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Paulo Sampaio

Em 4 anos, perdi uma filha em uma enchente e outra na burocracia da adoção

Paulo Sampaio

11/01/2019 05h00

Até o dia 23 de fevereiro de 2013, um sábado, a professora de matemática Leda Câmera nutria uma espécie de paixão reverencial pelo rio que passava atrás de sua casa. Leda pediu exoneração do ensino público em São Paulo e mudou-se para Boiçucanga, no litoral norte, justamente para ir atrás da água — do mar, das cachoeiras — e da natureza. Na ocasião, sua única filha estava com oito anos e cursava o quarto ano. Além da escola, Tainá fazia aula de surf, balé, inglês e estava a poucos minutos da praia. Para ela, era o paraíso: "Ela adorava bicho de todo jeito, inseto, passarinho, galinha, era do tipo que aparecia com um sapo na mão para mostrar pra gente. Nós tínhamos três cachorros e três gatos", lembra Leda, hoje com 48 anos. O pai de Tainá, Valtinho Câmera, que é músico, vivia entre São Paulo e a praia.

No dia 22, começou a chover. Primeiro forte, depois muito forte. Tromba d'água, aguaceiro. Queda de energia. Sem pânico, mas preocupada, Leda tentou sair com a filha da casa, mas não era mais possível passar com o carro por causa do volume de água acumulado no terreno. Sem sinal no celular, ela não conseguiu chamar a Defesa Civil nem o Corpo de Bombeiros. Refugiou-se com a menina no mezanino. "Pegamos as galochas e os bichos e subimos, para esperar a água baixar." Já lá em cima, ela se deu conta de que levara comida para os animais, mas não água potável para elas. Desceu para buscar na cozinha. Ao pisar no degrau mais baixo, foi abalroada por uma língua de água que, embora ela não soubesse ainda, derrubaria por completo a casa de 200 metros quadrados. Sobrou apenas o alicerce.

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A varanda e o rio Boiçucanga; a escada para o mezanino; e Tainá brincando no caminho que levava à casa (Fotos: Arquivo Pessoal)

Toque de assovio

"Eu não vi de onde veio aquela enxurrada, só me lembro de ter engolido muita água e de não sentir o chão", conta. Eram por volta de 21h. A noção do tempo passado no breu, agarrada a um palmital, não é clara para ela. Como não enxergava o estrago causado na casa, ela imaginou que a filha estivesse segura, no mezanino. "Eu tinha um toque de assovio com a Tainá, quando queria chamá-la na praia ou no mercado. Eu não parava de assoviar, mas agora ela não respondia…" Em determinado momento, quando a chuva já caía menos forte, mas o nível da água no rio e a correnteza ainda eram preocupantes, apareceu Magrão, um vizinho: "Quando me viu, ele veio em meu socorro; eu disse para não vir, que o rio o levaria."

O vizinho a resgatou, levou-a para casa dele e chamou a Defesa Civil para transportá-la para o único hospital da região. "Eu estava toda ensanguentada,  no  rosto, braço, pernas, mão. Mesmo assim, não entendi porque tinha tanta gente reunida na casa do Magrão, toda a vizinhança me cercando de atenção, dizendo palavras de apoio." Leda lembra que, como a ambulância não estava equipada com maca, ela foi transportada para o hospital na cama da mãe de Magrão, com estrado e tudo. A partir dali, ela sofreu um lapso de memória que a fez esquecer tudo o que se passou nas 24 horas seguintes. "Não sei se foi o estresse, ou a medicação que me deram. Eles me doparam, eu fiquei meio boba, completamente zen."

Algo fora do lugar

Quando Leda perguntava por Tainá, as respostas eram evasivas. Ela achou estranho que a menina não estivesse no hospital.  "Eles diziam que ela tinha ido para a casa de um vizinho." No própria madrugada, Valtinho desceu para a praia depois de se apresentar em um show em São Paulo. Normalmente, ele não desceria. "Quando o Valtinho apareceu chorando, eu vi que alguma coisa estava muito fora do lugar, muito errada. Mas a ficha não caía, eu estava muito dopada."

Adultos e crianças de toda a região se mobilizaram na busca da menina. No terreno de 4.500 metros quadrados onde ficava a casa, a invasão da água e o desabamento da estrutura ocasionaram a mudança do curso do rio. Repórteres dos principais jornais de São Paulo apuravam os danos causados pela tragédia. No sábado pela manhã, a Defesa Civil confirmou a informação de que o corpo sem vida de Tainá fora encontrado a cerca de dois quilômetros da casa, no leito do rio. Ela tinha 11 anos. A notícia — que foi manchete da Folha e do Estadão no dia seguinte — deixou a comunidade em choque. Tainá foi a única vítima fatal. Quem comunicou a morte da filha a Leda foi o marido. "Eu não chorei nem ali, nem no velório, nem no enterro. Em alguns momentos, eu até ri", lembra ela.

Tainá com Leda, no bar Batatinha, no sertão de Boiçucanga; com Valtinho, em uma festa na casa de amigos (Foto: Arquivo Pessoal)

Pedro, um amigo do casal, a ajudou a sair do carro, quando ela chegou no velório. Ele perguntou: "Cadê sua bolsa?", e ela: "Que bolsa?" "Eu não tinha mais chinelo, calcinha, foi tudo na água. Tinha roupa minha pendurada numa árvore a três metros do chão. A maior parte dos documentos, fotografias, anotações foram na enxurrada." A população de Boiçucanga compareceu em peso ao enterro de Tainá,  no dia seguinte. Mobilizada por ataduras nos braços e pernas, curativos pelo corpo todo, pontos no rosto, Leda era a imagem da devastação. O sol a pino e o calor causticante intensificavam a sensação de sufoco.

Tobogã emocional

Terminada a liturgia de despedida, Leda viveu os primeiros vinte dias de luto na casa emprestada de um amigo. "Aí, sim, eu desabei. Chorei mesmo. Muito. O pior é que as pessoas iam me visitar, e de repente eu tinha de sair da sala, dava uma desculpa qualquer, para chorar sozinha." Ela conta que seu estado emocional oscilava, como se estivesse em um tobogã. "Eu tomava antibiótico, antiinflamatório, antidepressivo, remédio para dormir, para acordar, meu estado emocional era muito instável."

Durante um bom tempo, ela ficou "de mal" com o rio. "Não queria passar perto. Eu o considerava culpado, como se fosse um personagem", lembra. Chegou a fazer sessões de "readaptação ao meio líquido", em uma piscina, com uma educadora física. Um dia, depois de um bom tempo de terapia, ela finalmente se resignou: "Não tinha jeito. Até o dia em que eu morrer vai chover, vai ter rio, vai ter mar, vai ter água. Não adianta alimentar esse ressentimento."

Na praia, em 2017 (Foto: Arquivo Pessoal)

A segunda perda

No final de 2015, depois de considerar o luto cumprido, Leda começou a pensar em  adotar uma criança. "Eu precisava ter certeza de que não era uma substituição. Não se tratava de colocar uma filha no lugar da outra." Antes da morte de Tainá, Leda havia perdido a mãe em 2006, para uma doença degenerativa aparentada da esclerose múltipla; e o pai, três anos depois, de câncer. "Cuidei deles até o fim, depois perdi a Tainá. Ficou um vazio", diz.

Como queria fazer tudo nos conformes, ela primeiro preencheu o cadastro de adoção nacional, e entrou na fila. Acontece que Boiçucanga inteira conhecia sua história, e frequentemente a chamavam para participar dos mais diferentes cultos religiosos. Em um deles, no centro espírita, uma senhora apareceu com a informação de que havia uma moça de 20 anos, grávida do terceiro filho, disposta a dar o bebê assim que nascesse.

Sem garantia

Era dezembro, a criança nasceria em um mês; a mãe, Naiane, queria conhecer a pessoa que adotaria sua filha. Aprovada por ela, Leda se empolgou, mas com reservas. "A adoção não era oficial, no papel, eu não tinha 100% de certeza de que ficaria com a menina. Até a última hora, a Naiane poderia desistir." Quando a criança nasceu, e a mãe quis amamentar, Leda achou que ela não entregaria mais a menina. "Eu pensei: 'Agora, a chave na cabeça dela vai virar'. " Mas Naiane estava muito determinada. A menina foi chamada de Manu.

(Uma coincidência numerológica a aproximava Tainá: a primeira nasceu em 17.03.01; a outra, em 03.01.17. O que não era necessariamente um bom auguro…)

Apoio da mãe biológica

A própria Leda precisou de muita determinação para enfrentar os entraves crescentes na Justiça. Apesar do empenho, a advogada de São Sebastião que assumiu o caso não era da área. Sentindo que podia perder a menina, Leda procurou o presidente da Comissão da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) de Pinheiros, Hélio Ferraz de Oliveira.

Ele explica que, "no caso de Leda, ocorreu o chamado 'intuito personae', quando o parente biológico do adotando expressa sua vontade em relação à pessoa do adotado, o que não é ilegal". "Muito ao contrário, é parte da realidade brasileira e passou a ser regulada com atenção após a lei número 12.010/09. Mas a recomendação 12/2013, do CNJ (Conselho Nacional de Justiça), estabeleceu que só valeria para crianças acima de três anos."

Leite Nan

Leda entrou na Justiça com um pedido de guarda provisória (também chamada, sintomaticamente, de precária), enquanto se julgava o processo. "A primeira promotora entendeu que não havia problema em entregar a criança para a adoção", conta Oliveira. O juiz determinou um período de três meses para a guarda, entre junho e agosto. Porém, a promotora entrou em licença, e a substituta voltou atrás na apreciação inicial. "Essa segunda era mais legalista, menos humana", explica o advogado. O juiz acolheu o parecer dela e, antes do fim do período da guarda provisória, Leda teve de entregar Manuela no abrigo.

Ela lembra: "Duas mulheres do fórum, que eles chamam de 'técnicas', uma psicóloga e uma assistente social, me avaliaram muito mal. Só elas. O juiz nunca me viu, nem as promotoras." Ela acha estranho porque, além do amor que já tinha pela filha, possuía recursos suficientes para criá-la (seus pais deixaram uma herança razoável): "Levei a Manu para o abrigo em um carrinho de luxo, bem alimentada com leite Nan e vestidinha como uma princesa."

Critérios pessoais

O advogado explica que Manu foi acolhida por outra família, que estava na fila da adoção. Uma pergunta de leigo, que não quer calar: "Mas com tanta criança órfã no abrigo, não dava para esperar a conclusão do processo?" Oliveira explica que, "como não existe uma normatização clara, então cada juiz, cada promotor decide segundo critérios pessoais."

O fato é que Leda ainda visitou a filha duas vezes, mas então foi proibida de vê-la. Pra sempre. "Apesar da insegurança durante os seis meses em que eu a acolhi, sempre achei que acabaria ficando com ela. O que me deixa angustiada é não saber se foi recebida com amor. Se foi, fico mais tranquila. Fiz a minha parte."

Burocracia injusta

Para Leda, a incerteza do destino da menina deixa sempre a esperança de revê-la. "Eu sei que não existe possibilidade, mas, ao contrário da Tainá, que a natureza levou de mim e eu não posso brigar com isso, a Manu me foi  por 'confiscada' por uma burocracia aleatória, injusta."

Leda voltou a morar no Parque São Miguel, extremo da zona leste de São Paulo, na casa de muro baixo, quintal grande, poço com cobertura, onde as portas e janelas são mantidas permanentemente abertas. A casa é a mesma onde ela cresceu e morou até a morte dos pais.  Não há tristeza nem ressentimento na voz dela, o clima é de paz. O terreno onde ficava a casa na praia continua sendo dela. Reconciliados com o rio, ela e Valtinho passaram a virada do ano lagartixando ao sol, nas pedras às margens do Boiçucanga.

 

 

 

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.