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Paulo Sampaio

Duas mulheres narram Brasil e Jamaica para uma torcida de 400 pessoas em SP

Paulo Sampaio

10/06/2019 04h00

Os técnicos de áudio do Sesc Pompeia, em SP, baixaram completamente o volume do som durante a transmissão do jogo Brasil x Jamaica, ontem, pela TV aberta, para que a locutora Natalia Lara, 25 anos, e a comentarista Mayra Oliveira, 32, pudessem narrar o jogo de estreia do Brasil na Copa do Mundo. A equipe brasileira venceu por 3 a 0. Os jogos vão até 7 de julho.

Um telão instalado na área de convivência do lugar atraiu 400 pessoas para assistir a partida — um número bem acima do esperado pela produção do evento.  "Foi uma surpresa. Em cada um dos jogos (de equipes estrangeiras) de ontem (sábado), vieram no máximo 70 pessoas", diz o monitor de esportes do Sesc, Bruno Ciccotelli.

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Cerca de 400 pessoas foram ao Sesc para assistir à estreia do Brasil na Copa do Mundo feminina (Foto: Gabii Burdmann)

Belíssimo cabeceio

Sem nenhuma concessão a amadorismos, tanto a locutora quanto a comentarista mostraram completo domínio na narração.  A princípio, quando a bola começou a rolar, Natália foi com cautela. Falou das nove derrotas seguidas do Brasil na fase preparatória, fez críticas ao técnico Vadão e disse que a seleção mostrava "desorganização". "Uma das falhas do time é jogar no 4, 2, 4, o que obriga a voltar para fazer a defesa…".

Mas à medida em que a seleção se impôs no campo, ela mudou o tom —  sem jamais perder a tranquilidade. "…com 12 minutos de partida, fazendo 13, o Brasil está dominando até agora…"; "… a Mônica não é uma zagueira muito alta, mas chega bem…e é uma boa cantora (risos)." Quando a bola estava na área da Jamaica, ela puxava o ar, para o caso de ter de exibir sua extensão vocal. Em três ocasiões, ela mostrou fôlego: "Gooooooooooooooooool": "Belíssimo cabeceio da Cristiane…", completou, em uma delas.

Enquanto o árbitro determinava tiro de meta, ou quando a bola saía para escanteio, Natalia mantinha a atenção dos torcedores, com informações variadas. Por exemplo, lembrou que pela primeira vez a equipe campeã na Copa do Mundo feminina será agraciada com um prêmio em dinheiro. "A vencedora ganha 30 milhões de dólares. Parece muito, mas não é nada se a gente comparar com os 400 milhões da equipe masculina", diz.

Mayra e Natalia, narrando o primeiro tempo do jogo (Foto: Gabi Burdmann/UOL)

Apoio em casa

Presentes na torcida, os pais de Natália dizem tê-la apoiado desde sempre na profissão. O securitário Fernando Cabos, 54, conta que a vocação da filha surgiu quando ela cursava rádio e TV.  "Uma das professoras disse que ela daria uma boa locutora. Nós a ajudamos a fazer o curso, e ela não parou mais."

Cabos lembra que desde pequena a filha se interessa por futebol. Ele percebia o preconceito das outras crianças, mas nunca deixou de incentivá-la. "Eu sentia que  os meninos do prédio, quando me viam jogando com ela, comentavam. Deviam dizer que ela parecia um menininho, mas isso nunca foi um problema."

A artesã Eliana Cabos, 54, mãe da locutora, diz que não entende nada de futebol, mas torce pela filha: "Ela é muito guerreira, eu babo quando a vejo narrando um jogo." Eliana conta com tristeza que há um ano teve o pior Dia das Mães de sua vida, quando Natália foi desclassificada em uma seleção de narradores feita pela emissora de TV Fox. "Eram 300 meninas, escolheram 6, depois, 3; e ela ficou fora. A gente aguardava outro resultado. A família passou o domingo chorando", lembra.

Natalia com os pais, Elaine e Fernando, depois do jogo (Foto: Gabi Burdmann)

Grande Formiga

Nos comentários, Mayra Oliveira falou sobre o futebol feminino e as jogadoras do Brasil. Ex-jornalista esportiva de TV e Internet, ela abordou aspectos técnicos e mostrou carisma com a torcida. "Uma seleção mais estruturada como a da Austrália preocupa bastante…", disse, a respeito da próxima adversária da seleção: "Gente, olha a Formiga. 42 anos. Sétima Copa do Mundo, mais do que qualquer jogador da seleção masculina. Maravilhosa!" E se dirigiu ao público, citando ditos famosos de feministas como o da escritora francesa Simone de Beauvoir: "Não se nasce mulher, torna-se mulher." O público reagia com animação. Êêêêêê!

Mayra estava acompanhada da mulher, a advogada Luciana Simmonds, 32, que  joga futebol amador, na zaga, mas deu uma parada por conta de uma lesão. Luciana  estava muito empolgada com o 3 x 0 para o Brasil, mas fez questão de frisar que, para ela, "a vitória foi de todas as mulheres". "A torcida estava unida, tranquila, e solidária com os dois times. Você viu alguém falar mal, ou xingar as jogadoras da Jamaica? Todo mundo torceu pelo evento, pela conquista. Há quatro anos, quem imaginaria montar uma estrutura dessas para assistir a um jogo feminino?".

Luciana lembra que, na época em que começou a jogar bola, o número de conhecidas dispostas a integrar um time não passava de três. "A gente jogava com os meninos e, quando ia bater a lateral, eles faziam brincadeirinhas do tipo: 'Bate pra mim'. Se a gente abaixava para ajeitar a bola, logo vinha: 'Abaixa mais…' Ao mesmo tempo, nos chamavam de mulher-macho e falavam que, daquele jeito, a gente não ia arrumar namorado. Eu dizia: 'Graças a Deus!'."

Casal: Mayra Oliveira e Luciana Simmonds, depois do jogo (Foto: Gabi Burdmann/UOL)

Troca de figurinhas

As mulheres eram ligeira maioria na audiência. Sozinhas, com namorados ou namoradas. A reportagem registrou vários casais de lésbicas, mas nenhum de gays. Havia crianças com os pais, pequenos grupos de senhores da terceira idade e, no fim, alguns jogadores de futsal que treinavam em uma quadra no local.

Entre os torcedores, aconteceu uma intensa troca de figurinhas do álbum da Copa. O DJ Rafael Takano, 33, apareceu com várias. Ele disse que esperava mais da produção do evento: "Achei que a estrutura seria melhor. Eles deveriam ter liberado a choperia (do Sesc). Já assisti a vários jogos lá, é mais confortável". Os organizadores dizem que não imaginavam que o movimento seria tão grande, e que a choperia estava ocupada por causa de outro evento.

O DJ Rafael Takano mostra as figurinhas do álbum da seleção (Foto: Gabi Burdmann/UOL)

No meio do povo

O blog deu um giro pela audiência, para colher opiniões sobre o evento. Acompanhado da mulher e da filha, o físico Parmedes Cuberos, 49 anos, disse que considerou a torcida feminina mais "livre de ranços": "O futebol masculino se tornou comercial, perdeu essa aura de afetividade que você vê aqui."

Para o balconista Pedro Alencar, 31, a principal diferença do futebol feminino está na (falta de) velocidade. Sem deixar de louvar a vitória, ele diz: "O ritmo delas é mais lento. Como jogo, é muito parado."

A namorada dele, a auxiliar administrativa Patrícia Fontes, 29, defende as mulheres: "Enquanto o futebol masculino envolve muito dinheiro, marketing, política, escândalo, o das mulheres mal é divulgado. Eu acho que 50% das pessoas não sabem nem que existe! E ainda tem a Copa América junto, para atrapalhar."

Mesmo assim, diz ela, "já é um avanço as pessoas saberem os nomes da Marta, da Cristiane, da Formiga". "A gente não pode esquecer que é a primeira Copa delas transmitida pela TV aberta."

Mulheres de todas as idades torceram pelas brasileiras (Foto: Gabi Burdmann/UOL)

Pega o árbitro!

Ali ao lado, o jogador de futsal Leonardo Cardoso, 19, acredita que "o homem conta com mais força que a mulher, mas elas são melhores em qualidade de jogo".

Já o sindicalista Marco Aurélio de Lima reconhece que nos jogos femininos há menos briga e mais respeito, mas discorda que a força e a velocidade das mulheres sejam menores que a dos homens. E dá provas. "Uma vez eu assisti a uma partida em Pirapitinga, interior de Minas, em que o time feminino do Caraguatatuba não aceitou o resultado, e colocou o árbitro para correr. O time todo atrás dele, o cara fugindo para não apanhar!"

Estrelas da vitória

Fim do jogo. Tratadas como estrelas, Natalia e Mayra tiram fotos com os torcedores, dão autógrafos e se envaidecem com os elogios. Merecidamente. Natalia comenta que a cobrança em cima das mulheres é muito maior: "Se um narrador dá um exemplo de jogada, a narradora tem de dar 10; se ele fala 100, ela tem de falar 1000."

Na quinta-feira tem Brasil e Austrália.

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.