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Paulo Sampaio

Com Bolsonaro, a estupidez saiu do armário, diz trans agredida na rua

Paulo Sampaio

21/08/2019 04h00

"Qual a supresa de ver os agroboys de Dourados militando pelo Bolsonaro?" (Foto: Arquivo Pessoal)

Pouco antes da eleição para presidente da República, no ano passado, a designer Lua Guerreiro trabalhava nos bastidores do filme "Madalena", em Dourados, no Mato Grosso do Sul, quando a equipe de produção se deu conta da dimensão da militância pró Jair Bolsonaro. A maioria dos habitantes da cidade fazia uma ruidosa campanha para o candidato do PSL. No pleito, 70% dos eleitores da região votaram nele. No set de filmagem de "Madalena", a equipe ficou horrorizada. "Alguns choraram."

"A reação deles me surpreendeu mais do que o apoio dos agroboys ao Bolsonaro", afirma Lua. (Uma das origens da riqueza da região é a agropecuária. De acordo com pesquisa do IBGE  — Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística –, em 2015 Dourados tinha o terceiro maior PIB — Produto Interno Bruto — do estado).

"O povo que elegeu o Bolsonaro sempre existiu no Brasil", acredita Lua. "A  diferença é que agora a estupidez saiu do armário. Dezenas de milhões de pessoas se sentiram encorajadas pelo presidente da República a ser o que sempre foram. É natural que justifiquem cegamente o que ele diz, por mais bizarro que seja."

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Socos e Rasteiras

Em fevereiro, Lua foi brutalmente agredida por um grupo de oito homens na praça da Cantareira, em Niteroi (região metropolitana do Rio). Eles lhe aplicaram socos no rosto, rasteiras e, por fim, quebraram uma cadeira em sua cabeça. Acompanhada de alguns amigos gays e héteros ("nenhum trans"), ela os havia deixado para ir até uma barraca de sanduíches ver se conseguia acender seu cigarro. O dono passou a agredi-la verbalmente, ela reagiu indignada, e então a situação evoluiu para a selvageria. "Se a polícia não passasse na hora, eles teriam me matado", acredita.

Depois de ser atendida em um hospital público, Lua foi ao 76º DP (Distrito Policial) para registrar queixa da agressão. "Eles me deixaram quase duas horas esperando, eu fui embora." Na ocasião, o distrito informou que agentes de plantão pediram a ela que aguardasse, uma vez que estavam realizando outros boletins de ocorrência naquele momento. "Ela disse que retornaria depois", disseram.

Lua: "Eu tinha acabado de levar uma surra de oito homens, estava cheia de pontos na cabeça, achei que deveria ter prioridade no atendimento", argumenta. Ela acabou fazendo o b.o. na Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância

Sem descanso

Inconformada, Lua relatou o episódio na internet, e o post viralizou. Hoje, não gosta de lembrar do que aconteceu. Há cinco meses, mudou-se com duas amigas para uma comunidade na zona sul do Rio, e nunca mais foi à Cantareira. "Uma das minhas amigas é trans, a outra, negra, e eu sou as duas coisas." Perto da sensível equipe de produção de "Madalena", Lua tende a parecer cínica, ou agressiva. Ela reconhece que é reativa, mas receia que associem esse comportamento "mais uma vez" à pessoas trans, o que reforçaria o preconceito.

"Acontece que existe uma luta efetiva, a todo momento, para ter nossa existência reconhecida. Eu sofri transfobia até na universidade, um lugar supostamente frequentado por gente estudada, esclarecida."

"Tenho a sorte de ser 'passável'. Sou uma figura fácil de digerir" (Foto: Arquivo Pessoal)

Trans higienizada

Com todo o preconceito que sofreu, Lua ainda assim se declara uma privilegiada: "Minha família me acolheu, me respeita, e tive acessos que pouquíssimas pessoas trans têm. 95% delas vivem na prostituição. E são discriminadas, dependendo da aparência. Comigo não acontece, porque sou 'higienizada': alta, magra, cabelo comprido, tudo isso é signo de 'normalidade'. Fica fácil digerir."

Lua é o que os iniciados chamam de "passável". Significa que "passa" como mulher (cis), sem levantar suspeitas. "Se eu fico calada, a galera não apavora." Contudo, ela não abre mão de manter em si características masculinas que não sejam "uma grande questão". Pêlos nas pernas, por exemplo. Ela gosta. Com 25 anos, 1,85m de altura, isso não passou despercebido por um sujeito que tomava café em uma loja de conveniência onde Lua entrou há pouco tempo com alguns amigos. O homem tirou da carteira todo o dinheiro que tinha, o cartão de crédito e disse. "Isso é pra você comprar uma gilete."

"Agora, raspar os pêlos da perna virou questão de segurança", diz ela.

Processo individual

A designer conta que teve dois namorados, um durante cinco meses, outro por dois anos. A transição ocorreu no meio do segundo relacionamento, quando ela tinha 21 anos. "Foi um processo individual, que tem muito mais a ver com uma busca de identidade do que com mudança corporal. Não pretendo fazer cirurgia de redesignação sexual. Apenas sentia falta de um lugar para chamar de meu, e eliminei aquilo que me era dado como única opção de identidade. O homem tem orgulho de dizer: 'Eu sou homem'; e a mulher, 'Eu sou mulher'. Nunca tive uma sensação de pertencimento. Ela veio, e foi maravilhoso."

 

Antes da transição, feita ao longo de 2015 (Foto: Arquivo Pessoal)

Construção arcaica

Para ela, a noção de "gênero" é uma construção social arcaica. Uma "palhaçada"."Eu vejo a divisão binária homem/mulher como uma explicação simplista, que se apoia apenas no fato de um ser diferente do outro. Mas a gente está em 2019, já sabe que se trata de algo muito mais complexo do que genitália e reprodução."

Otimista, Lua acredita que "a sociedade vai mudar".

Sem namorado no momento, ela reconhece que não está fácil para ninguém. "De vez em quando eu entro nos aplicativos de busca, é assustador. No Tinder até marco alguns encontros, mas eu não posso esperar mais do que sexo. No Grindr, que é mais sigiloso, as pessoas são ainda mais diretas. Sabem até onde podem ir e não passam dali. As coisas são assim mesmo, eu deveria estar acostumada, mas quando vejo que de fato o amor tem gênero, cor e classe, e que nenhum deles diz respeito a uma pessoa trans, bate uma angústia."

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.