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"Já levamos bala de borracha e bomba de gás", diz assistente social na Crac

Paulo Sampaio

14/06/2017 08h00

Depois de uma hora circulando pela Cracolândia — que há cerca de 15 dias migrou das imediações da Praça Julio Prestes para a Praça Princesa Isabel, no centro de São Paulo –, o visitante se surpreende com a informação dada por um grupo de assistentes sociais de um serviço subvencionado pela Prefeitura. Pelo que elas dizem, existe um conflito de filosofias entre o Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas) e a municipalidade que a mantém. Enquanto as funcionárias do Seas se colocam radicalmente contra a internação compulsória dos usuários, o prefeito João Doria já declarou que é a favor.

O grupo de mais de cinco mulheres revela que não é informada sequer das incertas da Polícia Militar na área, embora a Prefeitura afirme que está alinhada com as operações da Secretaria de Segurança Pública: "Eles já colocaram a gente pra correr, levamos bala de borracha e bomba de gás lacrimogênio."

Todas as assistentes abordadas afirmam trabalhar com aquela população há pelo menos um ano e conhecer a maioria dos usuários pelo nome. "Não adianta querer levá-los à força, tem de dar um tempo para o social trabalhar. É preciso criar um vínculo com o usuário, individualizá-lo, gerar nele confiança. Um trabalho de formiguinha. Aí vem a Prefeitura, passa por cima desse trabalho e ainda divulga que está fazendo isso para bem do usuário."

E por que as assistentes não relatam isso à chefia no Seas? Elas dizem que relatam. Será então que não existe comunicação entre a Seas e as secretarias da Saúde e do Desenvolvimento Social? Elas se entreolham e dizem que preferem não responder. Dizem que é melhor não criar problema (politicamente falando).

Voluntários da Craco Resiste tocam forró para os usuários (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Xote das Meninas

Uma pequena banda do grupo de voluntários Craco Resiste toca "O Xote das Meninas", de Luiz Gonzaga. Moças e rapazes dançam com os usuários. "Enquanto eles dançam, não se drogam", explicam as assistentes sociais. "Qualquer atividade para distrai-los, e aproximá-los, é muito importante."

Um dos voluntários, o documentarista Daniel Carvalho, 30, explica que o "Craco Resiste" traz atividades culturais para a praça diariamente. Embora os policiais que ficam no entorno aconselhem a não se aproximar dos usuários ("se acontecer alguma coisa com você, eu não vou pode fazer nada", avisa um), Daniel afirma que tudo depende da abordagem. "Se a polícia age com violência, não pode esperar que a reação seja pacífica. Por que eles não experimentam cumprimentar as pessoas, abraçá-las, individualizá-las?"

Blocão e bririco

Na praça, o movimento é intenso. Vende-se de tudo: roupas usadas, sapatos velhos, correntes, pilhas, lâmpadas, aparelhos eletrônicos antigos. Se alguém grita "Cigarreiro!", logo vários usuários aparecem com maços de cigarros, dispostos a trocá-los por qualquer moeda. Muitas vezes um pequeno aglomerado pode indicar a chegada do "vapor". Ele vem com um "blocão" (pedra maior) e o divide em "biricos".  Dependendo de quem usa, o trago pode ser chamado de "pedrada", "paulada" ou "pega". Quem já fumou tudo do que dispunha procura no chão algum "birico" esquecido. Nessas situações, os usuários circulam com um andar miúdo, olhando fixamente para o chão. Todos se conhecem, mas o fim do efeito da pedra dificulta a socialização.

Aparentemente lúcido, o ex-presidiário Josivan, 43, conta que passou 23 anos na cadeia e é "viciado" desde 1990. Ele acredita que a intervenção na praça deveria ser feita com muita cautela. "Obrigar as pessoas a qualquer tipo de atitude não funciona. É preciso despertar a vontade nelas." Pergunto como ele sobreviveu a quase três décadas de crack,  ele responde que não usa direto. "Não é todo dia."

Momento Sidarta

Um usuário que se identifica como Poeta, 53, diz que está vivendo "um momento Sidarta". Refere-se à obra do escritor alemão Hermann Hesse, que trata basicamente da busca espiritual. "Depois de perder a perspectiva na vida e de sofrer uma indisposição para continuar a ser lubrificante de uma máquina enferrujada, decidi experimentar uma vivência antropológica de rua", explica.

Para ele, "a Prefeitura não pretende resolver nada". "Tudo isso que você vê são factoides pseudoassistencialistas." Quando se fala em internação compulsória, Poeta reage com indignação: "A liberdade de todo cidadão de ir e vir, viver ou morrer é garantida pela carta magna. Uma matéria dessas não pode chegar ao Supremo (Tribunal Federal), é um insulto."

Ele acredita que "olhar para esta praça e só ver o que está aí é muita falta de consciência". "É preciso enxergar o que está por trás disso tudo. O crack é um dos efeitos colaterais de um sistema corroído. O que eles querem para o usuário é a câmara de gás. Mas nesse plano nós nos igualamos, porque o que a gente quer para eles é o paredão."

Um usuário identificado como Francisco, com estimados 40 anos, varre nervosamente um pedaço de calçada. "Não gosto de sujeira", diz ele. Pede um gole de água. Não quer conversa.

Outro lado

A assessoria de imprensa da Secretaria da Segurança Pública afirma que a Polícia Militar está no local para dar apoio à Prefeitura no trabalho de assistência aos usuários. Explicou que pode haver confronto com traficantes e, eventualmente, alguém na região sair "lesado".

A Prefeitura informa que "toda operação policial que visa a prender traficantes deve ser mantida em sigilo, sob pena de comprometer sua eficácia". Explica que esse sigilo se aplica inclusive aos assistentes sociais que prestam serviços ao município no local. De acordo com o assessor, "apesar das críticas dos assistentes sociais, o trabalho de abordagem aos dependentes somente é possível quando não há traficantes por perto, como havia na Cracolândia" (e por isso a necessidade da operação policial). Sobre a internação compulsória, a assessoria diz que a Prefeitura só a defende nos casos em que há recomendação médica.

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.