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Paulo Sampaio

Cantora Priscilla Alcântara atrai cristão conservador, LGBT e agnóstico

Paulo Sampaio

27/11/2019 04h00

Tudo no espetáculo da cantora evangélica Priscilla Alcântara, 23 anos, corre como o esperado. Antes da apresentação do pequeno musical que antecede o show, na tarde de sábado (23), ela anuncia a presença de Jesus, o público chora e ri ao mesmo tempo, com as mãos levantadas e, de vez em quando, alguém grita: "Aleluia!" ou "Glória a Deus!"

Para um leigo, a única pessoa ali com reais motivos para estar tão emocionada, a ponto de as lágrimas escorrerem e a voz sair estrangulada, é a própria Priscilla, que conseguiu atrair mais de 4.000 pessoas para assisti-la em um único show da turnê ASU (Até Sermos Um), produzida por ela, que percorreu oito cidades do Brasil e tem um tíquete médio de R$ 60.

Ela conta que sua menor audiência foram 2.000 pessoas. Nada surpreendente, para uma artista que é acompanhada no Instagram por 5,3 milhões de seguidores. No sábado, os fiéis tiveram o privilégio de participar da gravação do DVD do show, com direito a quase oito horas de atrações.

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O repertório do show é composto por 12 músicas da própria Priscilla, e uma da cantora britânica Jessie J  (Fotos: Paulo Sampaio/UOL)

Jesus merece

Antes que alguém pense besteira, ela diz: "O dinheiro que você pagou para entrar aqui foi só para que houvesse uma estrutura digna de Jesus. Você não pagou para experimentar um conteúdo mercadológico, um conteúdo gospel. Você está no mesmo lugar que a presença de Jesus escolheu estar".

No caso de Priscilla, o público fiel a Deus se mistura ao fiel apenas a ela (que, por sua vez, representa a "presença de Jesus"). Ela teve a habilidade de abrir as portas do templo "a quem quisesse entrar" e, apesar de sua pregação apresentar peculiaridades de um culto evangélico clássico, consegue juntar, em um mesmo ambiente, o cristão conservador de várias vertentes do protestantismo, o integrante da comunidade LGBT –incluindo uma umbandista– e o agnóstico.

Arte plural

"Meu namorado não veio porque acha que a Priscilla é modinha. Acontece que ela se diferencia muito dos outros cantores de igreja porque tem um público diverso. A arte dela é plural", acredita a analista Giovanna Carotruso, 20 anos, que está na primeira fila e teve a maquiagem "lavada pelas lágrimas".

No palco, pregando, Priscilla está de joelhos, com a testa encostada no chão, e a todo momento enxuga os olhos: "Hoje é um dia especial, não sei se você consegue sentir isso, mas eu poderia ficar o dia inteiro curtindo a presença Dele, porque Ele realmente veio. Ele não foi um nome entoado em canções, eu tô te afirmando a presença de Jesus, a pessoa Dele está aqui…"

Espremido na grade

O universitário Eder Gonçalves, 27, de São José dos Campos, acordou às 5h para pegar um bom lugar na plateia e agora se espreme na grade que limita o acesso ao palco, na fila do gargarejo. Ele repete o que Priscilla diz em sua pregação, como se fosse um Amém incondicional: "Ela representa a presença de Jesus. Ao mesmo tempo em que é ela no palco, poderia ser qualquer um ou ninguém."

Eder está com duas amigas que, assim como ele, também se emocionam: "A gente não chora porque Jesus nos emociona, e sim porque Ele está aqui", assegura a universitária Isabely Araújo, 19 anos.

O universitário Eder Gonçalves, ladeado por Giovana, Isabely e Mylleny Beatriz (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Tudo sobre a fé

Em uma livre-associação de palavras, Priscilla segue pregando num crescendo de emoção, até algo próximo do desatino. "Nossa, é tão forte isso pelo qual vivemos, que decidirmos viver é algo que transcende o tempo. Nas lágrimas, o único sopro, a fé é um legado que ninguém vê como se forma. Ninguém tem uma fórmula mágica de como guardá-la ou como não perdê-la, tem um bastão que vamos passando, próximo à linha de chegada…"

"A Priscilla não faz assunção [distinção] entre as pessoas. Você vai encontrar aqui, por exemplo, muita gente da comunidade LGBTQ", diz Isabely.

O sobrenatural

"Nós não estamos amassando grade à toa. A gente sabe que está para acontecer algo sobrenatural nesta noite e queremos fazer parte disso", diz a universitária Giovana Malta, 22.

Priscilla vai em frente: "A alegria do Senhor está se espalhando por esse lugar [resfolega]. Eu vejo o sorriso de Jesus curando uma geração. É o simples sorriso de Jesus: feche seus olhos e sorria com ele, é só isso que você precisa fazer". Ela garante: "Isso não é fantasia, isso é conhecer com intimidade a pessoa de Jesus. Não tenha medo: nós somos íntimos, por isso que nós falamos essas coisas. Pra quem não conhece é loucura, mas para os íntimos, isso é real." Aleluia!! Aleluia!!

"Algo de sobrenatural está para acontecer aqui nesta noite", afirma a universitária Giovana Mota, que se espreme na fila do gargarejo para assistir ao show (Fotos: Paulo Sampaio/UOL)

Lula Livre!

A parte não cristã do público de Priscilla diz que o bom de seu repertório é que ela não cita nominalmente Jesus em todas as músicas, "só dá a entender": "Você pode encaixar quem quiser naquele personagem. Eu encaixo o boy [namorado]", diz o publicitário gay Cauê Lopes, 29, que se define como agnóstico, conta que veio apenas por causa da música de Priscilla e trouxe quatro amigos que pouco a conheciam para assistir ao espetáculo.

Ao que parece, o grupo despreza o musical que precede o show. Nele, figuras primitivas, em andrajos estilizados, grunhem no que parece ser uma metáfora da salvação. Um dos amigos de Cauê diz que não está entendendo nada. Outro faz uma careta irônica e responde que "não é pra entender, é para sentir".

Alguém no meio da plateia grita "Aleluia!". Um dos gays replica: "Lula Livre!"

Bullying da sapatona

Empolgado, Cauê Lopes conta aos amigos que, no clipe de "Empatia", carro-chefe de um álbum de Priscilla, "a Santa Ceia só tem mulheres, Jesus é negro e vem para salvar uma sapatona que sofre bulliyng".

O publicitário Cauê Lopes (à esq.) e os quatro amigos que levou para conhecer o trabalho de Priscilla: Thales, Mateus, Henrique e Mateus Aguiar (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

No fundo da plateia, solitária, a universitária Tatiane Costa, 25 anos, conta que nasceu lésbica, cresceu em uma família evangélica e fez de tudo para reprimir sua atração por mulheres: "Eu ficava repetindo que não podia sentir aquele desejo, mas não adiantou".

Há quatro anos, quando cortou o cabelo para doar para uma entidade de combate ao câncer, Tatiane diz que foi rejeitada na igreja. "Deixaram de me chamar para as atividades, fui excluída", lembra. Ela se encontrou na umbanda, onde, segundo diz, ninguém impõe nada ("não me dizem como devo ser, falar ou me sentar").

Rejeitada na igreja evangélica, a universitária lésbica Tatiane Costa tornou-se umbandista e foi ao show de Priscilla porque a admira como artista (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Mistério do amor

Priscilla, ela mesma, diz que nunca namorou ninguém. O assunto coração, ali, jaz envolto em uma aura de mistério. "Tá ruim o negócio", resume ela, vagamente. Insisto: como pode uma jovem falante, esperta, nada feia, muito assediada não ter sequer experimentado um namoro?

"Pode deixar que, quando acontecer, eu faço uma coletiva de imprensa", desconversa.

Ela explica que o repertório do show é todo autoral, exceto por uma música da cantora britânica Jessie J, que já se declarou bissexual: "Eu me identifico muito com ela", diz.

Mocinha nas nuvens

No braço esquerdo, Priscilla ostenta a tatuagem de "uma mocinha com nuvens ao redor da cabeça" –o maior desenho dos cerca de dez que tatuou pelo corpo. "Eu queria uma figura feminina", diz ela no camarim, enquanto se submete aos cuidados do cabeleireiro Dindi Hojah, 33. Antes de ser templo da igreja Bola de Neve, o lugar abrigava a casa de espetáculos Olympia.

Hojah finaliza o penteado, umedecendo os cabelos repartidos no meio, fixando uma presilha de cada lado. Os fios já foram compridos, tingidos de roxo, mais curtos de um lado do que de outro…

No camarim, entregue aos cuidados do maquiador Dindi Hojah (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Focada no trabalho

"A Pri está focada no trabalho", diz Paula Alcântara, 47, mãe da cantora, tentando explicar a solteirice da filha. Paula, o marido e a filha mais velha do casal, irmã de Priscilla, correm de lá pra cá nos bastidores, ocupados na coordenação do espetáculo.

A carreira de Priscilla Alcântara começou ainda na infância, aos seis anos, quando ela tirou primeiro lugar em um concurso de cantores infantis no programa de Celso Portiolli, no SBT.

Soul e black music

"Desde muito novinha, a Pri não executava nada infantil. Sempre gostou de soul e black music", conta Paula. "Eu fazia aula de música, e um dia ela estava me ouvindo e disse: 'Mãe, você tá fazendo errado'. Ela tinha cinco anos e estava com razão em me corrigir. Eu e meu marido achamos que deveríamos investir nela."

Portiolli apresentou o trabalho dela a Silvio Santos, que a convidou para estrelar o programa "Bom Dia & Cia" no SBT. Priscilla tinha então 8 anos. "Ela foi a primeira apresentadora infantil da TV", afirma Paula. "Era ela e o Yudi Tamashiro."

Com a popularidade alcançada no programa, a carreira de cantora deslanchou. Aos 17, ela estava se apresentando em shows. "Como mãe, eu tento não elogiar muito, mas como musicista, reconheço uma qualidade excepcional nela."

Rica de amigos

Ficou rica? "O objetivo não é o cachê", assegura Paula. "O principal é que a igreja apresente algo de qualidade, de excelência.  Não queremos mais aquela história de violão e musiquinha."

A pregação de Priscilla está quase no fim. "Jesus não vai parar o que está fazendo aqui… Eu sinto que ele não vai parar… [ela ri emocionada, enxugando o rosto]. Eu sou pentecostal, então ficaria nessa, meu filho, vixe, para sempre…"

Segue-se uma profecia: "A arte brasileira vai mudar, gente. Eu não tô dizendo que vai ser gospel. Mas vai ter os valores do reino…"

Logo, o show começa.  Digo "merda pra dar sorte" e pergunto se uma cristã com tamanha popularidade pode falar palavrão. Ela responde que sim, e que não fala por causa de sua formação. Não nega que tem "uma responsabilidade em relação a Deus". "Represento alguém,  e essa pessoa é Jesus. A coisa é mais entre eu e Ele [sic] do que entre eu e a sociedade."

Ali, no camarim, tudo bem. "Merda pra dar sorte eu posso", diz ela, rindo.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.