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Paulo Sampaio

Fruto de um estupro, negra e bissexual, cabeleireira superou preconceitos

Paulo Sampaio

15/01/2018 08h00

O motorista Aristel Nascimento, avô materno da cabeleireira Elaine Amarante, se referia a seu vizinho negro como "macaco".  O preconceito racial de Aristel tornou-se ainda mais odioso quando esse mesmo vizinho estuprou sua filha, Maria da Conceição, e a engravidou. Nasceu Elaine: "Eu sou a única negra em uma família de mais de 80 pessoas", conta a cabeleireira, de 52 anos. "Meu avô expulsou minha mãe de casa, porque naquela época a mulher era sempre culpada. Um tempo depois a acolheu de volta e se encantou comigo. Fui criada com todo amor por ele e minha avó."

Mas Aristel se manteve racista até a morte: "Se alguém dissesse que eu era negra, ele partia pra cima. Era como se tivessem me xingado", lembra ela, rindo. Pode-se imaginar o número de vezes em que o avô de Elaine precisou tomar satisfações com pessoas que, ironicamente, eram racistas como ele.

A cabeleireira diz que a tomavam como filha adotiva do casal, mas só na infância. Na adolescência, seu status mudou. "Mais de uma vez, na praia, comentaram: 'Que legal, vocês trazem a empregada junto, tratam de igual para igual."

Dentro da família, Elaine afirma que jamais sofreu qualquer tipo de preconceito. "Adorava brincar com meus primos, e eles comigo. O tom da minha pele não me incomodava, mas eu me perguntava porque o meu cabelo não balançava como o deles. Sonhava em ficar rica para ter uma coleção de perucas." Quem sugeriu a entrevista com Elaine foi uma prima muito próxima dela chamada Graciela.

Ele & Ela

Nascer negra foi só o início de uma vida cheia de desafios sociais. Um ano depois de ficar viúva do pai de seus dois filhos, que morreu aos 45 de cirrose hepática, ela iniciou um casamento de dez anos com uma mulher. Elaine levou a companheira para trabalhar no salão e para morar com ela em casa. Mas não logo. "Morria de medo da reação das pessoas", lembra.

Seu filho, Sérgio, soube do relacionamento da mãe pela irmã, Muriel. Elaine lembra: "Minha filha me mandou uma mensagem pelo celular me perguntando se a Marly era só minha amiga, ou se a gente estava namorando. Eu respondi a verdade, ela contou para o irmão."

Mas o maior problema do relacionamento não foi "externo". Segundo Elaine, Marly a controlava em todos os seus movimentos, reclamava de tudo que ela fazia e era grosseira. "Eu gosto de mulher que é mulher. Ela é homem." Pela sua vontade, teria terminado tudo em 2008, um ano depois do início. "Mas fui deixando, deixando, até o ponto em que não aguentei mais." As duas ainda se dão, mas apenas profissionalmente. Marly continua trabalhando no salão.

Filhos e Netas

Primogênita de Elaine, Muriel, 29 anos, deu a ela duas netas, Giovana, 13, e Julia, 7, e foi o arauto das revelações sexuais da família. Mais ou menos na mesma época em que contou ao irmão sobre o relacionamento da mãe com Marly, ela revelou à Elaine que Sérgio era homossexual. "Minha irmã soube que eu beijei um outro garoto na escola, e se adiantou. Mas foi tudo bem. Naquele ano, a gente fez um Natal gay em casa. A decoração da árvore era em crepom com as cores do arco íris", conta Sérgio, 24, que é bailarino e se define como "gay cis", ou bi-identificado (com o gênero masculino e o feminino).

Elaine Amarante, ladeada pelo filho, Sérgio, a filha, Muriel, e as netas, Giovana e Julia (Foto: Arquivo Pessoal)

Homem da minha vida

Ao falar do pai de seus filhos, com quem ficou casada durante 23 anos, Elaine o classifica como "o homem da minha vida".  Sérgio Amarante administrava a rede de salões de cabeleireiros do casal, que chegou a ter dez filiais, enquanto Elaine ficava no "operacional". "A gente tinha uma sintonia fora do comum", lembra ela, que o conheceu em 1983, quando estava em uma balada chamada Stop, na Vila Prudente, zona leste de SP, e aceitou o convite dele para sambar. "Eu era comprometida, mas meu noivo morava em outra cidade, e eu só o via de quinze em quinze dias. Queria mesmo terminar o relacionamento, não gostava dele." Naquele sábado, para sair de perto de uma briga que aconteceu na mesa ao lado, Elaine aceitou o convite de Sergio para dançar: "Depois de uma seleção de samba de uma hora, eu estava apaixonada. Na quarta-feira, já perguntei a ele: 'Você quer só me namorar, ou casar comigo?' Ele respondeu"'Casar."

Elaine realizou o sonho de se casar na igreja, de véu e grinalda e com um homem branco. Como diz Caetano Veloso, "a vida é real e de viés": "Não casaria com um negro de jeito nenhum.  A justificativa que eu dava  na época era que, como perdi contato com meu pai, corria o risco de estar casando com um irmão", ri.

No dia do casamento:"o homem (branco) da minha vida" (Foto: Arquivo Pessoal)

Sem 'coitadismo'

A cabeleireira escolheu enfrentar o preconceito pela via da coragem. Com um olhar firme, um tom de voz claro e um sorriso agregador, ela faz o tipo dona da própria vida. Não espera que a defendam, odeia pieguice e em nenhum momento se coloca como vítima de uma sociedade racista e homofóbica. "Detesto me fazer de coitada", diz ela, sem deixar de mencionar os óbvios episódios de hostilidade que experimentou.  "Imagine se a polícia não pararia uma mulher negra ao volante de uma Blazer, ouvindo Racionais", diz ela, rindo. E: "Quando querem falar com a dona do salão, os fornecedores procuram entre as brancas."

Sua escolha profissional não foi mera obra do acaso. "Sempre amei mexer em cabelo. Desde pequena, queria conseguir dinheiro para ter o meu salão", diz ela. Para ficar rica rapidamente, ela pensava em prestar concurso para a Prefeitura ou o Estado. Elaine fala sério: "Meu plano era me tornar funcionária pública, porque aí eu ganharia um salário sem fazer porra nenhuma; deixaria minhas coisas em um canto da repartição, e ficaria fazendo as unhas dos colegas."

Aplique de tela

A pedido do blog, Sergio foi junto com a mãe à entrevista. Durante todo o tempo, enquanto ela falava, ele a olhava embevecido. Não só pelo conteúdo do texto, mas pela forma como ela se apresenta;  o jeito de falar, a exuberância do cabelo, o capricho da maquiagem…"Esse aplique que eu estou hoje é costurado em uma tela (ela leva as duas palmas das mãos à cabeça e desliza a armação para um lado e para o outro). Amanhã, posso mudar tudo", diz. O sonho da coleção de perucas se realizou. "Tenho um monte."

Com o filho Sergio, em um evento no centro de São Paulo (Foto: Arquivo Pessoal)

Digo que o filho parece ter muita admiração por ela, e a cabeleireira ri orgulhosa. Aproveita para reforçar o personagem da mulher destemida. Lembra, por exemplo, que foi diagnosticada em 2000 com com uma doença autoimune extremamente agressiva chamada dermatomiosite, que compromete a pele e os músculos, e que o médico foi muito agressivo ao fazer o diagnóstico — mas ela não passou recibo. "Eu não tinha força para levantar uma xícara de café,  e então o reumatologista me disse que a tendência era eu perder os movimentos. Fiquei furiosa. Levantei da cama do hospital, apontei o dedo na cara dele e disse: 'Isso não vai acontecer porque essa doença não existe. Eu fabriquei!"'

Ela ainda "fez" a dermatomiosite mais uma vez, em 2010, quando sua segunda neta nasceu, mas, de novo, a superou: "Mesmo tomando cortisona, fui a uma festa e virei quase uma garrafa de whisky", ela conta, rindo muito. "O médico não acreditou."  Livre da medicação, ela diz que hoje não sente mais nada.

Afetivamente, Elaine está, por assim dizer, animada. Conheceu "uma senhora de 60 anos" no aplicativo Tinder, de busca de relacionamentos, e a coisa vai na base do vento a favor: "Digo a ela que agora eu estou em fase de correção de rota."

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.