Você já ouviu falar em travesti "tucana"?, indaga criador de coletivo LGBTT
Paulo Sampaio
27/07/2018 05h10
O Coletivo Arouchianos, na praça do centro de São Paulo onde se reúne (Foto: Arquivo Pessoal)
Idealizador e coordenador político do Coletivo Arouchianos, que milita em defesa da população LGBTT que frequenta o Largo do Arouche, no centro de São Paulo, e é composta majoritariamente por pobres, pardos ou negros, soropositivos e refugiados, o jornalista baiano Hélcio Beuclair, 33 anos, afirma que esse grupo é mais vulnerável à Aids porque as campanhas de prevenção não chegam a ele. Diz que a linguagem é academicista, distante, "produzida pelo homem cis branco" ("heterossexual de classe média, intelectualizado"). Soropositivo desde 2015, o jornalista afirma que ele mesmo foi vítima da ineficiência da política de saúde pública: "Naquela época, eu não sabia nem que a PEP existia", lembra ele, referindo-se à Profilaxia Pós-exposição ao HIV, que em quase 100% dos casos evita a infecção pelo vírus.
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Nascido em Itamaraju, a 600 km de Salvador, Beuclair conta que trocou sua cidade por São Paulo em 2009, depois de sofrer ataques homofóbicos dentro da própria família ("tortura psicológica, física, humilhações, privações") e de tentar três vezes o suicídio. Afirma que, embora a relação com os pais tenha melhorado nos últimos tempos, sua mãe e sua irmã mais nova continuam não aceitando sua orientação sexual.
A família do pai, de fazendeiros, é composta em sua maioria por cristãos ligados a testemunha de Jeová; e a da mãe, de comerciantes, ao candomblé. Identificando-se como "pardo" ("meu pai é negro"), o militante faz questão de dissociar as expressões "gay" ("identificado com homem cis branco de classe média") e LGBTT ("engloba lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, transgêneros e travestis").
Pesquisa feita pelo Centro de Referência e Treinamento DST/Aids (CRT) revelou que a infecção por HIV continua crescendo tanto em brancos quanto em negros. Mas o número de brancos que desenvolvem a Aids sofreu uma queda, enquanto o de negros se mantém em linha ascendente. Quem tem o vírus não necessariamente desenvolveu doença. "Uma coisa é contrair o HIV; outra é desenvolver Aids, outra morrer de Aids", diz o sanitarista Arthur Kalichman, do CRT, que coordenou a pesquisa.
Na entrevista abaixo, Beuclair fala que "na militância de esquerda, o homem cis tomou o lugar da população historicamente vulnerável para falar por ela – sem ter muita ideia de quem é essa população". "Na direita, piora. Porque aí não dão nem voz ao preto pobre. Você já ouviu falar em travesti tucana?"
Blog – Você tem 33 anos, pertence a uma geração que foi muito alertada em relação a Aids. No entanto, contraiu o vírus em 2015…
Hélcio Beuclair — Eu vivo na periferia (Vila Carmosina, na zona leste, a cerca de 20 km do centro de São Paulo), onde a campanha de prevenção se resume à sugestão do uso da camisinha. Eu não tinha como saber que já havia a PEP (Profilaxia Pós-exposição ao vírus da Aids). Ela é distribuída em locais que, para quem vive nos extremos da cidade, são muito remotos.
Blog — Um estudo do Centro de Referência e Tratamento DST/Aids (CRT) mostra que a infecção por HIV continua crescendo entre brancos e negros. Mas a linha dos brancos que desenvolvem a Aids, e morrem da doença, está em queda, enquanto a dos negros continua ascendente.
Beuclair — Isso parece evidente. A grande parte dos gays pretos são pobres e vivem em lugares insalubres, cortiços, pensões lotadas, barracos com esgoto a céu aberto. E a falta de acesso à informação começa já na infância. As escolas públicas são muito ruins, e se você pega uma em Guaianazes (extremo da zona leste), vai ver que ainda é muito pior que uma em Pinheiros (zona oeste): em estrutura física, manutenção, aparelhamento e preparo dos professores.
Essa carência no ensino básico tem um impacto muito grande em tudo; na alimentação, no desperdício de água, no acúmulo de lixo, no gasto de energia. Como uma pessoa que sai de casa de madrugada para trabalhar, e no fim do expediente segue direto para a faculdade particular (que ele paga), vai ter tempo de prestar atenção nos efeitos da mudança climática?
Blog — No ano em que descobriu que tinha contraído o vírus da Aids, você fundou um coletivo LGBTT que defende um grupo composto majoritariamente por homossexuais pobres, pardos ou negros, refugiados e soropositivos. Acha que as duas experiências estão ligadas?
Beuclair — Eu cheguei da Bahia com R$ 50 no bolso. Ao mesmo tempo em que me apaixonei por São Paulo, tive muita dificuldade para sobreviver aqui. A duras penas, consegui arrumar emprego e me sustentar, pagar a faculdade, me formar em jornalismo. Mas vi de perto que muita gente simplesmente não consegue isso, por falta de acesso e oportunidade. Talvez essa seja a minha diferença, em relação a quem trabalha em campanha de prevenção ao HIV e combate a Aids: eu vejo tudo de perto, convivo. A experiência é transformadora.
Blog –– Que erros você apontaria nas políticas de prevenção ao vírus e combate à doença?
Beuclair — Os conselhos de gestores das políticas públicas e ONGs usam infraestrutura do estado para fazer pesquisas, mas não dão voz para a população pobre e vulnerável. A linguagem dos textos é acadêmica e, mesmo para a população instruída, chata. É preciso se aproximar dessa população, não só na linguagem, mas fisicamente. Não seria legal se, junto com o homem cis de classe média, branco, houvesse gente que tem relação direta com o que está se discutindo ou defendendo?
Blog — Mas o Centro de Referência e Treinamento DST/Aids (CRT) promove grupos de trabalho (GT) com a participação de militantes de diversos grupos da população pobre e vulnerável.
Beuclair — Sem dúvida, produzem debates interessantes, mas que não tem alcance — não chegam na periferia. Eles até instalaram uma van para fazer o trabalho de prevenção no Arouche, onde o frequentador chega à noite disposto a "ferver" (se divertir). Ótimo. Só que a abordagem já teria de partir dessa circustância. Outro dia, em uma dessas testagens (de HIV), eu ouvi: "Vou embora. Não adianta ficar, está todo mundo bêbado." Eu disse: "Mas é aí que você tem de ficar." Ou ele quer que as travestis, por exemplo, um grupo marginalizado, extremamente vulnerável, apresente um comportamento exemplar?
De tanto que isso se repete historicamente, essa população (negros, pobres, vulneráveis) já se acostumou com o descaso por ela. Nem passa pela cabeça dessas pessoas que elas também têm direito ao acesso. É natural que, nesse contexto, o número de infectados seja maior. Volta e meia a gente sabe que alguém morreu. Só esse ano, até agora, foram dez aqui na região.
Blog — O quer você sugere?
Beuclair — Falar do HIV e da Aids utilizando a cultura e a arte produzida na periferia. Organizar saraus, exposições de grafites, bailes funk. Eu levo para o Arouche caixas de som, microfones, projetores de imagens, luzes, e instalo tudo no meio da praça. Promovo shows feitos pelos próprios integrantes do coletivo. A Rodrag, por exemplo, uma figura não-binária (que não está associada ao gênero masculino nem ao feminino, mas não é necessariamente transexual ou transgênero) sobe num pedestal e canta feito uma louca. No meio daquela gritaria, a gente vai tocando no assunto da prevenção, inserindo esse conteúdo aos poucos.
Blog — O Arouchianos é um coletivo gay…
Beuclair — Não gosto dessa palavra, porque remete apenas a um tipo de homossexual, o branco de classe média. Quando fala da parada, a mídia se refere a ela como "gay". A parada é LGBTT, em defesa dos direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros. E nos Arouchianos, há também os migrantes refugiados LGBTT, pessoas que deixaram seus países por causa de perseguições políticas e religiosas. Então, a sigla correta seria LGBTTI+, para quem mais chegar.
Blog — De onde vêm esses imigrantes?
Beuclair — Da Nigéria, do Congo, Senegal, Venezuela, Bolívia, Haiti. Há alguns do Oriente Médio também. Em todos os casos, eles praticamente se escondem. Não gostam de se expor, dar entrevistas, porque muitos são casados em seus países de origem, outros são portadores de HIV. Temem mais perseguição, longe de casa.
Blog — Existe um grupo de acolhimento a esses imigrantes no Brasil?
Beuclair — Essa é a questão. Não existe. Os abrigos colocam todos os imigrantes juntos: homossexuais, heterossexuais, religiosos. Então, o homossexual continua sofrendo preconceito. Não é porque todos são refugiados que agora vão se unir. O resultado é que se registram episódios de exclusão, agressão, humilhação.
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.