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Paulo Sampaio

Vejo o racismo como oportunidade, diz atriz e produtora Maria Gal

Paulo Sampaio

06/11/2019 04h00

Não faz muito tempo, a atriz baiana Maria Gal foi reprovada em um teste para participar do elenco de um filme, porque o diretor considerou sua cor "pouco comercial". Isso ela soube depois, por um amigo negro que ouviu o comentário do próprio autor. Maria participou do teste com dezenas de candidatas, das quais sobraram, na última etapa, ela e uma atriz branca.

"Uma coisa é você nunca se ver representada na TV ou no cinema, a não ser em papeis caricatos. Outra coisa é sofrer o preconceito na própria pele. A proximidade nos atinge pessoalmente."

Chefe de si

Para não passar por isso de novo, Gal resolveu abrir sua própria empresa, a Maria Produtora. Formada por uma equipe de artistas e técnicos majoritariamente negros, ali quem tem o poder de decisão são eles. Para captar recursos, ela usou a discriminação a seu favor.

"Eu vejo o racismo como uma oportunidade. Hoje, grandes empresas querem investir em temas associados ao preconceito de cor, de raça, de sexo. O mundo civilizado busca essa inclusão. Então, os CEOs dessas empresas, ou as pessoas ligadas ao marketing, costumam dar uma atenção especial ao meu projeto", diz.

Fundada no ano passado, a Maria Produtora está em fase de pré-produção de seu primeiro longa-metragem. Trata-se da história de uma mulher negra que se tornou símbolo de reconhecimento na elite cultural do País, mas é pouco lembrada em comparação a seus pares brancos. (Isso é tudo o que o blog está autorizado a contar, para não atrapalhar as negociações da produtora).

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Dormindo com o inimigo

Gal tem duplo motivo para se sentir poderosa. O pontapé inicial para a conquista de sua independência profissional veio junto com outra vitória, pessoal. Ao mesmo tempo em que abria sua produtora, ela se livrava de um relacionamento abusivo que quase a fez crer que a louca era ela. Foram quatro anos, uma gravidez e um final sinistro.

"Retrospectivamente, eu percebo que sempre soube quem ele era de verdade. Mas por carência, você se deixa levar até um ponto em que acredita no personagem que o sujeito desempenha. Como podia aquele gentleman sedutor, que me amava tanto, ter um outro lado tão assustador? De repente, era como se eu estivesse dormindo com um inimigo."

Refém psicológica

A história se repete. Como em boa parte dos relacionamentos abusivos, primeiro o algoz de Gal a transformou em sua refém psicológica. Reduziu sua autoestima drasticamente, até que ficou difícil, para ela, levantar-se para se defender. Se ousasse, bem, aí ele partia para algo mais radical.

"Uma vez, na estrada, voltando de Parati, eu o confrontei com a descoberta de mais um podre, e então ele parou o carro e tentou me empurrar para fora. Como eu resisti, ele deu a volta e passou a me puxar com força pelo braço. Por um desses acasos do destino, alguém passou na hora de carro, viu a cena e comunicou à polícia."

Quando os policiais chegaram, a tempo de testemunhar alguns safanões, o companheiro de Gal "virou um lord". Ela foi instruída a denunciar a agressão, mas acabou recuando. "Me vieram à cabeça as condições das penitenciárias superlotadas do Brasil, ele negro, eu pensei: 'Gente, não precisa disso'. Eu não queria, ainda por cima, carregar esse peso. Decidi não registrar o boletim de ocorrência."

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Para evitar que digam de novo que sua cor "não é comercial", ela criou a própria produtora (Foto: Natan Fox)

Constrangimento e solidão

A culpa sempre foi a pior conselheira de Gal. O tempo todo soprava em seu ouvido ponderações que, àquela altura, já não tinham o menor cabimento. Tipo, que ela poderia estar enganada, ou exagerando, que ia acabar se arrependendo de agir "precipitadamente".

É difícil, na conversa com Gal, imaginar aquele mulherão exuberante, chamativo, sorridente, patinando em um atoleiro assim. Filha única, a atriz de 43 anos conta que ninguém da família, nem entre os amigos, sabia o que ela estava passando.

"Eu sentia constrangimento, vergonha de falar no assunto. A gente fica muito solitária. Esse é um dos motivos pelos quais eu resolvi falar disso publicamente. Não posso guardar só pra mim. Devem haver muitas mulheres agora, no Brasil e no mundo, passando pela mesma situação. Eu me sentiria muito gratificada se esse depoimento pudesse ajudá-las", diz. 

Traição e gravidez

Levou tempo até que Gal despertasse do pesadelo. As primeiras descobertas a respeito do inimigo com quem dormia a levaram a ir até o fim. Em uma das muitas separações e votas do casal, ela soube que ele costumava investigar suas mensagens e recados no celular, atrás de alguma traição. Gal resolveu fazer o mesmo.

Mais um baque. Quem tinha outra pessoa era ele. E ela havia acabado de ficar grávida. "Engravidei feliz, ele falava em família, em filho, a gente queria um bebê." O destino quis que a gravidez fosse complicada e que ela perdesse o filho. Gal hoje dá graças a Deus. "Imagine se eu estivesse presa aquele homem por um filho."

Redenção na arte

Ironicamente, no momento a ficção e a realidade estão em sincronia na vida de Maria Gal. Sua personagem na novela "As Aventuras de Poliana", do SBT, parece ter sido escrita para ela. Gleyce Soares é uma mulher forte, amadurecida, que encoraja uma amiga a sair de um relacionamento abusivo e se preocupa em fortalecer a autoestima dos filhos: "Esse papel é uma redenção na minha vida. Um marco."

É possível que na ficção o final seja feliz para a vítima dos abusos. Na vida real de Maria Gal, o término se prolongou mais do que ela gostaria. Por medo, a atriz marcou a última conversa com o agressor "em um lugar público". Ele então entendeu que a decisão era definitiva, que ela realmente o estava expulsando de sua casa e de sua vida. "Ainda deu tempo de ele dizer que queria que eu morresse", conta. Por precaução, Maria Gal orientou os porteiros do prédio onde mora a não permitirem que ele subisse ao seu apartamento.

Sempre adiante

A atriz diz que está aberta a um novo relacionamento, e que quer que isso aconteça, mas pelo visto o pretendente vai ter de lidar com uma sequela previsível. "Não adianta dizer que não fiquei traumatizada e que eu confio nas pessoas como sempre confiei. É complicado", diz.

Apesar do desabafo, ela se mostra mais livre do que ressentida. "Não tenho nem tempo para cultivar mágoa. Trabalho na proatividade e pra frente. No fim, tudo isso me deu um gás que você não imagina!"

Tim-tim!

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.