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Ex-viciado, funkeiro Bola de Fogo abre clínica de reabilitação no ES

Paulo Sampaio

29/01/2018 05h00

A cada nova informação, a história do funkeiro carioca Bruno Oliveira, 38 anos, o Bola de Fogo, parece mais surpreendente. Filho único, o autor do hit "Atoladinha" conta que seus pais estão casados há mais de 40 anos, mas a longevidade do relacionamento deles jamais assegurou um ambiente familiar estruturado. Sua mãe era alcoólatra e viciada em cocaína; seu pai passava os dias fumando maconha. Durante muito tempo, Bruno os culpou por ter se tornado adicto tão cedo: "O meu caso mostra que ter pai e mãe vivendo juntos durante tanto tempo, com disponibilidade para dar atenção ao filho, não é suficiente para garantir uma boa criação", afirma.

Aos 14 anos, ele já estava cheirando pó; aos 16, passou a vender a droga, andava armado e foi preso algumas vezes; experimentou crack e, com o tempo, estabilizou sua dependência na maconha: "Fumava uns 20 baseados por dia. E não era baseadinho, era charutão mesmo", conta ele, em uma sala da clínica de reabilitação Bola de Fogo, que ele inaugurou há um ano e nove meses em Guarapari, cidade a 58 km de Vitória, no Espírito Santo.

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No dia do último casamento, com a mãe, Mary, e um dos seis filhos, Sergio (Foto: Arquivo Pessoal)

Vício pela fé

A ideia de abrir a clínica surgiu quando ele trocou o vício pela fé em Jesus Cristo. Pouco depois de tornar-se fiel da 1a. Igreja Batista de Guarapari, ele deixou completamente as drogas e o álcool. Desde então, não toma "nem cerveja". "Eu sei que se eu me sentar em uma roda de maconha, a carne vai estremecer", diz ele, passando a mão pelo braço. "Logo, vou querer dar um teco. É a mesma coisa que ir a um puteiro e ficar lá, rodeado de mulheres. Meu 'negócio' vai ficar durão, não vai?"

Quando já estava "limpo" das drogas e do álcool, o ex-Bola percebeu que sua experiência como dependente químico poderia levá-lo mais longe. Alugou um sítio, abriu a clínica e batizou-a com o nome artístico que o consagrou. O lugar fica em um zona rural a cerca de 15 minutos do centro de Guarapari e tem capacidade para 50 internos. No momento, recebe 47.

A maioria dos casos é de dependentes de crack, "pessoas que a droga afastou do convívio social": "Já tivemos advogado que perdeu registro da OAB; clínico geral; professor de filosofia, contador.." Para assistir os internos, ele conta com uma equipe de profissionais como psiquiatra, nutricionista, enfermeira, segurança; mas principalmente com a "indispensável acolhida de Deus": "Se o cara quiser sair da droga mesmo, não há outro jeito. Tem de pular nos braços de Jesus!"

1kg de maconha por mês

Pai de seis filhos com quatro mulheres, Bola foi criado na favela de Brás de Pina, no subúrbio carioca, onde começou a cantar nos bailes de fim de semana. A primeira oportunidade foi dada por um "DJ influente". "Eu tinha trânsito no tráfico, era poderoso, então ele me deu uma chance." O público gostou. Ele cantou outras vezes, passou a se apresentar sempre e, de show em show, o nome Bola de Fogo foi se tornando conhecido fora da comunidade. Ele tinha 24 anos quando uma rádio carioca tocou sua primeira música, "Joga na Cara Dele". Aos 26, já era famoso em todo o Brasil à frente do grupo "MC Bola de Fogo e as Foguentas", como foram chamadas as duas dançarinas que o acompanhavam no palco.

No auge do sucesso, entre 2006 e 2009, Bola fazia "365 shows por ano", ganhava R$ 20 mil de cachê e vivia como um marajá. Ele mesmo classifica sua vida como "uma zona".  Transou com muitas mulheres ("não sei como não peguei Aids"); vivia entorpecido ("comprava 1kg de maconha para passar o mês") e torrava todo o dinheiro que ganhava ("cheguei a ter cinco carros"). Não professava fé em religião alguma. "Eu debochava de Jesus", lembra.

Com as "foguentas": lista de sucessos

Bacia triturada

Bruno caminha com dificuldade, enquanto mostra as dependências da clínica, instalada em um terreno de 3 mil metros quadrados. Ele explica que teve o movimento da perna direita comprometido depois de sofrer um acidente a caminho de um show em São José dos Campos, no interior de São Paulo. "O motorista da van fumou muita maconha, dormiu no volante e perdeu a direção. Eu fui cuspido pela janela da frente", lembra. Teve a bacia, o fêmur e a tíbia "triturados". Ao todo, passou um ano na Santa Casa de São José; três meses na UTI. "Não posso mais jogar bola, nem correr. Só nado", diz, com a mão apoiada na perna.

Mesmo passando um período tão longo afastado do palco, ele conta que quando saiu do hospital estava com a agenda lotada: "Sabe o apresentador Gilberto Leão? Ele falava do meu acidente todo sábado. Tudo bem, ele queria Ibope, mas eu não posso reclamar."

Jesus é fogo

Acontece que àquela altura o público do MC já não era o mesmo — nem o cachê que pagavam a ele por show. "Agora, R$ 2.500 era um cachezão!", conta. O tempo de ser festejado pela "playboyzada da zona sul carioca" havia passado. Ele aproveitou o restante da fama para se apresentar em lugares onde seu nome ainda vendia ingresso, especialmente fora do Rio. Apaixonado por Vitória desde a adolescência, quando passava férias na casa dos avós, ele havia comprado um terreno na cidade nos tempos das vacas gordas. Em 2009, mudou-se para uma casa que alugou na praia. Apesar do novo endereço, ele não alterou o estilo de vida. A casa vivia cheia de amigos, mulheres e de drogas…

"Um dia, olhei para todo mundo e disse: 'Não quero mais ninguém aqui.' Meu corpo estava cansado de tudo aquilo", diz Bruno, ao tentar explicar sua fé repentina.  Mais ou menos na mesma ocasião, o haviam convidado para ir à igreja. "Deus começou a falar comigo dentro do meu coração", acredita.  "Eu não era mais Bola de Fogo. Vi que fogo era Jesus!".  Desde então, tudo o que lhe aconteceu na vida, para o bem e para o mal, foi  graças ao "poder de Jesus Cristo". Na igreja, ao prestar seu testemunho e contar as dificuldades que venceu, como quando trocou seu Eco Sport por um "Corsinha", os fieis dizem: "Aleluia!"

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Em plena pregação, na igreja (Foto: Arquivo Pessoal)

Piririn, Piririn, Piririn

Embora diga lamentar muito por "ter aceitado algumas coisas, e não recusado outras", ele afirma que não dá para simplesmente apagar o que viveu.  "As pessoas me perguntam se eu me arrependi de tudo o que fiz. Digo que, se não tivesse feito, não teria história para contar", afirma ele, no púlpito da igreja cristã evangélica petencostal de Guarapari. Mas o velho Bola não está de todo ultrapassado. No CD "Bruno Resgatado",  fruto de sua versão funkeiro gospel, ele manteve o apelo de músicas que o consagraram. A própria "Atoladinha" recebeu uma reciclada na letra. De: "Piririn, piririn, piririn/Alguém ligou pra mim", passou para: "Piririn, piririn, piririn/ Jesus ligou pra mim."

Setembro: show de funk gospel em Guarapari (Foto: Arquivo Pessoal)

No primeiro ano longe da carreira comercial, Bruno passou a dar palestras em escolas e presídios, contando sua história de superação.  Até hoje recebe colaborações quando canta na igreja, mas, apesar de ter vendido 1 mil cópias do CD para fieis, o dinheiro não é suficiente para o seu sustento. "Já colocaram R$ 100 reais dentro de um envelope, mas é raro", conta. Mesmo assim, "o pão, o arroz, o feijão e ovo não faltaram". "Sabe por quê? Porque Deus é Deus!" Os fieis: "Aleluia!"  A princípio, para dar um reforço à assistência divina, ele vendeu o terreno, comprou uma van e passou a trabalhar em dupla com o pai, levando turistas para conhecer as praias de Guarapari. E então abriu a Bola de Fogo.

A clínica, vista do alto (Foto: Arquivo Pessoal)

Lago e piscina

Durante a visita do blog à clínica, cruzamos com internos maniácos, passivos, alegres e também com os fisicamente sequelados. A idade deles vai de 20 a 30 anos, segundo Bruno, que fala com todos com intimidade de brother. Não há mulheres. "Ia dar ruim", diz ele, próximo ao lago onde cria patos. O funkeiro mostra o lugar com nítido orgulho. Explica que o tempo de tratamento varia de 9 meses a um ano, e que cobra pela internação R$ 2 mil mensais. São três padrões. A "compulsória", quando o dependente é interditado judicialmente e a família solicita que se vá buscá-lo em casa: "Às vezes é preciso levar lutadores de jiu-jítsu para imobilizar o cara. Dá trabalho. Já vi subirem até no telhado, parecia filme", conta; na "voluntária", o dependente químico decide por conta própria se internar; e na "involuntária", geralmente o terapeuta convence o paciente de que o tratamento é a melhor solução.

Entre os internos Idalício e Davi, que se recuperam da dependência de crack e maconha (Foto: Paulo Sampaio)

Os internos ocupam duas alas, dependendo de como eles se portam. Os "comportados", a maioria, ficam na primeira casa; o restante, mais nervoso, é alojado em um dormitório isolado. Como incentivo à recuperação, Bruno leva os que estão indo bem para passear na praia, na igreja e oferece churrascos.

O auxiliar de armazenagem Paulo Caetano, 36, um dos "comportados", conta que desde os 16 anos foi usuário de maconha. "Aos 25, estava viciado em crack; minha noiva me deixou e  fui morar na rua." Caetano está na clínica há apenas cinco meses, mas mostrou-se tão colaborativo que Bruno o promoveu a supervisor da clínica.

Com Paulo Caetano, à esquerda, e outros internos, durante a visita do blog à clínica (foto: Paulo Sampaio/UOL)

Atualmente, Bruno Oliveira vive com Mariland Felipe de Lucena, a Mari, que trabalha na administração da clínica.  Conheceu-a na igreja, e agora tem uma filha de 2 anos com ela. Os tempos de esbórnia soam distantes  – ele parece bastante focado no projeto Jesus/clínica. Aos funkeiros que estão na crista da onda, Bruno faz um alerta: "Não é pra sempre", diz ele, mais resignado do que agourento. Afirma que ninguém, por mais bombado que seja, fugirá à regra: "O funk está muito mais profissionalizado, deixou de ser modinha, mas vai vir outra Anitta. Lembra da Kelly Key?"

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.