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Tornozeleira eletrônica não chega a ser um karma para quem cumpre prisão domiciliar

Paulo Sampaio

26/04/2017 04h00

Este texto é uma ficção com base em fatos reais

 

Cheio de curiosidade, Pietro, 8 anos, se aproxima do sofá onde está sentado o doleiro Enzo Furfante*, 72 anos, e pergunta: "Vô, o que é isso?", empurrando de leve com o dedo indicador a engenhoca amarrada no tornozelo do velho. "É o brinquedinho novo do vovô. Tem até uma luzinha. Vovô agora é um robozinho", diz Furfante. Ressabiado, Pietro junta a informação que ouviu dos pais ("vovô fez coisa errada, tá de castigo") e a curiosidade maldosa dos coleguinhas da escola ("verdade que a polícia prendeu seu avô?") e vai ao Google. Alfabetizado em inglês em uma escola bilíngue, o garoto descobre que o "brinquedinho novo" do vovô é um ankle bracelet, vulgo tornozeleira eletrônica.

Furfante cumpre prisão domicilar, depois de fazer um acordo de delação premiada e conseguir abatimento na pena, a princípio estipulada em 20 anos de cadeia, para um ano e dois meses. A experiência de "presidiário em domicílio" não chega a ser um aborrecimento para o doleiro. Vivendo em um apartamento de 350 m², ele acorda às 9h, faz a barba, toma banho na suíte de 30 m², lê as notícias na internet, assiste a séries e filmes na TV, e uma vez por semana recebe um grupo de amigos para uma rodada de pôquer. Poderia até jogar bola, se quisesse. "Nosso modelo de tornozeleira sofreu uma série de adaptações, ficou mais robusto, para atender à realidade do preso brasileiro. A europeia é bem mais frágil porque eles lá não estão liberados para atividades de impacto, como futebol. Desenvolvemos um sistema à prova d'água e de choque", explica o dono da empresa que fabrica o equipamento.

Brunello de Montalcino 

Os três filhos de Furfante o visitam frequentemente, sempre carregados de presentes: garrafas de Brunello di Montalcino, trufas de Alba, charutos cubanos, gravatas de seda italianas. O prédio onde ele mora fica em um condomínio instalado em cima de um shopping de perfil triple A, o que facilita as compras. Assim que a notícia da prisão do doleiro viralizou na Internet, a única filha mulher dele, Roberta, deixou de aplicar por alguns dias a base Lumière, da Chanel, para aparentar algum abatimento. Furfante, ele mesmo, não apresenta sintomas de ressaca moral. Nem na jogatina com os amigos, nem no dia-a-dia. Sua atitude é semelhante à de um convalescente de uma cirurgia eletiva, do tipo a extração da vesícula. O único inconveniente é que, como comprou o apartamento mais alto no prédio mais distante da entrada do condomínio, ele agora não tem autonomia para ir muito além do portão de entrada – a tornozeleira apita.

Alguns amigos de Roberta acreditam que a prisão do pai dela a pegou de surpresa. "A Bobby não tinha ideia de que o seu Enzo estava envolvido em falcatruas", assegura Fernanda Furtado, a Fêfu, amiga de infância da filha de Furfante. Apesar de defender Bobby incondicionalmente, Fêfu já não seria capaz de garantir que seu próprio pai, o empreiteiro João Carlos "Juca" Furtado, cujo relacionamento com o governo remonta à época da construção de Brasília, não corre riscos de ser levado pela Polícia Federal.

Por sua vez, Bruno e Carlo Furfante, os irmãos de Bobby, não podem dizer que foram surpreendidos com a prisão do pai. Os dois sempre trabalharam com o doleiro e sabiam dos negócios dele, embora jamais tenha lhes passado pela cabeça que um dia poderiam ir para a cadeia. A possibilidade de acontecer era tão remota que, mesmo depois da prisão do velho Furfante, eles se mantiveram firmes na certeza de que o único erro cometido pelo pai foi confiar demais em seus "colaboradores ". Os dois se acham injustiçados.

Mulher de bandido

O problema maior agora eram as consequências da detenção do velho no cotidiano da família. Nem Carlo nem Bruno, muito menos Bobby, sabiam como lidar com o bullying sofrido pelas crianças na escola. Ao todo, Furfante tem seis netos. Algumas colegas de turma das gêmeas Catarina e Graziela não foram à festa delas de 15 anos, mesmo tendo sido o evento mais comentado do 9º ano em 2016. As noras do doleiro, Bia e Teca, se queixam de que antigas conhecidas as evitam nas festinhas da escola, no cabeleireiro, no Empório Santa Luzia.

As duas multiplicaram as doses de antidepressivo para segurar o tranco. Teca, que sempre foi mais exuberante, esparge debaixo da língua jatos de Rivotril à qualquer hora do dia. Bia, casada com Carlo há 15 anos, passou a sofrer crises violentas de ansiedade. O pânico era causado não só pela falta de experiência enquanto "mulher de bandido", como também pela desconfiança inconfessa do próprio marido – que a fizera assinar papéis para cuja finalidade ela não tinha a menor ideia.

Até então, ela apenas gastava dinheiro. E se agora ela tiver de prestar contas junto com ele?  Muito identificadas com Cláudia Cruz, mulher do ex-presidente da Câmara, Eduardo Cunha, as duas sentiram calafrios ao assistir o depoimento dela na Polícia Federal. Perguntam, histéricas, a Bruno e Carlo, se aquilo pode acontecer com elas. "E vocês, vão presos também? Pelo amor de Deus!", gritam.

Tornozeleira eletrônica (Foto: Getty Images)

Cartão de crédito ou dinheiro vivo?

Bia e Teca querem saber detalhes práticos. Podem continuar fazendo compras no cartão de crédito, ou seria melhor pagar com dinheiro vivo? No final das contas, todo mundo teme ir pra cadeia. José Ernesto Oliveira, o Neto, marido de Bobby, administra um hotel cinco estrelas no interior do Paraná, construído para justificar parte da fortuna angariada com propina. Os maridos das três pensaram em mandá-las para o apartamento de Miami, mas temeram um escândalo ainda maior, caso elas fossem detidas pela Polícia Federal no aeroporto.

Foi então que ocorreu um fenômeno inesperado, que, de certa forma, aliviou a condição dos Furfante. Parentes de outras crianças – pais, avôs, tios e até mães – começaram a ser presos também. "Papai está preso!?", quis saber, chorando, o garoto Pedro Cavalcanti, 11 anos, filho do ex-deputado Homero Cavalcanti, acusado de corrupção ativa e passiva, formação de quadrilha e lavagem de dinheiro.

Síndrome do desespero infantil

Vários escândalos foram registrados no restrito ambiente das escolas exclusivas frequentado por coleguinhas dos netos de Enzo Furfante. A "epidemia de ladrões de elite" trouxe dois resultados de certa maneira positivos para os filhos de investigados: primeiro, eles perceberam que não estavam sozinhos, e assim a sensação de desamparo diminuiu; segundo, o bullying deixou de ser tão agressivo, inclusive da parte das mães dos coleguinhas deles, que chegavam a boicotar festinhas de filhos de investigados; agora, elas próprias temiam pelos maridos.

A escola foi tomada pela síndrome do desespero infantil coletivo (SDIC).  Os casos proliferavam, e agora as psicólogas dessas instituições criavam mecanismos para ajudar as crianças a enfrentar "o trauma do herói desconstruído". Era algo inteiramente novo.

Fungadinha seca

Na festa de casamento de Mariana Hussein, 25, filha do operador de propinas Abdullah Hussein, recolhido a Curitiba pela PF, houve uma confraternização diferente. De repente, a noiva se viu sendo consolada por Giovanna Furfante, 22, neta mais velha de Enzo Furfante. Em um Dior rendado, Giovanna se aproximou de Mariana e deu uma fungadinha seca: "Má, eu soube do tio Hussein". Mariana levantou a manga do Chanel feito sob medida para o casamento e, esfregando superficialmente os olhos – para deixá-los vermelhos, sem borrar a maquiagem – disse: "Pois é. O vovô Furfante também, né?"

O juiz concedeu uma autorização para que Hussein acompanhasse a cerimônia e a festa do casamento da filha, com a condição de que ambas se realizassem no mesmo lugar, para que o investigado não precisasse se deslocar fora do perímetro predeterminado. A missa e a recepção para 300 convidados foram na casa de 2.400 m² de Hussein, no Jardim Europa, bairro onde morava o prefeito de São Paulo.

Vítima de um engano

Os convidados evitaram tocar no assunto "Curitiba", a não ser os amigos muito antigos, do clube, a quem Abdullah Hussein falava como se fosse vítima de um engano. Enzo Furfante não pode ir à festa, uma vez que sua tornozeleira não tinha alcance.

O noivo, Jamil Mahomeno, que pediu à mão de Mariana em uma visita ao sogro na cadeia, parecia inconformado. "O que eu acho foda, meu, é ver o dr. Hussein pagando pelo crime dos outros. Se você analisar, tá todo mundo envolvido nisso. Todos os amigos dele. O Brasil funciona assim." Munido dessa teoria, ele se aproximou do sogro, fez uma expressão obsequiosa e disse: "Dr. Hussein, o senhor tem em mim um grande admirador. Conta comigo, sempre, eu te acho o máximo." Abdullah Hussein sorriu emocionado e abraçou o genro, enquanto piscava por cima do ombro dele para a amante, Zafira, que conversava do outro lado da pista de dança com dona Samira, sua mulher.

 

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.