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Paulo Sampaio

Mulheres dão carinho temporário a bebês separados das mães pela Justiça

Paulo Sampaio

30/11/2018 04h00

A arquiteta Camila Cardoso Frederico, 40 anos, está em seu terceiro "acolhimento". É assim que as mentoras do programa Famílias Acolhedoras, criado há três anos em São Paulo, se referem ao período em que um ou mais voluntários aparentados se ocupam de dar carinho a bebês cujas mães encontram-se separadas dos filhos por determinação da Justiça — as razões vão desde dependência química até abandono do bebê. Pobreza, por si só, não entra na lista. As crianças acolhidas têm entre zero e 3 anos, e permanecem na casa das famílias por um período que pode variar de três meses a 1 ano e meio. O ideal é que, nesse período, a mãe biológica possa se recuperar e adquira condições de receber o filho de volta. Ou, se não a mãe, um parente próximo ou responsável avaliado pelo programa. Caso contrário, a criança é encaminhada para a adoção.

Camila é solteira, sem filhos e vive com a mãe, Vera, em um apartamento de dois quartos na zona oeste da cidade. "Eu nunca quis ter filhos, foi uma opção. Por outro lado, eu e minha mãe sempre estivemos próximas desse terceiro setor. Em 2016, resolvemos que era o momento de acolher uma criança, então eu voltei a morar com ela, e a gente recebeu em casa o primeiro bebê", conta.

A criança tinha 1 ano e sete meses, e ficou com Camila e a mãe durante 60 dias; depois, veio um recém-nascido de 28 dias, que permaneceu com elas por quase nove meses; e, mais recentemente, uma menina de 18 dias, por seis meses: "Meu tio morava com a gente, e ocupava um dos quartos. Quando o primeiro bebê chegou, eu fui dormir na sala, e minha mãe ficou com ele no quarto. Aí, meu tio saiu de casa, e aí a gente passou a revezar os quartos." Camila afirma que, por causa de seu trabalho no terceiro setor, nunca precisou comprar um berço, nem mesmo uma fralda. "Recebi muita ajuda."

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Camila com a mãe, Vera, e o bebê (no centro), ladeadas por dois amigos da rede de apoio que participam  (Foto: Arquivo Pessoal)

Pode ter babá?

Qual o critério exigido para que uma família participe do programa? Quais os impeditivos? Pode ter babá? Ser vegetariano? Gay (ou lésbica)? Furar a orelha do bebê?

A diretora-executiva do Instituto Fazendo Histórias, Isabel Sampaio Penteado, 33 anos, conta que os interessados em participar do Famílias Acolhedoras passam por um processo de seleção razoavelmente rigoroso, feito por uma psicóloga e uma assistente social. Isso inclui entrevistas e reuniões quinzenais com o grupo de acolhedores. "Muitas vezes as pessoas têm as melhores intenções e de fato gostariam de acolher um bebê, mas são consideradas emocionalmente frágeis. Não possuem a mesma capacidade de se vincular de se despedir", diz Isabel.

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Segundo ela, "um dos principais pontos investigados é a consciência da família de que o serviço faz parte de uma política pública, e não de ganho pessoal". "Deixamos claro que se trata de um projeto social, não de família." Ao mesmo tempo, os candidatos ao acolhimento devem entender que um bebê recém-nascido necessita de alguém disponível 24 horas por dia. Sim, diz Isabel, é possível ter a ajuda de uma babá, "embora a referência da família seja importante". Não, o candidato não pode ser vegetariano, já que a criança nessa idade precisa comer carne. A orientação sexual dos acolhedores não é um impeditivo, mas ainda não se registraram no instituto experiências com gays ou lésbicas. Furar a orelha do bebê: não. Parte-se do princípio que isso será uma decisão dos pais, ou dele mesmo, no futuro.

Sem ajuda 

Existem cerca de 40 mil acolhedores em todo o Brasil, e embora haja muitas instituições em diversas cidades do país que promovem a aproximação entre famílias e bebês, o Fazendo Historia é o único em São Paulo capital (o Abba, de "resgate de crianças em situação de risco", tem outra proposta, religiosa).

O instituto é uma ONG não-conveniada com a Prefeitura, mas inscrita no Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente. Isabel se queixa de falta de ajuda. "A gente presta um serviço público, mas não recebe um tostão do município", diz. A secretaria municipal de Assistência e Desenvolvimento Social informou que "o edital para o serviço Família Acolhedora está em processo de elaboração". De acordo com a secretaria, o edital é estabelecido pelo novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil, e é aberto para quem possa se interessar.

Prioridade, família

Atualmente, o programa trabalha com 135 abrigos, cujas crianças são designadas para o processo de acolhimento familiar por determinação da juíza titular da Vara Central da Infância e Juventude, Cristina Balbone Costa. A juíza diz que a lei dá preferência ao acolhimento familiar, depois ao institucional. "A gente sabe que essas famílias vão ter mais condições de acompanhar o bebê e de prestar um atendimento individualizado."

Cristina afirma que, se hoje o número de recém-nascidos que desenvolvem HIV ou sífilis caiu muito, graças à maior eficiência dos tratamentos, ainda há os que nascem prematuros ou que têm  algum problema de saúde. Uma dessas crianças foi vítima do incêndio que atingiu em maio o edifício Wilton Paes de Almeida, no Largo do Paissandu, centro de São Paulo, e sofreu queimaduras graves. "Esse bebê dormia 15 minutos por dia, e chorava o tempo todo. Precisou de acompanhamento constante, e muita paciência. Ficou sete meses com a família acolhedora, e essa atenção foi fundamental para que ele conseguisse superar sequelas e se desenvolver normalmente. Talvez em um abrigo não tivesse a mesma possibilidade", acredita a psicóloga Eliana Kawata, chefe da seção de psicologia da Vara Central.

Outra história prestes a ter um final feliz é a do bebê de 11 meses que foi encaminhado por um delegado ao Conselho Tutelar, e depois a um abrigo. Há um mês, está sendo acolhido por uma família. É filho biológico de um casal muito jovem, que, segundo a mãe do rapaz, Sandra Cristófaro, faz suas "estripulias". Agora, se tudo der certo, a criança vai morar com Sandra, que tem 51 anos e chegou a se desfazer de um bar porque as autoridades acharam que não combinava com alguém que pretendia se responsabilizar por um bebê. Agora, ela trabalha em casa, com artesanato. "Desde que meu neto foi para o Conselho Tutelar, eu corro atrás das autoridades para trazê-lo de volta pra casa. Ele não era bem tratado no abrigo em que estava, e aquilo me doía o coração", diz Sandra, que participará de uma audiência no dia 6 de dezembro, na qual se decidirá o destino do menino. Isabel deu as melhores referências da avó à juíza. "A Sandra é uma pessoa muito agregadora, atenciosa, tem todas as condições para receber o bebê", diz.

O assunto é o bebê

Das 16 famílias que participam do programa, dez já acolheram mais de uma vez, seis estão no primeiro acolhimento. Elas estão conectadas em um grupo do aplicativo whatsapp, no qual trocam experiências. Estreante, a publicitária Shirley Haint Man, 50 anos, acolhe um bebê de três anos. Separada, três filhos de 21, 18 e 12 anos, Shirley afirma que a presença de uma criança no ambiente familiar mudou muito, e para melhor, o relacionamento entre ela e os filhos. O garoto de 12 anos, que costumava testá-la a cada briga, dizendo que ia morar com o pai, agora está encantado com o bebê: "Ele me ajuda, cuida dela, vai ver se está tudo bem. O assunto passou a ser o bebê", diz Shirley.

A filha mais velha da publicitária, que está passando um ano nos Estados Unidos, não se conforma com o fato de a mãe não ter esperado por ela para acolher o bebê. "Ela fala com a menina todos os dias pelo telefone", diz Shirley. A comemoração do aniversário do bebê, na semana passada, contou com a presença do ex-marido e da ex-sogra de Shirley, com quem ela mantém um bom relacionamento. "Está todo mundo muito seduzido por ela", afirma.

Shirley, com os filhos e a hóspede que transformou o dia a dia da família (Foto: Arquivo Pessoal)

Outras questões

Várias outras perguntas surgem a respeito do acolhimento de uma criança por um período limitado. As mais frequentes são: a) Como é possível cuidar de um bebê por um tempo, sem se apegar a ele pra sempre? b) E se a família resolve, no meio do caminho, que quer ficar com a criança? c) Não é "egoísmo" oferecer carinho para um recém-nascido por alguns meses, depois devolvê-lo para um ambiente nem sempre tão acolhedor? d) Como deixar claro para a própria criança que aquilo não vai durar mais do que 1 ano e meio? e) Como se dá o "desmame"?

As respostas de Isabel: a) O leigo costuma imaginar que se trata de uma "adoção temporária", mas não tem nada a ver com isso. Ninguém vai ser mãe, pai ou irmão. Desde o início, o bebê deve tratar todos da família pelos nomes; é como se ele estivesse passando férias com amigos; b) Para isso, os acolhedores passam por entrevistas e reuniões. Se houver a menor dificuldade de entender com exatidão o propósito do programa, o candidato não participa; c) Essa é outra crença infundada; a maior parte das crianças querem voltar para a família biológica; d) As famílias são orientadas a deixar claro para o bebê, o tempo todo e de forma positiva, que ele não ficará ali para sempre. d) A despedida já faz parte do pacote, o que faz com que a dor e a saudade sejam melhor absorvidas.

Não significa que tenha sido fácil para Camila, a acolhedora do primeiro parágrafo, dizer adeus aos três bebês que recebeu em casa: "Chorei de me acabar", diz ela, sem desespero.

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.