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'Comigo, o João Gilberto não fazia charminho', diz cantora Leny Andrade

Paulo Sampaio

29/12/2019 04h26

Convidado para uma festa na casa do governador de São Paulo Adhemar de Barros ( 1901-1969) nos anos 1960, o pai da bossa-nova, João Gilberto (1931-2019), afastou o sofá da parede da sala, se sentou ali atrás, escondido dos convidados, e  começou a cantar.

"Eu não estava na festa, mas todo mundo conhece essa história, ficou famosa", diz a cantora Leny Andrade, 76, que acompanhou a bossa-nova desde os primórdios. "Aliás, ainda bem que eu não estava. Se estivesse, ia dar na cara do João de mão aberta, para ele parar com aquilo. Comigo, ele não fazia esse charminho", garante ela, referindo-se às lendárias excentricidades atribuídas ao "gênio da MPB".

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"Uma vez, na minha casa, com outros músicos, ele ia começando alguma coisa nesse sentido, eu disse que aquilo era desnecessário, que todo mundo ali era muito bom, e então ele se tocou e parou."

No espetáculo Leny Andrade 77 anos, ela canta 12 músicas, incluindo "As Rosas não Falam" (Cartola); Palhaço (Nelson Cavaquinho) e Dindi (Tom Jobim) (Foto: Marcelo Castello Branco/Divulgação)

Casinha de boneca

No mês que vem, fará um ano que Leny Andrade se mudou voluntariamente para o Retiro dos Artistas, no bairro da Pechincha, zona oeste do Rio. "Isso aqui é ótimo, eu adoro", afirma ela, contradizendo tudo o que costumeiramente se ouve falar de  retiros para idosos, em especial o "dos artistas", que abriga uma classe de seres humanos considerada imune ao ocaso. "Aqui a gente come bem, tem roupa lavada, é atendido por médicos, enfermeiros, fisioterapeutas."

No caso de Leny, não se trata de um retiro da carreira artística. Ela vive no que chama de "casinha de boneca",  com sala, dois quartos, varanda e quintal. "O retiro não é um asilo", diz a produtora Eliana Peranzzetta, que integra a LAL, ou Liga dos Amigos da Leny, grupo de sete pessoas que fazem as vezes de família da cantora.  "O retiro é um condomínio onde atores, cantores e produtores que não têm mais família convivem numa boa, recebem visitas, entram e saem na hora que querem e, no caso de Leny, até ensaiam."

Tachauzinhos do palco

Entre os amigos que a visitam está o pianista João Maia, 16, que se tornou fã instantâneo de Leny quando a assistiu em 2013 na TV, na casa da avó, em uma apresentação durante a entrega do 24º Prêmio da Música Brasileira. "Fiquei muito impressionado com a voz e a interpretação dela. Nunca tinha visto nada parecido. Em 2017, a conheci pessoalmente, em um show. Agora, vou a todos, sento nas primeiras filas e recebo tchauzinhos do palco."

Maia responde prontamente a todas as perguntas que se fazem sobre Leny: "Foram 31 discos selecionados, de carreira mesmo, mais dois DVDs, sem contar as participações", afirma ele, e manda a lista por WhatsApp. "Em 2007, o disco 'Leny Andrade e Cesar Camargo Mariano' ganhou um Grammy."

Com o admirador mais recente, o pianista João Maia, 16, no teatro Rival, Rio (Foto: Arquivo Pessoal)

Estamos aí

No próximo 30 de janeiro, quatro dias depois de seu aniversário, Leny se apresenta na versão paulistana da casa de espetáculos novaiorquina Blue Note — na qual fez sua estréia em Nova York, em 1988 e, desde então, ganhou fãs célebres — e incondicionais — como o cantor Tony Benett, que sempre a assistiu nas primeiras filas.

No show Leny Andrade 77 Anos, ela é acompanhada do pianista e arranjador Gilson Peranzzetta e canta doze músicas, incluindo "Fim de Caso"(Dolores Duran); "O Rio" (Roberto Menescal e Ronaldo Bôscoli); e a mais associada a ela,  "Estamos Aí"( Maurício Einhorn/Durval Ferreira/Regina Werneck).

Selinho em Tony Benett, em show no Blue Note de NY (Foto: Reprodução)

O beco e a bossa

O começo da carreira foi ainda antes da adolescência. Filha única de uma professora de música e um médico, Leny estudou piano durante três anos, com a mãe, e então entrou para a o Conservatório Brasileiro de Música. Ela afirma que aprender a tocar um instrumento é "fundamental para quem canta". "Você tem noção de harmonia, sabe para onde ela tá te levando, e como (os músicos) estão te acompanhando, ou mesmo se não estão."

Aos 15, Leny já se apresentava em bailes e em programa de calouros. Nessa época, a convidaram para cantar no Bottle's Bar, no lendário Beco das Garrafas, em Copacabana, e então ela passou a frequentar a roda dos bossa-novistas. Ia acompanhada do pai, que a vigiava com marcação cerrada.

Na ocasião, teve contato com Sério Mendes, Roberto Menescal, Tom Jobim e Ronaldo Bôscoli — "que passou o rodo em toda a MPB, menos em mim".

Beco das Garrafas, 1965 (Foto: Reprodução)

Leny está gripada

Na conversa, Leny fala naquele tom sério que o carioca raiz usa quando vai contar algo engraçado, justamente para tornar a história ainda mais divertida. De vez em quando sai um "porra!", um "puta que o pariu!", que não têm nada de agressivo, servem apenas para imprimir no discurso uma espécie de valentia sem maiores consequências.

"Há uns três dias, fiz um show com o Gilson, tava gripada, mas não tossi, não tive pigarro, e quando terminou, ele disse: 'Ô Leny, você tá mesmo doente? Diz que  tá com febre por causa dessa gripe, então cadê a gripe, porra?' Eu respondi: "A gripe foi pra puta que o pariu."

Ela explica: "Eu esqueci dela (gripe). Comecei a cantar o repertório que a gente tinha combinado, e viajei nele. Eu disse para o Gilson: 'Sinceramente, é mais importante eu pensar na música do que nos problemas que eu poderia ter tido no palco por causa de uma gripe.'" A parceria com Peranzzetta é antiga, os dois se apresentam juntos desde os anos 1980: "Ele sabe tudo, é fodão."

Pelo álbum da dupla em homenagem a Cartola, Peranzzetta recebeu o "Prêmio da Música de Melhor Arranjador". Depois, veio um CD com repertório de Nélson Cavaquinho, e seguiram-se inúmeros shows por todo o Brasil. "Leny vai fazer 77 anos e sua voz continua maravilhosa, suas interpretações levam o público às lágrimas", diz ele.

Em agosto, no Imperator, Rio, com Gilson Peranzzetta (Foto: Marcelo Castello Branco/Divulgação)

Tchu-bi-du-ba-dá-bá-dá

Uma das marcas da interpretação de Leny Andrade é o scat singing, quando o cantor acompanha os músicos com improvisos vocais. Os dela tem um tempo tão exato que o jornal "The New York Times" chegou a compará-la a Ella Fitzgerald e Sarah Vaughan.

Curiosamente, Leny tem um jeito de raciocinar parecido com o de interpretar: durante a entrevista, por mais que se mostre disposta a dar respostas objetivas, ela prefere o volteio. Aparentemente, não é para evitar algum assunto, mas para dar um certo colorido à história.

Vozeirão na catedral

Sobre Tom Jobim, por exemplo, a quem considerava "lindo e talentoso", ela diz que "não era homem para atacar". "Ele era intocável, feito uma divindade. Eu não o via como um corpo, mas como um som, uma harmonia. Preferia me aprofundar no espiritual do que ir por outro caminho. Eu o queria ali, onde eu tinha ele. A transa era outra."

Em dezembro de 1994, quando Tom morreu em Nova York, Leny morava na cidade havia dois anos — e ficaria mais seis. O embaixador do Brasil a chamou para prestar uma homenagem na missa de sétimo dia, celebrada na catedral de St Michael. "Eu disse que faria o que ele quisesse." Mas fez muito mais. Sua interpretação a capela de "Por Causa de Você" (Tom/Dolores Duran) foi tão arrebatadora, tão emocionante, que os aplausos vieram na forma de um silêncio reverencial — e muitas lágrimas.

Em "Embraceable You", gravado em 1991, quando ela estava em Nova York, Leny canta "The Man I Love"; "Night and Day"e "Just in Time" (Foto: Reprodução)

Paixão sublime

Leny também se apaixonou musicalmente por Taiguara, Ivan Lins, Johnny Alf e muitos outros compositores que ela cantou, mas não tocou. Resolvia o amor platônico, sublime, musicalmente. Chegou a gravar um disco inteiro apenas com músicas de Ivan Lins.

Não que ela ficasse só nisso. Quando a paixão era, digamos, carnal, aí ela se jogava sem reservas. Costuma dizer que no México, onde morou durante cinco anos e meio, entre 1966 e 1972, namorou homens de "todas as raças e nacionalidades". Se diverte contando a história de uma trepidante noite de amor com o então ponta-direita Jairzinho, conhecido como "Furacão da Copa (de 1970)", em que os dois chegaram a quebrar uma cama. "E era cama das boas", diz ela, séria.

Marido mensageiro

Quando fala dos relacionamentos longos, que foram poucos, Leny não começa do começo, mas do único homem que se tornou seu marido. Carmelo era um madrilenho que apareceu em sua casa nos anos 1980, levado pelo secretário dela na ocasião, Teo:

"O Carmelo veio com o recado do dono de um teatro que queria que eu me apresentasse lá. E também que eu transasse com ele (o dono do teatro). Duas semanas depois, (o Carmelo) me pediu em casamento. Eu aceitei. Ficamos cinco anos e meio juntos, até que eu vi que não era madura o suficiente para me relacionar com alguém tão livre."

Mulherengo?

"Não. Ele tomava liberdades as quais eu não me habituava. De uma hora para outra, acendia um baseado no meio da sala. Ou então, estendia uma carreira de pó. Um dia, abri a porta e disse: 'Tchau'."

Mais de direita

A reação de Leny em relação ao vício do marido parece estranha, já que ela frequentava um ambiente musical regado a whisky e cocaína. "Nunca bebi, nem cheirei ou fumei. Tinha horror", afirma.

Era tida como "careta"? "Isso não me incomodava não."

Apesar de ter lidado com compositores perseguidos durante a Ditadura Militar, e convivido com artistas majoritariamente de esquerda, Leny afirma que sempre foi "mais de direita". "Eu achava mais simples."

Digamos que, no caso dela, direita e esquerda são conceitos relativizados. Ela diz, por exemplo, que Chico Buarque de Hollanda "nunca foi petista". Informei que na véspera Chico jogara uma pelada com Lula, em Guararema (São Paulo). Leny repete: "De esquerda, ele?", sem deixar claro se não sabia, ou se não acredita (quando quer mudar de assunto, ela pergunta qualquer coisa à cuidadora, Valéria). 

Sem corriola

Em relação ao feminismo, Leny afirma que o que eventualmente a incomoda é a "corriola": "Eu nunca precisei de movimento para me afirmar. Minha mãe me deu muita segurança. Sempre fiz o que queria, namorei quem eu queria, cantei as músicas que eu queria. Quando me mandavam música para escutar (e gravar), e eu não gostava, eu dizia: 'Isso aí não dá não'."

Sempre muito firme, sem medo de se mostrar politicamente incorreta, ela associa o feminismo a mulheres que tiveram problemas na cama com homens. Pergunto se ela nunca teve: "Pode ser, mas não traumatizei", explica.

Um exemplo

Ela fala de um "noivo", Álvaro, com quem ficou durante oito anos, desde a adolescência, até que um dia decidiu ver se de fato gostava dele: "Deu um clique na minha cabeça, eu resolvi que iria para a cama com o Álvaro. Fui (faz uma pausa). Aí, acabou", lembra ela, com um esgar meio cômico de contrariedade.

Oito anos até ir para a cama? "A gente passava a mão, se beijava muito, se esfregava."

Por que não transava?  "Eu ia levando na minha, sem descambar para a sexualidade, porque não sabia onde ia dar.  Mantive o fogareiro em chama branda, para não deixar incendiar."

O Álvaro não quis antes? Não insistiu? "Era muito engraçado, porque a gente se respeitava…O Álvaro se sentia muito bem comigo, frequentava as minhas rodas de amigos, não criava caso."

Vocês eram mais amigos do que amantes? "É."

Será que ele era gay? "Não. Acho que não…"

Só admirando

Depois de Álvaro, com quem perdeu a virgindade aos 23 anos, Leny diz que ficou mais acessível ("fácil") aos homens. Em compensação, passou a exigir de si um sentimento mínimo de admiração em relação ao amante. "Senão, não quero trepar."

Apesar de dizer que sempre gostou de "macho, e ainda de cor", Leny conta que tanto Álvaro quanto Carmelo eram "brancos de cabelos pretos":  "O Carmelo era um cromo, corpinho de bailarino, bom de cama pra caramba."

Beleza interior

Diferentemente de muitas mulheres que se sentem inseguras namorando "cromos", Leny diz que isso nunca foi problema: "Com certeza, beleza eu não tenho. Sempre quis que gostassem de mim pelo que eu sou. O que eu tenho, com certeza, é….beleza interior."

Talento?

"É, pode ser talento."

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.