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Paulo Sampaio

Chamada de "elefante" no passado, atriz resolveu o bullying tirando a roupa

Paulo Sampaio

31/07/2018 04h00

Para a atriz burlesca Marquesa Amapola, de 29 anos, 1,60m, 80kg, tirar a roupa em frente ao espelho e "reconhecer cada pedaço do corpo, as pernas e os braços grossos, o estômago alto e os seios pequenos em relação ao resto" foi importante, mas não suficiente. Depois de ser chamada de "elefante" na escola e de se submeter a todos os regimes imagináveis, sem resultado, ela precisou de algo mais devastador para exorcizar o bullying. Um ritual.

Muito diligentemente, se enfeitou com roupas coruscantes, transparentes, lascivas, e criou performances em que tira peça por peça até ficar completamente nua, ou, no caso do vídeo gravado para o blog, apenas de calcinha fio dental e pastie de paetês cobrindo os mamilos. Figura de expressão na cena burlesca paulistana, Marquesa se apresenta em cabarés pela cidade, faz intervenções em baladas e até na rua.

"Em frente ao espelho, eu comecei a entender que todas as partes do meu corpo correspondem ao conjunto do que eu vivi.  Estão ali as marcas que eu acumulei, tudo o que comi, o que deixei de comer, o que eu me diverti, o que eu sofri. É meu, não dá para ninguém imitar, nem pra eu me livrar."

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O preço do 13º

Mas até chegar a isso, o caminho foi tortuoso. A princípio, o próprio organismo se encarregou de expurgar a insatisfação dela com a vida que levava. Nascida Aline Marques em Poços de Caldas, Minas Gerais, e criada em Caconde, cidade de 19 mil habitantes no nordeste de São Paulo, ela fez moda em Franca (SP), começou a trabalhar na área e, de repente, se viu dando expediente em um emprego "CLT", com carteira assinada, férias, 13º e ticket refeição. "Eu era muito dedicada ao trabalho, a primeira a chegar, a última a sair. Demorei a perceber que aquilo era a perfeição para uma porção de gente, mas não pra mim."

Quatro anos depois, ela estava com uma infecção grave no intestino, dessas difíceis de diagnosticar; submetida ao mesmo tempo a uma colonoscopia e uma endoscopia, não passou bem. No dia seguinte, sofreu um princípio de  embolia pulmonar, fez uma tomografia, teve reação ao contraste: "tipo um choque, uma tremedeira, com dez enfermeiros em volta dizendo: 'deu reação, chama o doutor, chama rápido!"

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"Naquele momento, eu disse: 'Eu não posso morrer agora. Tem muita coisa para viver. Quero viajar'." Para ir adiante, Aline precisou encarar os fatos: "Aquele 'modo escritório' na Vila Olímpia, cercada de pessoas que não tinham nada a ver comigo, não estava me fazendo bem'." Vila Olímpia é um bairro da zona oeste de SP, ocupado majoritariamente por prédios de escritórios cujas fachadas cheias de vãos, formas arredondadas e vidros espelhados sugerem ambientes "contemporâneos".

Explosão artística

Àquela altura, além do trabalho formal, ela administrava com o irmão mais velho e o cunhado uma festa mensal itinerante chamada "Venga, Venga". "No início, a gente tocava música étnica, dos Balcãs, com pegada eletrônica." Aline "fazia porta" (recepcionava os frequentadores), e o projeto se realizava em locações como uma sauna desativada ("a pista funcionou na piscina vazia") e um circo. "Não era apenas uma festa, era uma explosão artística", diz ela, assumidamente grandiloquente.

Marquesa Antonieta, umas das personagens favoritas de Amapola  (Foto: André Pires/Arquivo Pessoal)

Um dia, os três foram convidados para levar o projeto para Salvador. Os contratantes queriam a apresentação de uma performance. Conhecendo o temperamento expansivo dela, o irmão e o cunhado de Aline a incentivaram a criar algum número. "Eu?", ela perguntou, sem desgostar da ideia. Depois de pesquisar o que poderia fazer, chegou ao burlesco — esquete teatral que trafega entre o cômico, o ridículo e o caricato. Com um figurino extravagante, do tipo mostra-esconde, a artista em cena é acompanhada por uma trilha que serve de base para a dramatização do personagem. A cara de Aline.

Ali nasceu a Marquesa. O título é uma extensão do sobrenome original da artista, Marques. E Amapola, vulgo papoula, é uma planta espinhosa da família das cactáceas, e também base da heroína (droga). Enfim, o processo de adeus a Vila Olímpia estava bastante adiantado.

Diversão sem regime

A "Venga Venga" existe até hoje, mas a Marquesa tomou a dianteira na vida de Aline. O burlesco vinha de encontro a tudo o que ela sempre buscou, sem saber: "Descobri ali um lugar onde eu podia me divertir sendo eu mesma, sem precisar fazer nenhum regime louco nem aumentar o peito." Quem a assiste na performance, não tem dúvida de que ela de fato encontrou seu espaço no mundo. E custa a crer que um dia aquela mulher tão naturalmente desnuda teve vergonha do próprio corpo.

Convencida de que o passado já não era mais tão pesado, Aline automaticamente reduziu o tamanho do elefante, para ela e para o mundo, até torná-lo imperceptível. Eis que surgiram fãs fiéis, homens e mulheres. Naturalmente, algumas quiseram "ser" ela. Como se dissessem: "Como assim? Que petulância! Também quero". "É estranho, de repente você se sente perseguida por uma pessoa que age como você, usa a mesmas roupas. Eu não estava acostumada com isso."

O advento Marquesa, que Aline chama de seu alter ego, a levou a voos libertários ilimitados. "Hoje, eu faço o que eu quero, fico com quem eu quero, homem, mulher, trans. Não existe armário de espécie alguma. Percebo que tem gente que vê o strip-tease como coisa de puta, e eu acho ótimo, porque já tive amigas putas que eram muito felizes."

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Encarnando a "Rainha das Águas", no Cabaret da Cecília, centro de São Paulo (Foto: Kummer/Arquivo Pessoal)

Turnê quixotesca

Escudada no personagem que criou, o que pode ser perigoso, Marquesa paga o preço de um certo desencanto em relação a relacionamentos afetivos-sexuais: "No meio disso tudo, descobri que não acredito mais, ou que nunca acreditei, em monogamia", diz ela, que não namora desde 2014 — não por falta de pretendente: "Você começa a filtrar, filtrar, e então sobra pouca gente. Até porque eu tenho muitos amigos, gosto de ficar com eles, criar juntos novos personagens, figurinos, situações."

Na pele da Marquesa, Aline pode tudo. É com esse nome que ela se apresenta nas mídias sociais, na vida, no planeta. Já performou até em Londres, cidade para onde ela foi quando deixou a Vila Olímpia para desbravar o mundo. Depois, fez uma turnê quixotesca pela Europa, movida a idealismo, sem empresário nem assessor. "Fui até onde pude, mas tinha a limitação das línguas, que eu não falo. Até que resolvi voltar e fazer o burlesco acontecer no Brasil. Em Londres e em Nova York, tem um espetáculo em cada esquina."

Família burlesca

De volta a São Paulo, foi morar na casa de um amigo que cedeu o quarto da empregada, e ela pagou a hospedagem fazendo faxina. Desde então, mantém-se aferrada ao projeto de difundir a arte burlesca. Começou a se apresentar onde houvesse espaço, se uniu a outros artistas e hoje integra o que chama de "família burlesca". "Não somos muitos, mas muito unidos", diz ela, que possui um repertório de 25 personagens. Passou a participar da organização de festivais, criou um worshop chamado "Chá da Marquesa" e continua produzindo a "Venga Venga", "para sobreviver".

Hoje, mora com três amigos em um apartamento que ela declara orgulhosamente que foi alugado em seu nome, e no qual tem o próprio quarto. Um dos locatários é o chapeleiro Eduardo Laurino, que a produz para os shows — e que assina os modelos que ela usa nas fotos e no vídeo.

Marquesa Piaf, "inspirada nos cabarés franceses dos anos 20 e na cantora Edith Piaf (Foto: Juanita Hong)

Por tudo isso, ninguém duvida quando ela diz que não sobrou tempo para crises de suscetibilidade por causa do corpo. Espaçosa, divertida, falante, Marquesa chegou para a entrevista dentro de um macacão de lurex que ela vestiu de trás pra frente. O decote que deveria estar nas costas, deixa os seios praticamente expostos. A bota de bico fino e salto baixo é de paetê prateado. "Eu não tenho roupa de show e roupa de dia a dia. É tudo uma só", explica. Não se percebe agressividade nem insegurança na forma como Marquesa diz isso. Apenas que ela encontrou o conforto de um traje que coubesse em sua vida.

Corselet, cinta-liga e rouge

Sentada em frente ao espelho iluminado do camarim, diante de um estojo de maquiagem, a personagem passa a aplicar no rosto uma pintura propositalmente grotesca. A sombra negra toma toda a parte superior dos olhos, até a sobrancelha; o rouge colore duas bolinhas nas bochechas, e o batom cobre apenas a parte central dos lábios, em um desenho de coração.

E então, ela tira o macacão até ficar praticamente pelada, para colocar o figurino da personagem. Faz isso com a naturalidade de uma criança que vai brincar de fada, e não liga de ficar só de calcinha no meio dos adultos, contanto que a roupa fique linda nela. No caso de Marquesa, o figurino se compõe de um vestido de tule preto, com bordado vinho; um robe do mesmo tecido por cima, e um corselet também preto arrematando; a cinta liga de renda é presa nas botas de camurça de cano longuíssimo, que sobe até o começo das coxas; nos seios, ela fixa o pastie de paetê colorido, adornado com um tassel (correntinha pingente). Pede para ajudá-la a fechar o zíper na lateral.

Pronta para o número, Marquesa segue em direção ao estúdio, e logo se entrega ao drama da personagem. Pede ao sonoplasta que toque "Ne me Quitte Pas", um clássico do repertório da cantora francesa Edith Piaf, cujo refrão, em francês, significa "não me abandone". Durante a performance, ela se abraça com arrebatamento, o que parece especialmente sintomático.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.