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Paulo Sampaio

Meu pai quis me matar, eu quis justiça, diz vítima do 'Crime do Papai Noel'

Paulo Sampaio

30/12/2018 04h00

A publicitária Renata Guimarães Archilla, 39 anos, garante que não ficou abalada com a notícia de que o ministro do STF (Supremo Tribunal Federal) Marco Aurelio Mello determinou a soltura do pai dela, o empresário Renato Grembecki Archilla, condenado a 14 anos de prisão por mandar matá-la. "O importante para mim foi a condenação. Eu queria justiça, fiquei aliviada. O que vem agora não me interessa, é como se não fizesse mais parte da minha vida. Quero tocar meus projetos, olhar pra frente", diz ela, em entrevista exclusiva ao blog.

O crime

Nas vésperas do Natal de 2001, Renata foi abordada em um semáforo de São Paulo por um homem vestido de "Papai Noel", que distribuía doces. Ao se aproximar do carro dela, ele sacou uma pistola Taurus 380 e efetuou três disparos, que a atingiram no braço e na boca. Ela perdeu todos os dentes da arcada superior e teve o maxilar triturado. Logo se descobriu que seu pai estava por trás do atentado. Renato Archilla sempre se recusou a assumir a paternidade da garota. A fim de se livrar da obrigação de pagar pensão alimentícia e de não ter de dividir a herança, ele contratou um matador para executá-la.

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Renata Archilla, em um café de Florianópolis, durante a entrevista: "Não tem a ver com vingança nem com dinheiro. Tem a ver com vida; meu pai tentou me matar" (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Pena aumentada

Em fevereiro de 2017, mais de 15 anos depois do crime, um júri popular condenou Renato Archilla a dez anos e dez meses de prisão. O Ministério Público recorreu para majorar a pena, e a defesa, para anular o julgamento. Em junho último, a 4a. Câmara do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo) acolheu por unanimidade a apelação da promotoria, e aumentou a pena para 14 anos; ao mesmo tempo, negou o recurso da defesa. Archilla está preso desde 12 de dezembro.

No dia 19, ele foi favorecido por uma decisão monocrática (individual) do ministro  Mello, que concedeu liminar para libertar condenados em segunda instância que não tiveram sua pena considerada transitada em julgado (e ainda podem recorrer a tribunais superiores) — o que não era o caso de Archilla. O procurador-geral de São Paulo, Gianpaolo Poggio Smanio, encaminhou à procuradora-geral da República, Raquel Dodge, um ofício informando que a "decisão condenatória transitou em julgado em 28 de novembro". Ele solicitava a intervenção dela.

Dodge acolheu a solicitação e pediu ao STF em 22 de dezembro a reconsideração da liminar em caráter emergencial, alegando que a ordem de soltura ocorreu "sob a equivocada percepção de que se trataria de execução provisória". Grembecki continua preso na Penitenciária de Parelheiros, na zona sul de São Paulo, aguardando decisão do presidente do STF, Dias Toffoli.

"O Supremo (Tribunal Federal) virou um circo", diz o assistente de acusação, Marcial Hollanda. "Era para ser um órgão pacificador, e se tornou terrorista. Cada um faz o que quer. Não cabe aos tribunais superiores analisar se houve crime, ou quem cometeu. Isso ofende o sistema jurídico, desrespeita a realidade que o tribunal local entendeu."

Pode ser o caos

Por sua vez, o advogado de defesa, Santiago Andres Schunck, acredita que a decisão de trânsito em julgado foi "precipitada". "Havia uma nova prova", diz ele, referindo-se a um suposto documento que dá conta de que o mandante do crime não foi Renato Archilla, mas o pai dele, Nicolau Archilla (já falecido). Schunck insiste em que "o tribunal interrompeu a discussão".

No entender dele, "o senhor Renato Archilla está tecnicamente livre há onze dias". "Se um juiz de primeira instância se recusa a cumprir uma determinação de um tribunal superior, o sistema judiciário pode virar um caos", acha.

Pessoas perigosas

Durante a entrevista, Renata chora algumas vezes, especialmente ao se lembrar da mãe e dos avós maternos, de quem diz ter recebido uma educação muito sólida. Cita a madrinha e o marido, com quem vive há 17 anos e teve dois filhos, como "peças chave" para ajudá-la a enfrentar seu destino trágico. Ela prefere não dizer as idades nem o nome dos meninos, para protegê-los. Até hoje, Renata teme pela própria segurança. "Essas pessoas (seu pai e parentes) são muito perigosas, não quero correr esse risco."

Como você recebeu a notícia de que o ministro Marco Aurelio Mello determinou a soltura de seu pai?

Não mudou muito pra mim. O importante foi a condenação, e não o número de anos ou o cumprimento da pena. Eu queria justiça. Fiquei aliviada.

Você pensou em vingança? 

Não tem a ver com vingança. Nem com dinheiro. Tem a ver com vida. Meu pai tentou me matar. Eu não estou preocupada com o que ele possa estar sentindo e, sim, com o cumprimento da Justiça: ele tem de responder pelo que fez. Eu só consegui enfrentar tudo aquilo porque recebi uma formação muito sólida da minha mãe e dos meus avós. Minha mãe era uma mulher guerreira, otimista, incansável. Ela passou dez anos sofrendo de câncer, adoeceu por causa do stress emocional, mas nunca esmoreceu. Nunca deixou de trabalhar, de lutar pelo que queria. Morreu quando eu tinha 16.

Que tipo de sequela o atentado deixou em você?

Físicas e psicológicas. Passei por oito cirurgias, em dez anos, todas com anestesia geral. Os médicos extraíram pedaços do ilíaco (osso na bacia) para enxertar na boca, e eu não tinha garantia de que daria certo. Da primeira vez, não deu. Precisei tirar do ilíaco do outro lado. Cheguei a ficar quatro meses com um pano na boca, sem dentes (prótese), tomando só sorvete. Não posso nem ver sorvete. O mais irônico é que minha mãe sempre foi muito rígida comigo, e desde que eu era criancinha ela me fazia passar fio dental, escovar bem os dentes. Dizia: "Um dia, quando você tiver 90 anos, vai me agradecer por não usar dentadura."

Como você reagia, psicologicamente, aos acontecimentos?

Imagina o que é passar por todas essas cirurgias e, ao mesmo tempo, enfrentar três plenários (dois júris do matador, José Benedito da Silva; um de Ranato Archilla). Num deles, eu passei 32 horas no fórum, porque a juíza e o promotor me liberaram para ir para casa, mas a defesa, não. Sofri todos os tipos de pressão. No meio de tudo isso, eles ainda instauraram uma queixa crime contra mim, por injúria, calúnia, difamação. Sem contar o processo cível, que levou 22 anos. Eu vivi muitos anos permanentemente esgotada. Devo muito da minha resistência ao apoio da minha madrinha, irmã da minha mãe, e do meu marido. Sem eles, eu acho que não teria conseguido ir em frente.

Por que seu avô não quis que seu pai a assumisse?

Por dois motivos, basicamente. Primeiro, religioso: eles são judeus, e a família da minha mãe, não. Segundo, porque a gente não tinha tanto dinheiro quanto eles. O que não significa que a gente fosse pobre. Eles é que eram muito ricos, milionários.

Como era o seu padrão de vida?

Eu tive uma vida muito confortável, nunca me faltou nada, nem na educação, nem na parte financeira. Morava em uma cobertura dúplex perto do Ibirapuera, meus avós tinham empregados, estudei a vida inteira em colégio particular e cursei Faap, que é uma das universidades mais caras de São Paulo. Fazia natação, era federada, cheguei a treinar 6 mil metros por dia. Morei um ano na Inglaterra, e, quando fiz 18 anos, ganhei um carro… enfim, não há nada de que eu possa me queixar. É  como eu disse: minha intenção nunca foi ficar rica com o dinheiro do meu pai. Já tenho o que preciso. Só fiz questão que ele, como pai, assumisse as responsabilidades que lhe eram devidas.

Você é neta única?

Fui até os 15 anos. Era muito mimada. Meu avô tinha adoração por mim, me dava tudo o que eu queria. Mas ele era também muito austero, exigente, fez questão de me dar uma boa formação de caráter. E eu tinha o exemplo da minha mãe. Sempre fui atrás dos meus objetivos, do que queria, me tornei uma profissional valorizada em todos os lugares em que eu trabalhei.

Como é a sua relação com seus filhos?

Eles são a coisa mais sagrada do mundo para mim. Às vezes, quando eu converso com os dois, me lembro da minha mãe nos papos dela comigo. Ela sempre foi muito franca, desde que eu era bem pequena, sobre tudo o que tinha acontecido entre ela e meu pai. Fez questão de contar a verdade, e me disse para fazer o mesmo com meus filhos.

Você usa algum tipo de medicamento antidepressivo?

Na época do atentado, quando fui internada, precisei ser atendida por um neurologista, porque tinha ataques de sair de mim. Sentia medo, pânico, sonhava coisas horríveis. Hoje, não tomo nada. E sinto orgulho de ter ultrapassado tudo isso. Acho que posso dizer que tenho uma história de superação. Queria mesmo dizer às pessoas que enfrentam situações muito difíceis, que todo mundo consegue ir adiante. Todo mundo pode.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.