"Já cheirei muito, hoje me animo com remédio", diz diva Regina Guerreiro
Paulo Sampaio
08/12/2017 08h00
Extremamente emotiva, a jornalista de moda Regina Guerreiro conta que chora muito assistindo a séries de TV e que a precipitação das lágrimas provoca um lastimável transtorno estético: "Os cílios saem do lugar", diz ela, que há quinze anos vai a um salão de beleza de mês em mês só para fixar o acessório nos olhos. Grandes, chamativos, dramáticos, os cílios exigem que ela só tome banho usando óculos de mergulho. "Sou dependente deles", diz Regina, 77 anos, na sala do apartamento onde mora em Higienópolis, bairro na região central de São Paulo. Seu atual endereço fica no Edifício Bretagne, uma das obras mais emblemáticas do empresário-não-arquiteto João Artacho Jurado (1907-1983).
Enrolada em uma manta africana, para o especial "Negritudo" (Foto: Arquivo Pessoal)
Não se pode dizer que o sacrifício imposto pelos cílios postiços seja algo isolado na vida de Regina Guerreiro. Sua busca pela perfeição em escala centesimal rendeu histórias recontadas milhares de vezes nas redações. Uma das mais conhecidas é a de um pato que ela pintou de azul, em um editorial de blue jeans. "Tudo era azul. As unhas da modelo, a boca, os cabelos", lembra ela. "O pato fazia parte do conjunto, então tinha de estar em harmonia com o resto. Só que quando aplicaram o jato de spray no bicho, ele estrebuchou. Eu então disse para o fotógrafo: 'Clica! Clica!'." O pessoal da Sociedade Protetora dos Animais também estrebuchou, mas Regina não se arrepende: "Gente, o pato morreu heroicamente, e ainda em uma página dupla da Vogue. Eu não vejo diferença entre sacrificar um pato em um editorial de moda e sacrificar para comer com arroz!"
Chorando, num Issey Miyake
Antes da Vogue, onde ficou por 14 anos e se tornou uma referência, Regina Guerreiro passou sete anos na Editora Abril, acumulando as editorias de moda das revistas Claudia, Capricho, Ilusão e Contigo: "Eu fechava 90 páginas por mês", lembra ela, que depois abriu uma agência de moda e produção publicitária chamada Shock. Trabalhou também no então prestigiado Jornal do Brasil e no O Estado de S. Paulo. Nos anos 90, voltou para a Abril, agora para mandar em tudo na Elle.
Na ocasião, eu mesmo era editor de variedades da revista e tive o privilégio de participar de reuniões de pauta de cunho mitológico; me lembro de uma em que Regina surgiu com o rosto iluminado por uma maquiagem tão intensa que eu precisei de uns quinze minutos para assimilar o registro visual; vestia um modelo Issey Miyake plissado que subia até o queixo, e se sentou à cabeceira de uma mesa longa. Segurou minha mão e a do redator chefe, Mario Mendes, acomodados um de cada lado dela, e chorou ligeiramente. Disse que se sentia emocionada com o resultado da edição que estava nas bancas.
"A Regina é artista, arteira. Conheci poucas pessoas com o senso estético tão refinado. Impossível ela te servir uma caipirinha que não seja em um copo maravilhoso, com um mexedor que dê vontade de levar pra casa", diz Clayton Carneiro, que à época da Elle tinha 20 anos e hoje é diretor criativo de cinco títulos da editora Condé Nast no Brasil.
Uma pose no salão de Duda Molinos, que assina seu corte de cabelo (Foto: Arquivo pessoal)
Peruas de lézard
Onde quer que Regina Guerreiro trabalhasse, a relação entre a vontade editorial dela e o interesse comercial da empresa sempre foi muito delicada. "Quando eu comecei a falar de Comme des Garçons, assustei aquelas peruas que usavam capa Burberry, relógio Rolex e bota de lézard. Aliás, foi um susto mútuo", lembra. Acontece que as peruas de Burberry eram o público alvo da Vogue e da Elle.
Pois é.
Esparramada no sofá da sala, Regina investiga as unhas de suas mãos pequenas, barrocas, em busca de algum fiapo de cutícula esquecido. Mordisca o dedo. O telefone toca, é um amigo repercutindo a reprise do programa de TV em que ela aparece dentro de um caixão, em seu próprio velório, num ensaio assinado pelo fotógrafo Miro. Regina solta uma gargalhada aparatosa, sua marca registrada, enquanto relembra detalhes da produção do programa; diz que está dando uma entrevista e desliga o telefone. Comenta comigo que o tal amigo já foi muito próximo. "Quando a gente para de cheirar, muda de turma."
Cheirar?
Ela ri alto: "Claro! Eu cheirei muito! Você não sabia?? Nos anos 80, as festas na minha casa terminavam às 11 da manhã!". Esse período começou relativamente tarde. "Até os 38 anos, eu não sabia o que era cocaína." Quem a apresentou ao pó foi um rapaz muitos anos mais novo, chamado Ponce de Leon, por quem Regina se apaixonou instantaneamente — e o que é pior, ainda antes de cheirar. Talvez tenha sido o amante que mais a fez sofrer. "Sempre tive o dedo podre para homem. O Ponce era bissexual, deslumbrante, tinha tido um caso com um decorador riquíssimo aqui de São Paulo. Parecia o (ator francês) Alain Delon."
Na noite em que o conheceu, uma amiga a havia chamado insistentemente para ir a uma festa. Ela foi. "Dali, a gente já saiu para o motel", lembra. Logo, Ponce foi fazer um curso de fotografia em Paris, e então hospedou-se no apartamento que Regina alugava na cidade: "Eu era tão louca por ele que na sexta-feira saía da Vogue, ia para o aeroporto, tomava um avião para Paris, trepava e voltava no domingo pra São Paulo. Fiz isso várias vezes."
Há cerca de cinco anos, Regina estava no bar Ritz, nos Jardins, em SP, quando… "duas bichonas vieram me perguntar se eu era a Regina Guerreiro". "Eu disse 'sim', elas me contaram que o Ponce estava morrendo e que queria me ver. Eu não fui. Achei que seria deprimente. Ele teve tudo nas mãos, viajou o mundo comigo, fotografou para a Vogue…depois foi encolhendo, encolhendo, e acabou na Rua do Arouche. Eu não queria ver isso."
Ensaio assinado pelo fotógrafo Miro: Regina no caixão, em seu próprio velório (Foto: Miro)
Ex-Dener
Relacionamentos dignos de citação Regina teve cinco. O primeiro, com quem ela se casou de véu e grinalda, só foi importante por isso. "Quando fiquei sozinha com ele, vi que não tínhamos assunto." Quem era ele? "Ninguém. O marido da Regina Guerreiro."
Depois vieram o fotógrafo francês Michel Gicquel, que ela conheceu na Abril; o modelo e ator bissexto Dieter (ela não se lembra o sobrenome), que "era lindíssimo, bissexual também" ("Na crônica social, eles diziam 'ex-Dener, agora Regina Guerreiro'."); o advogado Wilson Carpegiani, que "não era bonito, mas tinha seu charme": "Ele saía todas as noites, bebia loucamente, conhecia Deus e o mundo. Era muito amigo do pai desse comediante, o (Fabio) Porchat. Outro doido. Um dia colocou o pau pra fora no (restaurante) Paddock e fez pipi embaixo da mesa."
O romance durou oito anos. Quando Carpegiani morreu, eles já não estavam juntos, mas amigos ligaram para comunicar. "Coloquei uma roupa preta maravilhosa da Martine Sitbon e fui ao enterro. Lá, tinham três mulheres chorando: uma grisalha, sofrida, com cara de dona de casa; uma deslumbrante, que era eu; e uma riponga bêbada, mais jovem. Três momentos da vida dele."
O modelo Dieter, "ex-de Dener, agora Regina Guerreiro" (Foto: arquivo pessoal)
Louca de dor
Seu amor mais recente foi um garoto de 70 anos com quem ela brincava na infância. "Nossos pais eram muito amigos. Na adolescência, eu tinha fantasias eróticas com ele. Depois que me desquitei, vivemos um affair relâmpago — mas não estávamos prontos para comprometimentos. Finalmente, quando eu já tinha 60, rolou. Ele era mandão. E pela primeira vez na vida, dei uma de mulherzinha."
Luís Dias Correia de Barros, profissão (declarada por ela) bon vivant, morreu em 2011 aos 76 anos, e isso levou Regina a adoecer de paixão mais uma vez. "Fiquei louca de dor. Até hoje durmo enrolada na ausência dele." Ao luto se somou o desgosto ocasionado pela fuga de uma secretária que levou consigo mais de R$ 1 milhão. "Foram anos e anos me roubando aos poucos." Veio uma depressão profunda, com direito a quatro meses de internação na psiquiatria do Hospital das Clínicas, cuja hospedagem Regina considerou "fantástica": "Meu quarto era o mesmo em que ficou a Clô (Orozco, estilista que pôs fim à vida em 2013, depois de um longo período de depressão). Tinha sala, banheiro, e um sofá de couro maravilhoso! Eu só dormia ali!" Ela continua tomando o medicamento prescrito na época: "No íntimo, sempre fui depressiva. Cheirava para ficar acordada, alegre, falante. Era o que eu mais queria. Hoje, eu dependo de outras drogas para me animar, para ter vontade de viver."
Festa da grife Cavalera: gargalhada aparatosa (Foto: arquivo pessoal)
38 tons de verde
Por causa do baque financeiro, foi preciso vender o apartamento em que morava, de 300 m2, e mudar-se para um alugado, de pouco mais de 100 m2. O downgrade não afetou suas referências. Regina está em tudo ali. Não se trata de uma sofisticação fácil, a começar pela extraordinária experiência sensorial proporcionada pelos 38 tons de verde com que ela pintou paredes e móveis. Na sala, o que chama atenção é um Botero gigante com a cena do "casal dançando"; um biombo envelhecido próximo ao corredor, e uma chaise longue de vime comprada em um antiquário parisiense por módicos 10 mil euros; na varanda fechada, há duas mesas Saarinen, onde mais tarde nos sentamos para tomar guaraná.
"Você não acreditaria se visse como estava isso aqui, eu gastei R$ 200 mil na reforma", diz ela, caminhando em direção à cozinha, onde a vedete é uma cristaleira com estatura de monumento; Regina oferece um sanduíche de carne louca, aceito um pedaço de pudim de leite (maravilhoso). O tour adentra o banheiro estilo sala de banho e o quarto de dormir, onde nos refestelamos na cama guarnecida com almofadas de tamanhos variados.
O Gaultier novinho
Ela liga a TV, diz que descobriu o canal de moda M2M (Made to Measure) e que está encantada. Sintoniza em um especial com o estilista americano Thom Browne, que a deixou muito impactada ultimamente e que ela estranha não ter conhecido antes. Para me apresentar a ele, ela usa seu talento para o didatismo. Fala da fortuna que devem ter custado os vídeos produzidos por Browne, chama a atenção para os detalhes de cada imagem e explica intenção por intenção dele.
Passa para outro programa: desfiles de coleções em várias décadas. Ela se lembra da época e se procura nas salas. Conta que conheceu o japonês Kenzo quando ele estava varrendo o próprio apartamento em Paris; que viu Claude Montana vomitando pelos cantos nas boates; que recebera em sua casa pra jantar a mulher que tempos depois pulou da sacada do apartamento dele; que se tornou grande amiga de Leila Gicquel, braço direito de Paco Rabanne; e que a modelo e editora meio chinesa, meio portuguesa China Machado, morta recentemente, era antipaticíssima: "Quando fiz um estágio na Bazaar, em Nova York, ela me tratava como uma selvagem. O Brasil na época não tinha a menor entrada no mundo." Na moda? "Em tudo!"
Segundo Regina, a moda brasileira não possuía uma identidade própria, "era um patchwork de tudo o que se via lá fora". Ela recorda que ser estilista, aqui, "era viajar para a Europa e os Estados Unidos e voltar com as malas cheias". "Uma porção de donos de fabriquetas viraram 'estilistas' por causa do boom do jeans. No fim dos desfiles, eles vinham perguntar: 'E aí Regina, cheguei lá?'. Eu dizia: 'Você tem de chegar aqui."'
"Olha o Gaultier novinho", exclama ela, apontando para a TV. E então lembra de um desfile dele para o qual não foi convidada ("mesmo já na Vogue, ficava aquele suspense: 'tem convite, não tem convite"') e no qual entrou no set pela cozinha, junto com os garçons. "Então a história passou a ser essa. Contei isso, falando da coleção, claro."
Ela diz que se entedia com o que lê hoje a respeito de moda. "As pessoas escrevem 'estavam no desfile 200 mil pessoas', enfim, coisas tão chatas…Aí, eu vejo essas menininhas absolutamente ignorantes dizendo: 'Comprei essa bota', e virando blogueiras, gente, é a divinizacão da mediocridade."
Brigas e desafetos
Excelente contadora de histórias, Regina mistura em seus relatos doses de paixão, suspense, desespero, vingança. Reconhece que criou muitos desafetos na vida e na obra. "Tenho certeza que sim." Isso incomoda? "Ah, incomoda. Incomoda mesmo. Me dá um puta complexo de rejeição. Não que eu ache que alguém tenha razão de não gostar de mim. Se não gostam, é porque eu não segui um padrão esperado, ou porque eu era brava. Ora, se eu não fosse, não teria chegado onde cheguei."
Presumivelmente, seus principais embates foram com os fotógrafos de moda. "Briguei com quase todos, porque eu olhava na câmara, dirigia a foto, dizia 'é assim, é assado'. Eu e o (Luiz) Tripoli, por exemplo, a gente brigava o tempo todo. Aí, voltamos a nos falar há dois anos, para fazer uma campanha comercial, e brigamos de novo. Mas foda-se. Eu fico triste porque passei natais com eles e as crianças…"
Em sua indignação, Regina afirma que até hoje não entende o motivo do distanciamento de alguns, como J.R. Duran, "que deveria é estar muito agradecido". "O Duran é um cara que me deve tudo. Eu ensinei até a fazer cortes (em fotos). Uma vez ele me ligou da Itália, quando estava fotografando para a Vogue de lá, para pedir conselho. Aí, depois de anos sem falar comigo, me procurou quando eu assumi a direção da Elle, querendo trabalho. Eu não quis não."
Amores remanescentes
Em compensação, os que ultrapassaram os implacáveis testes de resistência impostos por Regina tornaram-se devotos dela. A maioria eu conheci na Elle. Eles enaltecem inclusive as malvadezas dela.
A editora de moda Carla Raimondi lembra de uma ocasião em que acompanhou a chefe a Londres, para cobrir os desfiles de coleção, e aproveitou o ensejo para tentar estabelecer com ela um limite na escala de trabalho. "A gente não tinha hora para entrar nem para sair. Trabalhava sábado, domingo, no Natal, no Carnaval, meu namorado me cobrava, eu não sabia mais o que dizer a ele", conta Carla. As duas estavam saindo de uma sessão do musical Sunset Boulevard (Crepúsculo dos Deuses), Regina emocionadíssima com a grandiosidade do espetáculo, e então Carla pensou: "É agora ou nunca". Tocou no assunto. De volta à realidade, a diva retorquiu: "Querida, se você quer trabalhar de 8 às 5, então vai ser bancária." Carla ri disso até hoje.
Regina ri de volta. Fala com extrema gratidão de Carla, de Clayton, da empresária Daniela Bueno, da diretora de arte Dushka Soban Tanaka, de Mario Mendes, do stylist e editor Paulo Martinez… "Eu vivo completamente de outro jeito, muito simplesmente, quer dizer, dentro de um luxo meu, um luxo muito natural, o vinho aqui é sempre francês, mas pra entrar na minha casa eu faço peneira, são poucas pessoas." Ela inclui todos os citados no começo do parágrafo.
"Acho que as pessoas não entendiam a Regina no trabalho, achavam que ela era maldita, mas o fato é que ela busca a mesma perfeição em casa, na montagem de um prato, na posição de um vaso em cima da mesa", diz Dushka Soban Tanaka, que também acha graça das histórias do passado. "Uma vez a Regina pediu a um colaborador alguma daquelas coisas absurdas, e ele respondeu que faria o possível. Ela disse: 'O possível todo mundo faz, queridinho, quero que você faça o impossível"'.
Muitos ontens e poucos amanhãs
Quando desconfia de que o interlocutor não está acompanhando seu giro, ou pelo menos não da maneira como ela gostaria, Regina Guerreiro lança uma frase do tipo: "Continuo achando feio essas mulheres de shortinho e celulite de fora."
Ela reconhece que talvez hoje não conseguisse, "com a linguagem dos anos 80, 90, flagrar o mundo como ficou sendo". "Por isso, você tem de saber o momento de se retirar", diz ela, na hora em que Karl Lagerfeld, diretor de criação da grife francesa Chanel, aparece na TV. "Ele tem talento, claro, mas na tentativa de fazer da arte uma coisa 'now', ele banalizou muito a Chanel. Foi uma tarefa a que ele se impôs. Então, fica aquela coisa: 'Existo porque insisto'. Aí, põe aquelas golas fechadas até o pescoço, para esconder a papada, e só anda de luva, para não expor as manchas das mãos."
Ela estende o comentário a personalidades mais próximas. "Acho tão melancólico ver essas mulheres incapazes de dizer 'não vou mais fazer esse papel: acabou'. Não adianta você chegar e dizer que sua vida é muito excitante, que dirige uma fábrica e não perde uma coleção do fashion week. Uma mulher com mais de 70 anos tem muitos ontens e poucos amanhãs. Fazer 77 é maravilhoso o caralho!"
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.