Higienizador portátil de ânus ("chuca") divide opiniões de especialistas
Paulo Sampaio
13/07/2018 05h00
No tem sido fácil para o empresário Marcus Castropil convencer os médicos de que o higienizador de ânus ("chuca") portátil que ele criou reduz o risco de doenças sexualmente transmissíveis (DST), como o HPV, as hepatites e a herpes. A ducha retal, ou enema, é uma prática que consiste em lavar o reto antes do sexo anal, para evitar que restos de fezes não sejam eliminados durante a penetração, o que pode causar constrangimento.
Castropil afirma que sua invenção substitui com vantagens a "mangueirinha" em geral instalada na lateral de alguns vasos sanitários ou acoplada nos chuveiros. "Os usuários costumam retirar o chuveiro metálico da extremidade da mangueirinha e introduzir apenas a parte de borracha no ânus. Acontece que aquilo é cortante e, quando compartilhado, por exemplo, nas saunas gays ou na casa de amigos comuns, antes de sair para a balada, torna-se um potencial transmissor das DST. Imagine uma mangueira de borracha entrando e saindo várias vezes de diversos ânus diferentes."
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A embalagem da "chuca portátil" é semelhante a de uma camisinha; quando se abre o envelope plástico, ela está dobrada e vem com orientação de como usar; feita de polietileno, tem uma cânula azul na porta que serve para enchê-la de água e esvaziá-la no reto, depois da introdução (Foto: Paulo Sampaio/UOL)
Apesar de já ter sido lançada há três anos, a "chuca portátil" não se tornou tão popular como Castropil imaginava. Ele diz que enfrentou preconceito inclusive para comercializá-la: "Muitas farmácias se recusam a vender meu produto porque está associado ao universo gay", acha. O dispositivo é composto por uma bolsa de 4cm x 4cm, feita em polietileno, equipada com uma cânula azul em uma das extremidades. Com capacidade para 300 ml de água, vem dobrada dentro de uma embalagem semelhante à de uma camisinha. Nos estabelecimentos que a disponibilizam, custa entre R$ 5 e R$ 8.
Médicos não recomendam
Em sua maioria, os médicos não recomendam a "chuca" (portátil ou não): "Antes do sexo anal, o paciente deve manter seus hábitos de higiene normais. Se estiver com vontade de evacuar, vá ao banheiro e faça a higiene íntima, sem lavagens internas de rotina que podem eventualmente traumatizar o local, alterar o hábito intestinal e dificultar a evacuação futura", diz a proctologista Marlise Cerato Michaelsen, da Sociedade Brasileira de Coloproctologia (SBPC).
Segundo Marlise, a utilização do enema (lavagem) deve ser sempre por indicação médica, e não como prática regular antes do sexo anal: "O procedimento é utilizado nos preparos para alguns exames de investigação diagnóstica, como a colonoscopia. Pode ser aplicado também no auxílio do fecaloma (fezes empedradas), ou para esvaziar o reto em caso de dificuldade evacuatória." No caso de sexo com mulheres, o preservativo deve ser trocado se houver intercurso vaginal depois do anal.
Mas já que vão fazer mesmo
Castropil defende que a "chuca" é amplamente difundida na comunidade gay e que os homossexuais não vão deixar de fazê-la porque os médicos não indicam. "Quando se trata de prevenção das DST, os profissionais de saúde sempre falam na 'redução de danos'. Dizem que, se a pessoa não vai usar camisinha, que pelo menos conheça e faça uso das profilaxias pré ou pós exposição ao vírus. No caso da chuca, é a mesma coisa. Já que ninguém vai deixar de fazer, com medo de passar constrangimento na cama, é melhor que seja com um dispositivo descartável e higiênico."
Na defesa do próprio invento, Caterpil sugere que o dispositivo faça parte da chamada "prevenção combinada" — modelo de combate à transmissão das DST considerado o mais eficaz atualmente. Em vez de impor o uso do preservativo ("use camisinha"), as campanhas agora oferecem alternativas para que a pessoa escolha o método que mais se adapte ao seu momento de vida.
Cartas de recomendação
Para provar que sua sugestão é relevante, Caterpil mostra um folder publicitário com cartas de especialistas incentivando o uso do produto. Uma delas é assinada pelo pesquisador de saúde, sexualidade e direitos humanos da população LGBT pela faculdade de medicina da Santa Casa de São Paulo, Daniel Dutra de Barros. "É um prazer recomendar o higienizador íntimo In-M para compor o quadro de insumos de prevenção, juntamente com o preservativo e o gel lubrificante distribuídos pelo governo. Acredito que promove um novo debate sobre as práticas sexuais e prevenção de riscos", diz Barros, que é também coordenador da educação comunitária da faculdade de medicina da USP.
A coordenadora de projetos em saúde sexual e reprodutiva pelo Instituto de Saúde da Secretaria do Estado de São Paulo, Regina Figueiredo, também aparece no folder: "A lavagem retro-anal é uma prática comum entre aqueles que realizam sexo anal. Essa prática, muitas vezes, é realizada com materiais coletivos, inadequados e de pouca higiene, por isso as duchas descartáveis de uso pessoal têm sido estudadas e recomendadas, para reduzir riscos."
Impacto na saúde
De acordo com uma pesquisa feita em 2009 pelo Datafolha, 88% dos homossexuais, o mesmo percentual de bissexuais e 57% das mulheres praticam sexo anal. Um outro estudo, feito em conjunto pelo enfermeiro Luiz Carlos Ribeiro Lamblet, mestre em ciência da saúde, e o urologista Roberto Carvalho da Silva, do Centro de Referência e Treinamento – DST/Aids (CRT), revelou que 396 dos 401 entrevistados haviam feito sexo anal nos três meses anteriores e que 197 realizaram a DR (ducha retal). "Não é porque não se fala no assunto que ele não existe", diz Lamblet, ao justificar o estudo.
O objetivo foi investigar quem usa a ducha retal, como e em que condições, com que material e qual o impacto da prática na saúde, principalmente no contexto das DSTs e no comportamento.Entre os entrevistados, 340 se identificaram como "homem"; 39 como "mulher transexual"; 18 como "travesti"; 3 como "mulher" e 1 ainda não definido. A maioria (266) tinha nível superior completo, alguns com pós-graduação.
Mangueirinha, a mais usada
O estudo mostrou que o objeto preferido para a "chuca" é a mangueira do chuveirinho, usada por 85% dos entrevistados. A bombinha plástica em formato de pera, também chamada de ducha ginecológica, vem em segundo lugar. E, em terceiro, o dispositivo criado por Castropil.
Carvalho diz que considera pouco provável acontecer a transmissão de DSTs via mangueirinha. "Normalmente, a água corrente e um sabonete dão conta de eliminar as bactérias. Mas, claro, se a mangueira entra em contato com fezes ou sangue e, imediatamente, outra pessoa vem e usa, ela pode pegar vermes, hepatite A, HPV", diz o médico. "É mais provável o risco se a pessoa que fez a lavagem tem uma lesão."
Os médicos limitam a quantidade de água permitida nas DR. "Não dá para passar de 1 litro", diz a proctologista Miriam Jatobá, do CRT. De todo jeito, Miriam afirma que usar a mangueirinha, sem introduzir, é o recomendável para não lesionar a mucosa do ânus nem o canal do reto.
Quitinetes lotadas
O inventor da chuca portátil argumenta que é preciso pensar nas populações vulneráveis, carentes e com baixo nível de informação: "Aqueles rapazes que frequentam o Largo do Arouche (centro de São Paulo), por exemplo, muitas vezes vêm da periferia para passar o fim de semana em quitinetes lotadas. Ali, eventualmente, eles compartilham a mangueirinha do chuveiro elétrico. Existe até quem brinque, chame essa 'higienização pré-balada' de Xou da Xuca."
Castropil cita também a "chuca seca". "Já ouvi relatos de travestis que introduzem papel higiênico no reto até sair limpo. São rolos quase inteiros e chegam até o intestino grosso, empurrando as fezes para cima. Não é melhor fazer isso com higiene?"
Pass0-a-passo
Na Internet, há tutoriais com centenas de milhares de seguidores explicando como fazer a chuca. Ali se diz que se deve injetar a água no reto e expelir várias vezes, "até que ela saia branquinha, sem sinal de fezes". Então, afirmam os "mestres", o ânus está preparado para receber o pênis sem o risco de, na gíria dos gays, "passar cheque".
Marta McBritton, presidente do Instituto Barong, uma ONG especializada em prevenção de DST/aids, afirma em entrevista a Agência de Notícias da Aids, que a chuca portátil "é um insumo de redução de danos, pelo fato de ser descartável". "Evita-se que objetos como mangueira de chuveiro e garrafas pets sejam compartilhados."
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.