Funciona? Repórter gay busca psicólogo para virar hétero 'de novo'
Paulo Sampaio
26/10/2017 08h00
Adriano Lima, em explanação na Câmara Municipal de São Paulo (Foto: Luiz Mendes/CMS)
Disposto a me submeter à reorientação sexual, marquei uma consulta com o psicólogo Adriano Lima, 33 anos, um dos que defendem a possibilidade do "retorno à heterossexualidade". Primeiro conversamos ao telefone, eu me identifiquei como um homossexual com dificuldade de se aceitar, ele se mostrou desconfiado: disse que costuma ser vítima de "pacientes fake" que pregam nele "pegadinhas". Mas acabou concordando em me atender.
Na consulta, ele se manteve na defensiva. Suspeitou da minha abordagem, afirmando que os pacientes que o procuram "não fazem perguntas desse tipo". Que tipo? Existe um tipo de pergunta certo para se fazer em um set psicoterapêutico?
Durante todo o tempo, o que houve não foi propriamente um atendimento, mas um embate. Ao fim, quando ele me perguntou "Qual a sua área profissional?", eu disse que trabalhava em uma editora. "É jornalista?" Sim. "Você foi antiético." Discordei, alegando que se eu me apresentasse como jornalista, ele não me atenderia como homossexual em conflito. Pela reação dele, concluí, inclusive, que um homossexual em conflito não poderia ser jornalista.
Liminar Cristã
Adriano integra o grupo de profissionais cristãos que entrou na Justiça com uma ação popular contestando a resolução 01/99, na qual o Conselho Federal de Psicologia (CFP) determina que "os psicólogos não colaborarão com eventos e serviços que proponham tratamento e cura das homossexualidades".
Em 15 de setembro, o juiz Waldemar Claudio de Carvalho, da 14a. Vara do Distrito Federal, aceitou parcialmente o pedido de liminar. Manteve a resolução, mas liberou o grupo do doutor Adriano a promover "atendimento pertinente a reorientação, de forma reservada, sem possibilidade de censura ou de licença prévia". Isso pareceu paradoxal, pois era justamente o que a resolução proibia.
Em maio de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista de transtornos mentais do Código Internacional de Doenças; a Associação Americana de Psicologia já havia feito o mesmo em 1975; e o Conselho Federal de Psicologia, no Brasil, em 1985.
Há mais de 35 anos, quando comecei a entender que era homossexual, não tive uma acolhida exatamente calorosa no ambiente social em que vivia. Naquela ocasião, ninguém cogitava promover uma parada LGBT, muito menos criar uma sigla para designar o movimento gay. Sequer se falava em militância. Eu buscava identificação na literatura e, com menos possibilidades, no cinema.
Um pouco mais tarde, passei a perder amigos em série, vítimas da Aids (síndrome da imunodeficiência adquirida), doença que chegou a ser chamada de "peste gay". Mais um motivo para evitar homossexuais. Eles causavam a morte. Passado o momento mais tenebroso, o bullying clássico permaneceu. Quem é gay sofre até hoje, direta ou indiretamente.
Entretanto, nunca passou pela minha cabeça "virar hétero" (muito menos "voltar a ser hétero"). Talvez por ser muito teimoso, eu preferi destrinchar a questão. Eu sabia que me forçar a um determinado comportamento não daria certo; busquei a via do autoconhecimento. Na época, meus pais me encaminharam a um psicanalista, que eu frequentei durante cinco anos, quatro vezes por semana. Por maior que fosse meu sofrimento, ele jamais tentou me reorientar. Fecha parêntese.
Terapia ou bullying?
Assim, foi movido por uma enorme curiosidade que procurei o doutor Adriano Lima. Eu me perguntava: como, justamente agora que o mundo se mostra tão disposto a aceitar a diversidade, reabilita-se uma terapia que é quase um bullying em si?
Quem me deu o celular dele foi a psicóloga Rozângela Justino, uma missionária evangélica que respondeu a um processo ético em 2009, no Conselho Federal de Psicologia, por oferecer terapias de "reversão" sexual. Teve o registro cassado. A missionária chegou a afirmar que considerava a homossexualidade um distúrbio e que conseguiu aliviar o sofrimento de inúmeras pessoas. Rozângela é a figura de maior destaque no grupo do qual Adriano faz parte e que entrou na Justiça com a ação popular contra o CFP.
Nada a ver com preconceito
Mesmo me considerando antiético, doutor Adriano Lima propôs que eu o entrevistasse em uma segunda visita. Agora, o homossexual seria jornalista. A propósito, Adriano acredita na possibilidade de fatiar os vários aspectos que compõem a personalidade de um indivíduo. Por exemplo, ele afirma que a parte de um homossexual que não se aceita pode estar desvinculada da parte do mesmo homossexual que convive em sociedade. "Ele está infeliz, mas não por sofrer preconceito, bullying, pressão social, nada disso. Ele simplesmente não se sente confortável." Nesses casos, o homossexual recorre ao grupo de psicólogos de Adriano com a demanda da reorientação.
É o que ele chama de paciente egodistônico. Esse indivíduo sofre, do nada, de uma distonia que o faz rejeitar o próprio desejo. "Eu vou acolher o paciente no sofrimento psíquico dele", afirma Adriano. "Vou dar a ele capacidade de autonomia para tomar a decisão (entre se reorientar ou não). É ele que vai decidir." Pensei: como reorientar um desejo?
E o que seria "capacidade de autonomia"? O que ela envolve? Como um psicólogo fornece isso ao analisando? "Depende. Existem pacientes com as mais variadas demandas. Tudo é possível no ser humano", afirma ele, tomando fôlego. A essa atura, Adriano já caiu em diversas contradições. Diz que nunca considerou a homossexualidade um distúrbio, como Rozângela, sua parceira na ação contra o CFP, nem jamais cogitou curar gays, como ela já garantiu ter acontecido muitas vezes. Mas não nega fazer parte do mesmo grupo da missionária.
Reversão de heterossexual
Entre as "mais variadas demandas" dos pacientes, pergunto se já houve heterossexual querendo se reorientar. "Nunca tive um caso de pessoa que quisesse isso." Seria realmente complicado, já que quando Adriano fala de reorientação sexual usa a palavra "retorno". Para onde o heterossexual retornaria? Para que fornecer "capacidade de autonomia" a alguém que não precisa retornar?
A questão remete à chamada heteronormatização, palavra que o leva a fazer uma careta de desprezo. Trata-se de tomar a heterossexualidade como norma de orientação sexual, desconsiderando as outras. "Chegamos a um ponto em que estão institucionalizando a homossexualidade e patologizando a heterossexualidade", acredita Adriano, que é declaradamente contrário ao "movimento". É assim que ele chama qualquer ação promovida por homossexuais. "Respeito o que as pessoas fazem entre quatro paredes, mas posso não concordar."
Homossexualidade, pedofilia, zoofilia…
Quando afirma que é contra a parada LGBT, alega que o "movimento usa crianças nessas manifestações". Adriano se refere aos adultos que levam filhos, enteados, sobrinhos, amigos etc para assistir. Indignado, ele pergunta: "Que referência essas crianças vão ter na formação da própria sexualidade? E qual o dano? Não só psicológico, mas enquanto cidadãos??" E então, ele passa a atacar a pedofilia, e daí para chegar na zoofilia é um pulo.
Cita exemplos radicais, para mostrar que não pode aceitar determinadas demandas (variadas) em seu consultório. Ele agora fala mais alto: "Pedofilia é crime!! Se chegar aqui no consultório um homem de 40 anos dizendo que está se relacionando, digamos, com uma menina de 7, eu denuncio!! Entrego ao juizado! Tem gente no "movimento" que defende a autonomia sexual de crianças!! E o que você acha de gente que se relaciona com animais??"
Sinto que ele está tentando colocar tudo no mesmo balaio. Peço para retornarmos à estrada.
Algumas das causas que podem levar à homossexualidade, segundo Adriano e Rozângela, são traumas de infância, condução inadequada na formação dos filhos e abusos. "É preciso verificar o grau de proximidade de quem comete o abuso, a intensidade e a recorrência", afirma ele, que diz fazer pesquisas sobre sexualidade há quatro anos.
Por amor… gratidão
Adriano Lima atende em uma sala de aproximadamente 8 metros quadrados na Avenida Paulista, região central de São Paulo, onde há duas cadeiras e um divã bege puxado pro marrom. O divã é decorado com duas almofadas rosa pink e uma manta com franjas da mesma cor. Uma tela branca com manchas num estilo, digamos, expressionista abstrato, está pendurada na parede acima do divã. No banheiro, encabeçando uma solicitação para não jogar papel no vaso, lê-se "Por amor"; e, finalizando: "Gratidão".
Alto, 1,85 m, magro, Adriano conserva na aparência uma certa consonância com a alegada rigidez de seus princípios. Na primeira visita do blog, ele combinava a camisa social branca (pra dentro da calça jeans) com cinto branco e tênis Lacoste branco. Na segunda, o tênis New Balance era bordô, da mesma cor da malha. Estava com uma echarpe xadrez enrolada no pescoço. Reclamou de um resfriado. Pernambucano, ele conta que foi criado pelas duas avós, porque seus pais eram separados. "Não tive uma estrutura familiar ideal", acredita. Diz que não está namorando no momento.
Político x religioso
Adriano acredita que "os psicólogos do CFP estão deixando o viés científico pelo político-partidário: muito são do PSOL, PT, de esquerda". Pergunto se ele pode informar quantos, dos mais de 300 mil psicólogos inscritos no conselho, estão ligados a esses partidos. Ele faz um muxoxo mal humorado e diz: "Ah, esses que falam aí." Por sua vez, o CPF critica o grupo de Adriano e Rozângela por estar esquecendo o viés científico para atuar sob o viés religioso. Ele diz que jamais mistura sua religião com a ciência.
Ao defender o fatiamento do seus lados religioso e científico, ele afirma que "não há como negar a biologia": "Se quer viver sua homossexualidade, que viva. Tem plena liberdade!", diz, como quem esconjura. "Mas hoje já se sabre que o xy define o sexo masculino, e o xx, o feminino. Uma das funções da diferença é a procriação."
Sinto que não vou dar conta de me reorientar. Começo a sentir uma certa desorientação. Por sorte, o psicólogo olha para o relógio e informa que não lhe resta muito tempo. "Você já tem bastante material", afirma, apontando para minhas anotações. Concordo, me despeço.
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.