Topo

Paulo Sampaio

Atriz de pornochanchada: na ditadura, filme podia mostrar nu, mas não fome

Paulo Sampaio

21/05/2019 04h01

Ex- símbolo sexual, Zilda Mayo posa aos 66 anos para um "nu artístico" (Foto: Fernando Moraes/UOL)

A atriz Zilda Mayo já havia participado de quase 40 pornochanchadas, sempre com pouca roupa ou sem nada, quando descobriu que os censores na ditadura militar (1964-1985) não eram tão rigorosos com as cenas de nudez e sexo quanto com àquelas em que os personagens apareciam passando fome. A repressão divulgava que o Brasil vivia uma era desenvolvimentista, o famigerado "milagre econômico". Supostamente, não havia miséria.

Leia também: Xuxa, Cristina Mortágua, Viviane Araújo: elas começaram como panteras
A vida toda enfrentei abuso sexual, diz musa da pornochanchada Nicole Puzzi
"Propus que ele transasse com os olhos vendados", diz deficiente física
Um dedo trabalha muito melhor que um pênis, diz terapeuta sexual

Zilda descobriu o poder da censura quando filmou 'O Cafetão' (1983), em que fazia a mulher de um engraxate. De acordo com o roteiro, o personagem dela quebra, sem querer, o único ovo que o casal dispunha para o jantar. O marido então diz: "E agora? A gente vai ficar sem comer." O diretor teve de cortar a cena. 

(O filme conta a história de duas gangues de traficantes que entram em guerra pelo controle de uma boca de fumo. Por um acaso do destino, o dinheiro de um deles vai parar nas mãos do engraxate, que gasta tudo promovendo orgias intermináveis — com Zilda nua no centro de todas).

Essa é uma das histórias que ela conta em  "Zilda Mayo para os Íntimos", biografia escrita pelo jornalista Luis Zakaib, de Araraquara, sua cidade natal. A noite de autógrafos está marcada para a próxima segunda-feira, no Teatro Paiol, em São Paulo.

Poster do filme 'O Cafetão', que teve uma cena censurada pela ditadura não por causa de nudez ou sexo, mas porque o personagem dava a entender que passava fome; supostamente, isso não seria possível em pleno "milagre econômico" (Foto: Arquivo Pessoal) 

 

Adeus, bilheteria

Sete anos mais tarde, já depois da abertura democrática, o governo surpreenderia Zilda de novo. Depois de uma "interminável viagem de carro até Governador Valadares", leste de Minas, onde se apresentaria no espetáculo "Nua na Platéia", de Roberto Ciambroni, ela e todo o elenco foram agraciados com o teatro lotado nas duas noites, 500 pessoas por sessão, e uma polpuda bilheteria. Na ocasião, o país vivia um momento econômico bizarro, em que a inflação podia chegar a mais de 30% em um mês, e assim os atores resolveram investir o dinheiro da bilheteria, no mesmo dia, no overnight — uma aplicação que rendia durante a noite.

Isso foi em 15 de março de 1990, um dia antes de o presidente Fernando Collor de Mello instituir o plano que congelou 80% de todos os depósitos feitos no overnight, nas contas correntes ou nas cadernetas de poupança que excedessem a NCz$ 50mil cruzados novos. "O Collor roubou nossa bilheteria, embolsou o esforço que a gente fez naquela viagem sem fim e não devolveu mais", lembra ela, sem raiva.

Em "Nua na Plateia", como Raimundo de Souza: toda a bilheteria roubada por Fernando Collor de Mello (Foto: Arquivo Pessoal)

Um presente animal

O espetáculo misturava humor, erotismo e, claro, Zilda muito à vontade o tempo todo. Ficou em cartaz durante doze anos. Miguel Bretas, um dos atores que contracenou com ela, diz: "A Zilda é empreendedora, tem uma garra muito grande. Em todas as cidades em que a gente chegava, ela estava sempre disposta a divulgar o espetáculo, era a primeira a acordar, se maquiava, passava o dia dando entrevistas pra jornais, TV, rádios, no maior bom humor."

No auge dos sucesso, um fazendeiro de uma cidade do centro-oeste fez uma surpresa para ela. Zilda conta: "Ele levou um cavalo até a porta do hotel, disse que era um presente. Eu agradeci muito, expliquei que não tinha como transportar o cavalo no avião, nem como mantê-lo no meu apartamento em São Paulo."

Leia tambémJá me ofereceram uma mala de dinheiro por uma transa, diz ex símbolo sexual

Àquela altura, Zilda Mayo já não estrelava mais pornochanchadas. Ela até teria seguido carreira, mas aquele gênero de cinema entrou em declínio. O público agora não se contentava mais com cenas de sexo simulado, queria "explícito". Ela diz com um certo pudor que nunca participou de algo parecido, e se recusa a fazer qualquer analogia entre esses filmes e a pornochanchada feita na chamada Boca do Lixo. Por mais descabidos, digamos, que os roteiros produzidos na Boca fossem, havia no mínimo a tentativa de contar uma história.

"Eu me orgulho muito de ter participado da pornochanchada. Eu amava fazer. A gente ia de Kombi, enfrentava todas as dificuldades, não tinha dublê. Cheguei a dar cavalo de pau na areia, pilotando eu mesma uma Honda 750. Entrava em rios escuros à noite, nua, morria de medo de ter bicho ali; tudo era feito na raça", lembra. "Às vezes, ficava maquiada mais de doze horas, no meio do mato, esperando a luz ideal para filmar."

Zilda garante que a cena acima não foi só pose pra o cartaz do filme "Excitação"; diz que, como não tinha dublê, teve de pilotar ela mesma a moto, em uma cena que incluía um cavalo de pau na areia (Foto: Arquivo Pessoal)

Poderosa Zilda

Das lembranças da época, sobraram duas mágoas que perduram. A primeira foi ter recebido "cachês miseráveis": "Os filmes arrastavam multidões para o cinema, e a gente ganhava o equivalente a R$ 2 ou R$ 3 mil por cada um. Eu não tinha noção de quanto valia o meu trabalho. 'A Ilha dos Prazeres', do Carlos Reichenbach, deu mais bilheteria no Brasil do que 'O Poderoso Chefão' (Francis Ford Coppola). O dinheiro ficava todo na mão dos produtores."

Na ocasião, o corpo de Zilda Mayo era tão festejado pelo público masculino, prestavam-se tantas homenagens às curvas dela, que a apelidaram de Zilda Desmayo.  "A gente tinha de namorar escondido. As atrizes de pornochanchada não eram como as de TV de hoje, que trocam sem parar de namorado, e o fã acompanha e adora. O símbolo sexual tinha de se manter disponível para a fantasia do público."

Marido já casado

Às escondidas, ela namorou durante três anos o diretor Jean Garrett, um dos mais famosos da pornochanchada. Tudo acabou quando ela descobriu que ele já era casado. "Um dia, entrei no elevador do prédio onde eu morava, e uma mulher me perguntou se eu era a Zilda Mayo. Eu respondi que sim, ela me cumprimentou pelo meu trabalho e se apresentou. Disse que era esposa do Jean Garrett. Eu gelei. Não tinha ideia de que ele era casado! Terminei tudo em seguida. Nunca tive disposição para ser 'a outra'."

Muito mais tarde, já fazendo teatro, ela se casou com um fã que era vereador. Ele mandou uma carta para ela no camarim, ela guardou em seu criado-mudo e esqueceu. Tempos depois, estava tomando sol no terraço de casa e quis fumar. Quando abriu a gaveta do móvel para pegar o cigarro, a carta caiu. "Eu achei que era um sinal para eu ligar para ele." Em seis meses os dois se casaram. Ficaram juntos por dez anos, até que ela decidiu se separar por causa dos ciúmes do marido. "Ele não estava preparado para conviver com uma atriz. No teatro, por exemplo, eu ficava trocava de roupa na frente dos técnicos, sem pensar em maldade. Pensava no meu trabalho, em fazer da melhor maneira possível."

Preconceito na TV

A segunda mágoa relacionada a seu trabalho na pornochanchada foi ter sido "desconvidada" três vezes para fazer novela, "por diretores de uma grande emissora". Eles tinham preconceito com o cinema que eu fazia. "O diretor chegava a me chamar, e eram papeis bons, mas eu tenho a impressão que alguém lá dentro me barrava. Ele sempre voltava para me dizer que, se não fosse pela imagem associada à pornochanchada, eu entraria na história."

Talvez, se tivesse um agente ou um assessor que a orientasse a posar na capa dos veículos certos, Zilda estivesse trabalhando na "grande emissora".  "Houve um tempo em que eu saía todos os dias no 'Notícias Populares' (jornal que apelava para manchetes com sexo e violência, e vendia que nem pão quente). Vestida, sem roupa, de biquíni, de todo jeito"', diz ela alegremente, atribuindo àquela exposição "um glamour que não existe mais".

Com Ruy Leal, recebendo instruções do diretor, Jean Garrett, em "Fugitivas Insaciáveis"(Foto: Arquivo Pessoal)

Um louco em minha cama

A estréia no teatro foi em meados dos anos 1980, quando as atrizes da pornochanchada foram viver histórias parecidas no palco. Uma das figuras mais importante na transição delas foi justamente Roberto Ciambroni, que era autor, diretor e ator. Ele conta: "Escrevi 'As Moças do Segundo Andar' para a Helena Ramos, a Aldine Muller e a Zaíra Bueno, e o espetáculo fez tanto sucesso que a Zilda me procurou querendo que eu escrevesse um para ela também."

O nome da peça era "CVV, Boa Noite". Contava a história de uma mulher que queria se matar, procurava o Centro de Valorização da Vida e acabava entrando em contato com um psicopata que conseguia interceptar as ligações do serviço para atrair suas vítimas. De novo, Zilda sofreu censura, mas agora de outra natureza. Ciambroni lembra: "A gente anunciou o espetáculo em um outdoor na rua, com a Zilda e o Irving São Paulo, que fazia o psicopata, nus; foi fixado ao lado do reclame do próprio CVV. Isso causou um problema enorme para eles, que tinham princípios inclusive religiosos. Fomos processados e tivemos que mudar o nome da peça, que passou a ser 'Um Louco em Minha Cama'."

No auge do sucesso, quando o público masculino prestava muitas homenagens a seu corpo perfeito, ela era chamada de Zilda "Desmayo" (Foto: Fernando Moraes/UOL)

Festa esquisita

Outra história que Zilda gosta de contar é a do "Baile dos Pelados", uma festa de Réveillon no Rio, no fim dos anos 1980. A ex-atriz de pornochanchada, quem diria,  ficou horrorizada: "Fui com um namorado carioca rico, lindo, sobrenome Martinelli, que eu conheci em um baile de Carnaval no Iate Clube do Rio. Ele me disse que era uma festa chiquérrima, em uma mansão no Alto da Boa Vista, então coloquei um vestido maravilhoso, me arrumei toda, ele de smoking, e fomos."

Assim que o casal chegou, Zilda achou o ambiente "estranho": "Primeiro, apareceram umas mulheres nuas, com uns chifrinhos que balançavam e piscavam ao mesmo tempo. Em seguida, o dono da festa veio nos cumprimentar, também pelado. Disse: 'Meus parabéns, sua noiva é linda'. O cara era baixinho, barrigudo, com um pinto mole, sempre que eu me lembro disso, dou muita risada."

Com licença?

Foi quando deu nela vontade de fazer xixi. Na ida para o banheiro, pediu licença a um casal que estava transando no caminho; na volta, esbarrou em outro. O tal Martinelli jurou a ela que não tinha ideia do teor da festa. Ela disse a ele: "Você tem um minuto para me tirar daqui. E vai me levar ao melhor lugar da cidade, para compensar essa festa!"

O pior, diz ela, "foi ver todo mundo pelado, se servindo no bufê: olha que falta de higiene!": "Eu estava constrangida, em choque, nunca tinha visto uma suruba na vida!" Ela explica: "O meu trabalho era ficção. Aquilo era realidade!"

Vai saber, Zilda. Ficção, fantasia, pinto mole, no fundo é tudo pornochanchada.

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.