são gays. "Eu não estou dando, eu estou comendo", dizem. E ainda há os bissexuais.
Por que essa população não está se prevenindo?
Os gays usam camisinha muito mais que os heterossexuais. Quem inventou o sexo seguro foram os homossexuais, no começo da epidemia da Aids. Não só porque eles compunham o maior número de infectados, mas também para combater o estigma da "peste gay".
Ainda assim, a prevalência da infecção é grande entre os gays?
Entram várias questões, aí, inclusive geracionais. Os jovens de hoje não passaram pela porrada que foi a Aids no início da epidemia. Na época, quase não havia recursos para o tratamento. Muita gente morria, inclusive os próprios amigos daqueles jovens. Eles viam, sentiam.
O senhor diria que os jovens de hoje têm menos medo da morte, ou de adoecer?
Da morte por Aids, sim. Objetivamente, a mortalidade em decorrência da doença caiu 70% desde o início da epidemia, nos anos 1980. Se algum dia o medo foi instrumento de prevenção, isso não existe mais. Mas a redução foi na mortalidade, não no preconceito. O problema maior de quem contrai o vírus hoje é de ordem moral. A questão da reputação é muito importante. O que os pais vão pensar, os vizinhos, os colegas de trabalho. Existe muita homofobia, inclusive entre os próprios gays. É por isso que quanto mais se falar do assunto, melhor as pessoas vão lidar com o preconceito.
Mas em relação aos anos 1980 e 1990, fala-se muito mais sobre o assunto.
Ao mesmo tempo, há muito mais gente escondida atrás dos dispositivos criados pela internet para facilitar a busca de parceiros (aplicativos, sites etc). Nesses dispositivos, você encontra perfis variados de homens que se relacionam com homens, incluindo os que querem "sexo sem capa" (camisinha), ou o chamado "bareback" (que em inglês significa montar um cavalo sem sela, e, na gíria, é usado para o sexo desprotegido). Essa pessoa não precisa se identificar, a não ser para o interessado na transa, que, eventualmente, nunca mais vai vê-lo. Na Internet, é como se todo mundo pudesse tudo, sem precisar dar satisfação à sociedade.
Isso tudo vale também para os heterossexuais?
Há aplicativos e sites disponíveis para os heterossexuais também, mas eles sempre vão se sentir mais à vontade para se mostrar. Os papéis estão culturalmente definidos. Os homens héteros têm orgulho de seus atributos, foram criados para performar. As mulheres, para admirar esse comportamento. Os gays, como têm a sexualidade reprimida, vivem na invisibilidade.
A parada LGBTI+ costuma reunir cerca de 3 milhões de pessoas na principal cidade do país. As novelas mostram cada vez mais, no horário nobre, casais de gays e lésbicas. Isso não torna os homossexuais mais "visíveis"?
A parada é sem dúvida alguma um instrumento afirmativo de legitimação da identidade gay. Mas o preconceito de raça e de orientação sexual continuam a ser duas marcar fortes na nossa cultura. As organizações evangélicas ou de caráter religioso conservador, que ganham poder, reprimem implacavelmente a sexualidade. A gente sente nas escolas que visita, onde muitas vezes pais e mestres acham que nós estamos ali para incentivar as crianças a fazer sexo, e não para orientá-las a fazer com responsabilidade.
O que precisa ser dito a essas pessoas para fazê-las entender?
Que o debate pode ser interditado, mas o desejo, não. Então, os jovens vão continuar fazendo sexo escondido, na escada de incêndio, nos parques, em trechos escuros das ruas. Ou seja, a repressão, como sempre, só torna as coisas mais perigosas.
As campanhas de prevenção teriam então de atingir os que estão no "escuro", ou "escondidos" nos aplicativos?
Temos pareceria com o (aplicativo) Hornet, por exemplo, que conversa diretamente com os gays sexualmente ativos. Publicamos ali nossos conteúdos de prevenção, informações sobre teste rápidos, autotestes, debates. É uma estratégia importante na promoção do sexo responsável. Não adianta mais ficar só repetindo para os jovens "use camisinha".
Qual o princípio da prevenção combinada?
Existem várias possibilidades de prevenção. Hoje, a pessoa pode combiná-las de acordo com a atividade sexual dela e do momento em que está vivendo. Por exemplo: se está começando um relacionamento, pode propor ao parceiro fazer o teste; ou usar camisinha; ou ainda tomar a PrEP (profilaxia pré-exposição ao vírus da Aids). Se ele transou sem proteção na noite anterior, pode tomar a PEP (profilaxia pós-exposição). Se tem o vírus, mas está indetectável, conversa com o parceiro, e os dois vêem como vão proceder. Ele "combina" as estratégias a partir de suas necessidades e preferências. Isso, evidentemente, depende de uma política pública que disponibiliza esse conjunto de possibilidades.
* O CRT-DST é a instituição da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo que coordena o programa de prevenção, vigilância epidemiológica e pesquisa da Aids e doenças sexualmente transmissíveis.
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