Ministro do CNJ considera 'casal de 3' algo tão ilícito quanto assassinato
Juntos há cinco anos, o psicólogo Leandro Jonattan, 35 anos, e as técnicas de enfermagem Thaís Souza, 24, e Yasmim Nepomuceno, 23, conseguiram em 1º e abril de 2016 ter uma escritura de união estável lavrada no 15º cartório de notas do Rio de Janeiro. Algum tempo depois, a Associação de Direito de Família e das Sucessões (ADFAS) acionou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) contra dois cartórios — em São Vicente e Tupã — que já haviam lavrado escrituras de uniões estáveis poliafetivas (de três ou mais pessoas).
Na terça-feira, por conta dessa ação da ADFAS, o CNJ decidiu por 7 votos a 5 proibir o registro de uniões poliafetivas nos cartórios do Brasil. De acordo como ministro relator, João Otávio de Noronha, "a emissão desse tipo de documento não tem respaldo na legislação nem na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (STF), que reconhece direitos a benefícios previdenciários, como pensões, e a herdeiros apenas em casos de associação por casamento ou união estável".
União Poliafetiva & Assassinato
Noronha afirmou que, no julgamento, ele não discutia "se é possível uma união poliafetiva ou não". "O corregedor normatiza os atos dos cartórios, que devem estar em consonância com o sistema jurídico. Está dito na lei. As escrituras públicas servem para representar as manifestações de vontade consideradas lícitas. Um cartório não pode lavrar em escritura um ato ilícito como um assassinato, por exemplo."
"Eu vejo isso como um retrocesso", diz Leandro Jonattan. "Em um país tão cheio de problemas estruturais, como falta de emprego, de saúde, de segurança pública, querem proibir justamente o amor", lamenta Leandro, que administra no facebook um grupo chamado Poliamor e Diversidade, frequentado por 27 mil partidários dos relacionamentos compostos por três pessoas ou mais.
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Vai continuar existindo
A tabeliã Fernanda Leitão, que lavrou a escritura da união de Jonattan, Thaís e Yasmim, não consegue entender o motivo da proibição. Ela acredita que "os relacionamentos poliafetivos vão continuar existindo, com ou sem permissão judicial": "A diferença é que vão existir sem balizamento jurídico. A escritura serve justamente para estabelecer as regras do jogo. É uma declaração de tudo o que eles são, o que eles têm e o que pretendem. No caso do Leandro, da Thaís e da Yasmim, eu previ todo tipo de situação, cerquei o relacionamento de todos os lados, para evitar o litígio. Esse é o meu papel."
Ela diz que acompanha casos de trisais que mostram interesse em ter o relacionamento escriturado em cartório e que "não há nada de glamouroso na intenção deles". "É uma decisão absolutamente prosaica. Eles querem os direitos conferidos a qualquer outra família, como ter um plano de saúde que atenda a todos; deduzir as despesas com educação e saúde do imposto de renda; e solicitar pensão previdenciária. E também levar os filhos para a escola, ir a almoços de domingo em família etc."
Para Fernanda, "o Estado descumpre nesse caso uma de suas principais metas, que é promover o bem-estar do cidadão, dar a ele uma vida digna e oferecer uma oportunidade de ser feliz."
Absurdo como a 'cura gay'
A tabeliã Cláudia Nascimento, de Tupã, não tem dúvida de que essa decisão do CNJ "vai cair daqui a pouquinho". "Isso é luta contra o berro d'água, pura bobagem. É como a história da 'cura gay'; tão absurdo que a gente nem dá atenção", diz ela, que tinha 12 requisições de escrituras de união poliafetiva aguardando para serem lavradas. "É claro que eu, como tabeliã, não vou contrariar o CNJ. Não quero ser punida."
Mas segundo Cláudia, a decisão do Conselho "não muda nada". "É como se alguém determinasse, um belo dia, que é proibido gostar de árvore, ou de leite. As pessoas iam deixar de gostar?" Ela explica que "o CNJ não cria leis, ele tem apenas a função de tomar conta dos interesses do Judiciário". "Eles podem controlar os cartórios, mas aí as pessoas interessadas em declarar uma união poliafetiva podem procurar um advogado e firmar um contrato particular. Pronto."
Primo do atual marido
Uma das integrantes do grupo Poliamor e Diversidade, fundado no facebook por Leandro Jonattan, é a técnica de enfermagem Tatiana Fernandes, 33. Ela conta que era casada há 11 anos com o primo de seu atual marido, quando se apaixonou pela mulher dele. "Meu casamento já estava no finzinho, então não foi tão difícil terminar", conta ela. Por sua vez, a mulher do primo de seu marido, a cuidadora Amanda Santos, 34, propôs ao companheiro um relacionamento a três. O motorista de Uber Julio Santos, 34, topou. Isso faz um ano.
Tatiana diz que os três até pensavam em requerer a um tabelião uma escritura de união estável, mas Amanda e Júlio são casados. "Eu não sei como ficaria a situação", diz ela, que tem dois filhos com o primeiro marido, um de 17 anos, outro de 6. De qualquer maneira, os três dizem achar "um atraso" a decisão do CNJ. "O judiciário tem de se modernizar para alcançar as novas formas de arranjos familiares", diz Tatiana.
Tintim por tintim
A advogada mineira Laira Rachid, professora de Direito de Família, explica que o registro em cartório de uniões estáveis e poliafetivas, por si só, "não constitui prova inequívoca da existência dessas uniões". "É apenas uma forma de demonstrá-las em juízo para obter o reconhecimento judicial e assim garantir a aplicação do que é inerente ao direito de família, o das sucessões e o previdenciário".
Laira diz que existem muitas uniões estáveis e homoafetivas sem registro em cartório, sem que seu reconhecimento judicial seja prejudicado. "Isso significa que decisão do CNJ não inviabiliza a existência, o reconhecimento pelo Judiciário e a produção de efeitos jurídicos das uniões poliafetivas."
Princípio da afetividade
De acordo com a professora, não se deve confundir união homoafetiva com união estável (que existe apenas entre homem e mulher); do mesmo jeito, a união poliafetiva não precisa se enquadrar no conceito de ambas para ser tratada como núcleo familiar. "O direito de família é regido atualmente pelo princípio da afetividade; então, quando duas ou mais pessoas se unem com intenção de constituir família — de forma pública e duradoura — é incabível considerar esse núcleo como sociedade de fato, ou irregular (sem registro na Junta Comercial). Ela deve ser regida pelo direito de família, não pelo empresarial — que considera apenas o viés patrimonial da relação. Isso seria um retrocesso em tempos de direito de família existencial, lastrado na dignidade da pessoa humana".
A propósito das diferentes formas de arranjos nos relacionamentos, Laira lembra que as expressões 'poliamor' e 'família poliafetiva' não têm o mesmo significado: "A primeira se caracteriza pelo chamado 'namoro aberto'; a segunda, por uma entidade constituída com a ideia de formar um núcleo familiar, não se confundindo com orgia."
De acordo com a professora, há "trisais" em que todos mantém relações sexuais entre si, mas isso não é uma regra. Pode não existir sexo entre eles. "Embora a expressão 'trisal' tenha ganhado destaque na mídia, nada impede que a união amorosa seja composta por mais de três pessoas, independentemente do sexo. A decisão do STF que equiparou a união homoafetiva à união estável é riquíssima, pois deixou o conceito de família aberto a novas formas de composição, legitimando, inclusive as uniões poliafetivas."
É pra refletir
O caso de Tatiana estaria mais próximo da "família poliafetiva", embora o casal que compõe o trisal com ela não mostre intenção de ter filhos. Nem de se separar no papel para formar com ela uma união estável poliafetiva (firmada em contrato particular, já que o CNJ proibiu hoje a escritura em cartório).
A professora propõe uma reflexão: "Em um país em que o adultério já foi considerado crime, mas deixou de ser em 2005 por falta de aplicação prática deste tipo penal, a monogamia é realmente um princípio basilar da sociedade?"
Ela afirma que o próprio Judiciário, colocando em xeque a monogamia, já vem reconhecendo a possibilidade de existência de famílias simultâneas (paralelas) para fins de divisão de benefício previdenciário.
Ou seja: o CNJ deflagrou uma discussão que ainda dará pano para a manga, para além de restringir o registro de famílias poliafetivas em cartório.
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