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Paulo Sampaio

Ex-travesti, Antônio deixou de ser Nádia após 18 anos: 'Eu era uma farsa'

Paulo Sampaio

08/09/2019 04h00

Por duas vezes, Nádia Nobre voltou a ser Antônio Teixeira. Na primeira, com pouco mais de 20 anos, Nadia só precisou parar de tomar hormônio feminino. Na segunda, aos 42, depois de 18 anos se prostituindo em São Paulo e na Europa, foi mais complicado. Ela teve de retirar as próteses dos seios e o silicone industrial que havia aplicado nos glúteos e coxas. Hoje, aos 50, Antônio diz que sempre teve horror a ideia de se prostituir, mas precisou se render à necessidade quando desembarcou em São Paulo no começo dos anos 1990, vindo do Ceará, disposto a ser Nádia para sempre…

Em todo esse tempo vendendo o corpo, a travesti faturou o suficiente para comprar três apartamentos em Fortaleza, o que não a impediu de olhar para trás e considerar a vida que estava levando uma "farsa": "Eu não me reconhecia mais naquele personagem", afirma. Decidida a fazer a transição de volta para Antônio, ela tinha consciência de que seria um processo penoso: "Não se tratava apenas de cortar o cabelo e me livrar das roupas. Ia ter de gastar dinheiro com cirurgias, explicar para as pessoas o que estava acontecendo e ainda passar por bicha homofóbica." Ele diz que não pretende ser exemplo pra ninguém, mas argumenta que o corpo e a vida são dele: "Disponho deles como quiser. Sempre foi assim."

 

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Adolescente introspectivo

Definindo-se como "feminino desde criança", Antônio Teixeira nasceu em uma família de classe média alta de Fortaleza, é neto de pecuaristas e sofreu bullying a infância toda —  em casa e na escola. Sua mãe morreu quando ele tinha 11 meses, e o pai, "farrista e boêmio", o entregou aos cuidados dos avós maternos e de duas tias. Foi criado em um ambiente "hiperfeminino". "Eu me tornei um adolescente tímido e introspectivo", lembra.

Desde a sua mais remota lembrança, ele era "uma figura andrógina, sem fazer nenhum esforço". Em uma ocasião, quando um amigo do pai elogiou a beleza de sua "filha", Antônio teve de baixar o short para mostrar que era um menino. "Sempre fui assediado por héteros, e isso começou com um primo de criação, quando eu tinha uns seis anos."

Na primeira comunhão, aos seis anos; e com a avó, em Fortaleza (Fotos: Arquivo Pessoal)

Como parecer homem

Ainda assim, antes de fazer a transição de gênero pela primeira vez, ele tentou tudo para parecer "um rapaz como os outros". "Passei a nadar e, quando me alistei no exército, tive esperança de que a convivência naquele ambiente rústico me tornaria masculino. Ao mesmo tempo, eu namorava meninas." Antônio não conseguiu convencer a si nem a ninguém. "Com as meninas, eu acabava broxando. Com os homens, no exército, transei no alojamento, no refeitório, nas guaritas, em tudo quanto é canto." 

Apesar da tentativa de "parecer homem", ele diz que não tinha dúvidas acerca de sua orientação sexual. Mais tarde, já convivendo com gays e não se sentindo tão solitário, ele passou a frequentar o pedaço da praia de Iracema em que os jovens alternativos da cidade ("músicos, maconheiros, intelectuais") se encontravam, próximo à "ponte metálica". Ali, conheceu "três travestis lindíssimas". "Fiquei amigo da Andrea, que era a cara da Daniela Perez (filha da escritora Gloria Perez, a atriz foi assassinada em 1992 pelo ator Guilherme de Pádua, seu par romântico na novela "De Corpo e Alma", e a namorada dele, Paula Thomaz). Logo pensei: 'É isso que eu quero ser'."

Antônio no exército, em 1988, tentando ser masculino; e Nádia em São Paulo, em 2000, posando de "pantera"(Foto: Arquivo Pessoal)

Hormônio e salto alto

Momentaneamente decidido, ele passou a tomar hormônios femininos. "Na época, em qualquer farmácia da esquina eles injetavam aquilo na gente." Mudou-se para uma edícula que havia ao fundo da casa dos avós, e dissimulava a transformação para eles usando bonés, roupas largas e botinas. "Imagine isso, naquele calor do nordeste. Na rua, eu entrava em algum jardim recuado, soltava o cabelo, colocava o jeans justo e o salto, e saía toda rebolativa."

Mas Nádia, em sua primeira versão, estava sem perspectiva. Chegou a se matricular em um curso de cabeleireiros, que não deu em nada. Suas novas amigas a avisaram que todas as travestis viviam de programa, mas ela "não podia nem pensar na ideia".  "A Andrea me disse que àquela altura eu já deveria ter saído da casa dos meus avós e procurado uma cafetina. A maioria delas vivia assim."

Fortaleza, 1987, pouco antes da primeira transição (Foto: Arquivo Pessoal)

Rapazinho de novo

Não levou muito tempo até que os comerciantes da região, das padarias, bancas de jornais e farmácias, comentassem com o tio mais conservador de Antônio que o sobrinho dele estava "muito mudado". "Era um tio que me perseguia desde a infância. Naquele momento, ele me desmascarou na frente de toda a família. Meus avós, que eram idosos e não tinham percebido direito o que acontecia, perguntaram horrorizados: 'O que você quer da sua vida?"'

Sentindo-se desamparada, "mais sozinha do que nunca", Nadia voltou a ser Antônio pela primeira vez. "Parei com os hormônios, voltei a nadar, entrei na musculação e resolvi que queria ser um rapazinho de novo."

Na ocasião, se empregou como garçom em um bar da moda.  "Passei três anos tentando me convencer de que poderia ser feliz daquele jeito. Mas ao mesmo tempo em que jogava uma pá de cal na ideia de me travestir, ficava me imaginando uma mulher deslumbrante. A Andrea tinha namorados lindos, que andavam de mãos dadas com ela e morriam de ciúmes."

Depois de voltar a ser Antônio pela primeira vez, ele fez tentativas de se "masculinizar" praticando natação e musculação (Foto: Arquivo Pessoal)

Ou tudo, ou nada

Até que um dia, teve "um clique". "Fui à casa da Andrea, a chamei para conversar na ponte e disse: 'Quero virar travesti'. Ela respondeu: 'Quer nada, bicha, se quisesse não tinha desistido da outra vez.' Eu expliquei: 'Só que desta vez não vai ser aqui. Vou embora de Fortaleza."'

Antônio perguntou se Andréa tinha algum contato no Rio, ela respondeu que só em São Paulo. No fim, as duas foram juntas para o sul. "Pedi dinheiro aos meus avós, a meu padrinho, que sempre dizia que tinha uma vaquinha no curral para mim, e todos se despediram dando graças a Deus."

Queda vertiginosa

Antônio desembarcou em São Paulo às 6h. Às 22h do mesmo dia, Nádia já estava maquiada, de peruca, vestido e salto alto, fazendo programa na avenida Indianópolis. "Era tudo, ou nada", lembra. "Para quem vinha de uma família de sobrenome no Ceará, os Benevides, foi uma queda vertiginosa. Eu estava ali, no meio da rua, enfrentando as situações mais adversas. Fui jogada para fora do carro mais de uma vez, nos lugares mais ermos. Em uma delas, depois de fazer sexo oral no cliente, ele apontou uma arma na minha cabeça e me mandou sair." Apesar dos riscos, Antônio diz que não contraiu o vírus da Aids (HIV).

Durante três anos, Nadia viveu situações extremas. Se envolveu com drogas, cocaína, crack, e em determinado momento fez "avião"(tráfico): "O cliente dizia: 'Hoje eu não quero programa, boneca, quero papelote'. Eu arrumava." Antônio conta que logo parou com o consumo, apavorada com "histórias de colegas que estavam dormindo em papelão, debaixo do viaduto". "Morei com travestis de todas as origens, algumas sem moral nenhuma, que mexiam nas coisas da gente, levavam."

Mudança para a Saúde

Então, sobreveio um período de relativa calmaria. Foi quando Nádia se mudou para a Saúde, zona sul de SP, com uma cabeleireira conterrânea que estava na cidade para juntar dinheiro com prostituição e poder, na volta para Fortaleza, abrir um salão. "Nessa ocasião, eu fazia programa de dia, na rua do Jockey  (Lineu de Paula Machado). Passei cinco anos nessa vida, minha realidade mudou consideravelmente. A casa era confortável, eu tinha um namorado, um cachorrinho e estava bem."

Mas ela não se permitiu viver em paz por muito tempo. Aos 32, a inquietude voltou, agora por achar que precisava pensar no futuro, fazer um pé de meia. Levada por um contato que conheceu no bairro, ela embarcou para a Suíça: "Havia lá uma cafetina que acolhia as travestis e arrumava trabalho para elas. Investi 8 mil dólares (cerca de 32 mil reais), levei quase oito meses para pagar. Mas foi um bom investimento."

Oui, je parle

A partir daí, Nádia Nobre passou mais de dez anos indo para a Europa e voltando. Morou também em Paris e, brevemente, em Arlon, na Belgica, a essa altura já com francês fluente. Retornava para Fortaleza sempre que "sentia necessidade de fazer uma pausa no ritmo frenético da vida que levava lá". Em uma dessas vezes, chegou a investir em um pet shop com o meio irmão, filho do pai com a segunda mulher: "Mas o negócio não se pagava, e meu irmão me deu um tombo. Levou tudo."

Em Paris, em 2008, e em Arlon, 2003 (Foto: Arquivo Pessoal)

Infeliz mais uma vez

Por volta de 2010, de novo, Nadia voltou a se questionar a respeito da vida que levava. "Eu nunca achei que a prostituição fosse, como diziam algumas colegas, 'um trabalho como outro qualquer: secretária, professora, enfermeira'. Eu me sentia diminuída. Fiz vista grossa durante quase 20 anos, mas então decidi que não queria mais aquilo para mim."

Não foi simples enfrentar mais uma vez a ambivalência que o torturou desde a juventude. Recuperar Antônio custou a Nadia não só um longo processo de "reconstrução psicológica e física", mas também dinheiro.  "Eu me dizia: 'Tá louca? Pra que isso agora?"'. Mas nem mesmo os 23 mil reais que teve de pagar pelas cirurgias a fizeram mudar de ideia.

Mel e fel, a biografia

Depois da "reversão", entre os novos projetos estava deixar um registro de tudo o que viveu. Para contar sua experiência como Nádia, Antônio escreveu um livro. Com 600 páginas, a obra foi batizada "Autobiografia Mel e Fel". Apesar da história ser no mínimo insólita, nenhuma editora se interessou em bancar a publicação. Mais uma vez sozinho, ele foi em frente: "Fiz eu mesma a revisão, li várias vezes cada uma das 600 páginas e paguei R$ 12.500 em uma gráfica para imprimir 500 exemplares. Ficaram aquelas caixas de livros no chão da sala."

Inconformado, Antônio perseverou na tentativa de divulgar sua biografia. "Toda vez que tinha noite de autógrafo ou festa de famoso em Fortaleza, eu levava livro. Dei exemplares na mão do Mateus Natchergaele, do Jesuíta Barbosa, do Marco Nanini, do Gero Camilo, de muita gente. Fui a São Paulo, falei com a produção de todos os programas populares de TV. Nada."

A capa da autobiografia (Foto: Arquivo Pessoal)

Treze mil curtidas

No fim, Antônio Teixeira inaugurou uma página na Internet para falar do livro e chegou a receber 13 mil curtidas. "Mas as pessoas mandavam mensagem perguntando se tinha o livro para vender em Curitiba, em Goiânia, eu dizia que a tiragem era restrita. Acabei vendendo 350 e doando o resto."

Depois de fazer um curso de reciclagem de francês na Universidade Federal do Ceará (UFCE) e outro na escola de aviação, pensando em trabalhar no check in do aeroporto, tentou arrumar emprego: "Esbarrei justamente na língua. Até a (cia aérea) Air France, que estava se instalando em Fortaleza, dava prioridade para o inglês."

Fortaleza, 2019 (Foto: Arquivo Pessoal)

Houve ainda uma tentativa de ser guia turístico, sem sucesso; trabalhou como recepcionista em uma pousada e em um consultório médico, onde ficou cinco anos. Está desempregado. Apesar da decisão de enterrar Nádia para sempre, nunca se sabe, em se tratando de Antônio Teixeira, se sua biografia terá novos capítulos.

 

Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.