Em festa de sexo, mulher submissa apanha de chicote e se diz empoderada
Paulo Sampaio
16/05/2017 08h00
Projeto Luxúria, na madrugada de domingo (Foto/Divulgação: Nina Nunes)
Tudo é questão de ponto de vista. Para a historiadora Silvia Lakatos, 46, "o povo do empoderamento trata a mulher submissa como uma coitada". "Eu só faço o que gosto. E o que eu gosto é de me submeter ao meu marido. Coloco algema, coleira, apanho de chicote. Se o meu dominador mandar, transo com lésbica, gay, hétero, trans." O dominador atende pelo nome de Leonardo, 38, é cientista e pai do filho dela, de 6.
Em sua linha de raciocínio, Silvia não perde a espinha dorsal. "A escolha do dominador é minha. E o poder do consentimento também. A dominação é uma iniciativa tomada por mim. O problema é que você não pode mais fazer o que quer. A patrulha é grande", queixa-se.
A historiadora Silvia Lakatos com o marido dominador, Leonardo, no bar (Foto/Divulgação: Nina Nunes)
Circo dos Horrores
É madrugada de domingo e a historiadora dá a entrevista em mais uma edição do projeto Luxúria, que exalta a prática sexual fetichista. (Natural que hoje as festas sejam chamadas de "projetos", dada a ambição de suas propostas). Para os frequentadores do Luxúria, os seres humanos se dividem em "dominadores" e "submissos". A depender da vontade de quem manda, admitem-se infinitas combinações de desejos.
Produzida pelo estilista e empresário Heitor Werneck, 50, o Luxúria é mensal e temático. Nas últimas edições, os temas foram Convento, Vampiro e, naquela madrugada, Circo dos Horrores. Vestido com um fuseau e uma camisa de malha de manga comprida brancos com listras pretas, um colete de couro cravejado de tachas prateadas e uma máscara ajustável com pequenas fivelas e rebites, Werneck diz que seu apelido entre os correligionários é arlequim. Uma versão, digamos, sadô-masô do personagem carnavalesco.
Heitor Werneck e um dos monstros do Circo dos Horrores (Foto/Divulgação: Nina Nunes)
Bater de verdade
O dono da festa se define como "dominador de verdade". "No meio BDSM (bondage, disciplina, dominação, sadismo e masoquismo), há pessoas que sentem prazer apenas com a cena; eu, não. Gosto de bater mesmo." (Bondage é a prática de imobilizar o submisso). Ele avisa, porém, que não bate em qualquer um: "Tem gente que chega pra mim e fala: 'Heitor, me bate?' Eu digo: "Não. Não te conheço." "Alguns dias você não está legal, teve uma semana ruim. Então, explica para a pessoa que aquilo não vai te dar tesão."
Para abrigar o projeto, Werneck aluga uma sauna na Rua Aurora, no centro de São Paulo, em uma região repleta de cinemas embolorados que há tempos viraram palco de shows de striptease e sexo ao vivo. A sauna tem quatro andares, um bar, escaninhos para a troca de roupas (ou simples retirada das peças), uma piscina grande e uma jacuzzi. E também ambientes de dominação batizados de "berçário" e "curral". Um palco para pequenos espetáculos, onde houve apresentação de um circo estilizado.
O espetáculo no meio da festa (Foto/Divulgação: Nina Nunes)
Trem fantasma
Com um aspecto soturno, o lugar tem muitos cantinhos escuros e corredores estreitos que desembocam em salas onde por vezes não é possível decifrar o que está acontecendo (sexualmente falando). O nível de surpresas se assemelha ao do trem fantasma dos parques de diversão. A qualquer momento, pode surgir uma figura propositalmente assustadora (será que é só no dia do Circo dos Horrores?), como o administrador Sergio, 50 anos, que tem 1,82 metro de altura e usa um vestido de látex preto, seios postiços, escarpins de verniz com 13 cm de salto e uma máscara de borracha transparente que dá a ele a expressão de um personagem de um filme B de terror. Heterossexual, Sergio tem uma namorada e se diz um "fetichista switcher" (que tanto pode ser dominador, como submisso, dependendo da situação).
Uma mulher alta e magra pede licença para passar, trajando o que seria o correspondente masculino da roupa de Sergio. Um conjunto preto de camisa e calça comprida de látex, com um "volume" forjado na altura da genitália. Botas.
Logo em seguida, no instante em que o administrador posa para fotos, passa ali atrás um homem todo vestido de couro preto, inclusive o quepe, com uma faixa atravessada no tórax onde se lê "Mr. Leather Brasil". Ele explica que foi campeão de um concurso disputado entre homens que vestem couro na hora do sexo. Gaúcho e gay, ele prefere não se identificar porque tem uma "profissão formal". Muito orgulhoso, ele diz: "Ganhei o concurso aqui e agora vou disputar a fase internacional em Chicago." Isso, segundo ele, "tem grande representatividade no universo BDSM". Legal.
De quatro no chão
Muito didático, o dono da festa promove uma espécie de visita guiada com o blog. Em uma das salas escuras, ele aponta para uma cena envolvendo três pessoas em um sofá: "Aquilo é uma mulher beijando um travesti e sendo lambida no pé por um homem que está de quatro no chão", diz Werneck, como se fosse um cientista excêntrico lidando com seres replicantes em um seriado futurista. Fica difícil estabelecer quem, dos três envolvidos na cena, é o submisso. De acordo com a regra (um tanto preconceituosa) do BDSM, seria o homem. De qualquer maneira, com ampla expertise no assunto, Werneck afirma que a cena "não vai sair disso". "Ele não transa, fica a noite toda no pé."
Um leigo pode considerar a iniciativa de ir à festa mais do que ousada, trabalhosa. É preciso muita disposição para sair de casa todo afivelado, em um sábado frio, e passar a noite beijando um pé. Um dos motivos aventados para explicar o comportamento relativamente elaborado dos frequentadores é o tédio sexual. O próprio Werneck afirma. "Eu já fiz de tudo, transei muito. Não é qualquer prática que me satisfaz. Não sou soropositivo porque desde criança amo o cheiro de látex. Era um prazer me masturbar com camisinha."
A enfermeira tem dono
O site do projeto Luxúria informa que quem usar o dresscode (roupa tema) paga R$ 50. Se ignorar esse detalhe, o valor da entrada triplica. Em um exame por alto, a maior parte dos frequentadores parece ter mais de 35 anos. Por isso, a presença asseptica da enfermeira Adriana, 29, que foi com duas amigas, tem algo de chamativo. Ela e a "noiva" carioca Débora, 30, que é auxiliar odontológica, dizem que sentem "prazer em servir". Adriana explica que teve um ficante que a algemava, e ela curtia: "Quando me separei, procurei me informar sobre BDSM e tive um dono. Agora, tenho outro." Já a noiva conta que quem a atraiu para o universo fetichista foi um ex. Agora, está completamente aclimatada. "Vim do Rio só para a festa", diz.
A enfermeira Adriana com a amiga Débora, que foi para o "Circo dos Horrores" vestida de noiva (Foto: Paulo Sampaio/UOL)
Ali perto, um homem vestido apenas com uma camiseta e um tênis toca uma guitarra imaginária na altura do pênis, enquanto o DJ põe "Let's Dance", de David Bowie. O repertório de músicas é anos 80 e electro-góticas.
"Não sangra, só goza"
À beira da jacuzzi, o perfurador corporal Rafael Leão, 36, tira fotos com sua submissa, a arquiteta Daniela Sanchez, 36, momentos antes de pendurá-la em um par de algemas fixadas numa parede próxima ao bar e aplicar uma série de tapas nas nádegas dela. Muito generoso, ele explica que quando se submete à perfuração corporal (ganchos que mantêm o corpo suspenso) usa uma técnica em que "a pessoa não sangra, só goza voando".
A arquiteta submissa Daniela e seu dominador, o perfurador Rafael (Foto: Paulo Sampaio/UOL)
Malha no ombro
O personagem aparentemente menos ambientado surgiu por volta das 2h. Era um homem com cabelos cortados em camadas, como um galã da novela das 9, calça jeans, camisa social e… malha no ombro. Caminhando nervosamente pelos corredores da sauna, ele parecia procurar algo que só mais tarde o blog descobriu o que era –quando o viu beijando ardentemente um transexual oriental com uma peruca ruiva. Com uma expressão que misturava repulsa e prazer, o homem fez o que tinha que fazer, acertou a conta e saiu. Pagou preço cheio. Culpa da malha.
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.