Produtora lésbica se queixa de discriminação na Delegacia da Mulher
Paulo Sampaio
09/03/2018 05h00
Na segunda-feira, 5 de março, a produtora de cinema Priscila Fraguas Monteiro de Carvalho, 40 anos, esperou cerca de três horas para ser atendida na 1a. Delegacia de Defesa da Mulher, no centro de São Paulo. Saiu de lá sem conseguir fazer o registro de um boletim de ocorrência. Relatou que sua ex-mulher, com quem ainda está legalmente casada em regime de separação parcial de bens, a impedira de entrar em casa para pegar seus pertences. Priscila pedia uma "medida protetiva". A plantonista que entrou às 20h disse: "Não é possível registrar um B.O. 'disso'. Não é da nossa alçada. É da cível."
O "disso" a que a delegada se referia é o que a Lei Maria da Penha tipifica como "violência patrimonial". Trata-se de "qualquer conduta que configure retenção, subtração, destruição parcial ou total de objetos, instrumentos de trabalho, documentos pessoais, bens, valores e direitos ou recursos econômicos, incluindo os destinados a satisfazer suas necessidades". Sancionada pelo presidente Lula em 2006, a Maria da Penha é considerada uma das legislações mais importantes do mundo no enfrentamento da violência doméstica contra a mulher.
Quem sugeriu a Priscila registrar um boletim de ocorrência foi um amigo promotor federal.
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Priscila Monteiro de Carvalho, no ano passado (Foto: Arquivo Pessoal)
Na rua
Depois de terminar um relacionamento de quatro anos com uma advogada, Priscila foi impedida pela ex-mulher de entrar no apartamento onde as duas moravam, em Higienópolis, bairro "nobre" na região central de SP, e está até hoje sem computador, muitas roupas, sapatos e um quadro. "Ela trocou o segredo da fechadura das portas e orientou os porteiros a chamarem a segurança na rua, caso eu insistisse em entrar no prédio", conta.
Indignada, a produtora disse que aquilo era ilegal e que voltaria com a polícia. A outra então a deixou entrar, mas ainda assim não foi possível levar tudo. Logo depois, segundo Priscila, a advogada voltou a impedir o acesso da ex ao prédio, quando descobriu que ela estava se relacionando com outra mulher. Faz dois meses que Priscila está sem endereço fixo. Se vale da hospitalidade de amigos, e peregrina da casa de um para a de outro.
A história
Ela conta que decidiu colocar um ponto final no casamento — registrado em um cartório do Brooklin no dia 12 de dezembro de 2015 — quando as agressões da advogada tornaram a convivência impraticável. "Ela sofria de um ciúme doentio, injustificado, que a fazia suspeitar até mesmo das próprias amigas. Todo mundo dava em cima de mim, e eu dava em cima de todo mundo. Fora de si, ela me chamava de interesseira, puta, vagabunda, dizia que eu tinha ficado inclusive com meu chefe." Priscila guarda até hoje os áudios que gravava durante as agressões (e na frente da agressora) para que ela ouvisse depois. "Não gravei pensando em usar em juízo, mas para mostrar como ela ficava. O pior é que depois não pedia desculpas; tentava compensar o descontrole com presentes caros, joias, viagens."
Priscila com a ex-mulher, em Paris (Foto: Arquivo Pessoal)
Detetive particular
De acordo com a produtora, o relacionamento começou a ficar insustentável há cerca de um ano e meio. "Ela entrava no Instagram da minha ex-namorada, levava minhas roupas para o escritório e chegou a contratar um detetive para me seguir e comprovar alguma traição." Priscila diz que sabia desde o início que o temperamento da advogada era difícil, mas permaneceu no relacionamento porque pretendia ter um filho, coisa que sua namorada anterior não queria, mas esta, sim. "O projeto de ser mãe me fez relevar as dificuldades na convivência."
Advogada poderosa, em cuja carteira de clientes havia réus envolvidos na Operação Lava Jato, a ex de Priscila costumava chegar do trabalho esgotada — e não raro, segundo a produtora, descontava seu mau humor nela. Priscila afirma que a ex era uma excelente profissional, mas seu "lado emocional" era um desastre. "Ela tem uma auto-estima muito baixa, e é extremamente competitiva. Se eu me arrumava, mesmo que fosse para agradá-la, ela entendia que era para deixá-la pra baixo", conta.
Ressalva importante
Em janeiro deste ano, a advogada entrou com um pedido de separação de corpos, deferido em 1º de março pela juíza Vivian Wipli, da 8a. Vara de Família e Sucessões, com uma ressalva: Priscila poderia buscar suas coisas no apartamento. Embora tenha concordado a princípio, a advogada voltou atrás: "Ela vasculhou minhas redes sociais e descobriu que eu estava com outra pessoa", conta Priscila.
O advogado da ex propôs um acordo que, sem saber se se tratava de uma armadilha, Priscila considerou "temerário": "Ele me mandou um e-mail com uma minuta para eu assinar. O texto dizia que, se eu renunciasse a tudo, referindo-se à união parcial de bens, eles me entregariam minhas coisas em 48 horas. Eu deveria deixar meu carro e as chaves na casa dela", conta Priscila.
Domicílio oficial
A advogada mandou uma notificação para a produtora, convocando-a para uma audiência de conciliação. Ocorre que mandou para o endereço de um dos amigos que acolhem Priscila, e ela não estava lá no momento em que o oficial de justiça a procurou. A produtora diz que soube da notificação pelo próprio advogado da ex, e então pediu ajuda a uma amiga juíza para localizar a data e o local da audiência: "Seria na quarta-feira passada, mas essa amiga juíza me disse que, como eu não havia sido notificada oficialmente, não precisava ir; me orientou a procurar um advogado para me sentir segura. Eu estava com medo, sem saber o que poderia acontecer, por isso não fui."
Priscila acredita que sua ausência deve ter levado o juiz a perguntar aos presentes para qual endereço mandar a segunda notificação. "Gostaria de saber qual foi a resposta deles, já que ironicamente estou impedida de entrar no meu domicílio oficial."
Antidepressivo e desolação
Para enfrentar a situação, a produtora buscou ajuda de um psiquiatra e agora faz uso de medicamento antidepressivo. Diz ela: "Procurei a delegacia da mulher por receio de ouvir na convencional algum comentário desagradável de um homem. Acabei me surpreendendo. Saí de lá com a impressão de que, se eu estivesse passando pela mesma situação sendo heterossexual, conseguiria registrar o boletim de ocorrência. Me pareceu que elas só sabem lidar com agressão quando é de homem contra mulher. Na hora, fiquei tão desolada que até chorei."
Especialistas dizem que o fato de já haver um processo — e por isso o caso dizer respeito à área cível — não impede Priscila de querer registrar um boletim de ocorrência — relativo à área criminal — , já que ela se sente vítima de violência. De acordo com a advogada Maria Berenice Dias, vice-presidente do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), "Priscila tinha pleno direito de registrar um B.O.". "Ela estava sendo impedida de entrar em casa para pegar seus pertences. O advogado da ex-mulher e a própria ignoraram a ressalva da juíza. Depois, a área cível não garante medida protetiva".
Maria Berenice afirma ainda que "o tipo de delito que a vítima quis denunciar consta da lei Maria da Penha, e sua interpretação independe de orientação sexual". "É natural que ela tenha se sentido discriminada."
De acordo com a assessoria de imprensa da Secretaria de Estado da Segurança Pública, "a Polícia Civil informa que na ocasião do atendimento a delegada orientou a cidadã que, por se tratar de uma questão patrimonial e por já existir uma autorização por parte da Justiça, o caso deveria ser comunicado ao órgão que poderia julgar e orientar a intervenção quanto ao não cumprimento da decisão judicial citada."
"No entanto", afirma ainda a Polícia Civil, "cabe esclarecer que caso ela tenha se sentido desrespeitada durante o atendimento recebido na delegacia, é possível formalizar a reclamação na Corregedoria da Polícia Civil, que poderá obter mais detalhes para a devida apuração."
Priscila resolveu contar sua história ao blog porque acredita que "muitas mulheres estão passando pela mesma situação". "Existe uma grande desinformação, o próprio poder público nos confunde mais do que esclarece. Eles usam o juridiquês, a gente fica sem saber a quem, exatamente, recorrer. Mas acho que nenhuma mulher deve se deixar coagir, nem recuar da busca pelos seus direitos."
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Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.