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Profissionais de "todas as áreas" pagam R$ 2.500 para ganhar prêmio

Paulo Sampaio

26/07/2018 05h00

Quando o cabeleireiro Luiz Carlos Caracciolo, de 64 anos, de Barueri, Grande São Paulo, recebeu um e-mail informando que ele havia sido indicado para ganhar o título de "comendador", por "serviços prestados à beleza", achou que poderia ser uma "pegadinha": "Mas aí, eu vi que era uma honraria, e resolvi aceitar. Não custa nada, né?", pensou ele.

Pior que custava. A Associação Brasileira de Liderança (ABL), entidade com fins lucrativos que promove a premiação, cobra uma "cota" de R$ 2.500 de cada laureado. Ninguém reclama. O sucesso é tamanho que, desde sua criação, em 2009, a ABL foi obrigada a aumentar de 10 para 50 as categorias "chaves de mérito" do Prêmio Excelência e Qualidade Brasil. A princípio, a solenidade se realizava na Assembleia Legislativa de São Paulo; mas o espaço tornou-se pequeno para abrigar tantos homenageados, e então os organizadores passaram a produzi-la no Círculo Militar; não foi suficiente. Com cerca de 120 interessados em pagar para receber um prêmio, a solenidade foi levada para o salão do clube Sírio Libanês, na zona sul de São Paulo. Na noite de terça-feira, a entidade recebeu para a 11a. edição do evento.

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O cabeleireiro Luiz Carlos Caracciolo, premiado como comendador por "serviços prestados à beleza", e sua irmã, Vera Lúcia (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Batata corada

O empresário por trás da brilhante ideia de vender prêmios chama-se Moisés Hartmann e tem 56 anos. Com muita tranquilidade, ele afirma que acha razoável o valor que cobra dos condecorados, "pelo que o prêmio oferece". "O homenageado ganha uma grande e luxuosa placa de diplomação, uma medalha de lapela estilo militar, um selo de qualidade que pode ser usado em notas fiscais, cartões de visitas etc; um troféu e a titulação publicada no Diário Oficial." A mulher de Hartmann, Deborah, que o acompanha na organização do evento, diz, a título de justificativa, que: "Só o aluguel do salão sai por R$ 80 mil."

Vale lembrar que os premiados são 120, mas, como não teria graça nenhuma receber a comenda sem uma claque de admiradores, os Hartmann generosamente permitem que se levem familiares e amigos para a cerimônia black-tie. Providenciaram até um bufê. Servido em rechauds de alumínio dispostos em uma mesa comprida, coberta por uma toalha preta e instalada em um terraço de piso frio, oferece opções como batata corada ("rústica"), ravioli com molho de tomate ("ao sugo") e filé recheado com bacon e alho poró, ao vinho tinto.  R$ 280 por cabeça. "Recebemos cerca de 500 convidados", calcula.

Os premiados, seus familiares e o bufê; rechauds de alumínio e ravioli ao sugo; R$ 280 por cabeça (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Cinco cheques, ou no cartão

Como terá ocorrido a centelha de criatividade que levou Hartmann a vender prêmios? Ele explica: "Hoje, a mídia divulga tanta violência, enfatiza tanta coisa negativa que a gente resolveu passar uma mensagem positiva. Nosso prêmio visa incentivar as pessoas a melhorar, a investir em suas carreiras e em aspectos pessoais." Os R$ 2.500 podem ser pagos à vista ou em cinco vezes (R$ 500 e o saldo em quatro parcelas); com cinco cheques; ou no cartão, em 12 vezes, com juros (R$ 2.630), "facilitando a adesão do homenageado".

Deborah volta à carga, para lembrar que "cada linha no Diário Oficial custa uma fortuna". "A titulação é vitalícia, para a pessoa não ter despesa com renovação no ano seguinte", diz ela.

Reconhecida em Paraíba do Sul

Como alguns dos laureados querem voltar nas próximas edições, para receber mais prêmios, Hartmann foi obrigado a inventar mais títulos. Antes, havia apenas "comendador" e "embaixador de qualidade"; este ano, ele criou o "comendador grão-mestre". O título vem antes da categoria. Exemplo: a advogada Marta Boim Leal, 63 anos, que está vindo pelo segundo ano de Paraíba do Sul, no estado Rio, já havia recebido o título de comendadora e, agora, tornou-se embaixadora de qualidade e grã-mestra de advocacia especializada. Estava em uma mesa com os dois filhos e um neto (R$ 840, só de bufê). Ela diz que o prêmio "elevou muito a parte profissional". Em um vestido longo púrpura, afirma: "Consegui o crescimento e o reconhecimento da população de Paraíba do Sul."

Marta não sabe quem a indicou para o prêmio, assim como boa parte dos homenageados. O intrigante é que nenhum deles parece ter curiosidade em saber. "O Moisés acha que fica chato para quem indicou", dizem. Marta: "Ele me ligou informando que havia 500 indicados para 10 vagas, e que eu fui escolhida." Mas, afinal, quem a teria indicado? " Hartmann: "Prefiro não informar, para não causar constrangimento. Pensa bem: se houver outro funcionário da empresa realizando o mesmo trabalho, na mesma área, a premiação de um só pode gerar conflito." Claro.

Marta Boim Leal, intitulada embaixadora e grã mestre em advocacia especializada, veio de Paraíba de Sul com dois filhos e o neto (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

O evento é acompanhado por "autoridades" convidadas pelo casal Hartmann. Entre outros, o coronel Laércio Fernandes Jr., da Polícia Militar de SP ("chefe da polícia anti-sequestro, está há 35 anos lá", diz Hartmann); o tenente-coronel Luciano Silva Suave, do Espírito Santo; o professor Roberto Righi, do Mackenzie ("vem todos os anos"); e o advogado Rafael Schuez Kurkowski, do Ministério Público de Sergipe.

Cada premiado ganha uma medalha de lapela "estilo militar" (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Hartmann aponta para um telão instalado ao lado do palco e diz: "Ah, o mais importante, não sei se você viu. Os premiados têm o direito a dar uma entrevista que é gravada; eles podem levar pra casa depois." Chique.

Um assessor do casal se aproxima e avisa que está na porta do clube uma pessoa que não veio com a plaquinha que comprova que ela ganhou o (pagou pelo) prêmio. Deborah diz ao assessor para informar à pessoa que haverá uma nova premiação em novembro e que ela pode voltar devidamente munida da plaquinha. "Espertinho", comenta ela.

Bach e Jamiroquai

O casal me informa que a solenidade vai começar. Os dois caminham para o palco, cumprimentam "a mesa de autoridades" e se postam à direita deles. O DJ Hélio Santos, 43, toca o Hino Nacional, depois alterna Bach e Jamiroquai. Quando chamam as autoridades, Santos opta por algo mais heavy: Pitbull. Hartmann, que é judeu ortodoxo,  inicia sua fala agradecendo a premiação "ao senhor eterno, todo poderoso, nosso criador". Ele usa barba longa e peiot, veste um paletó comprido e um chapéu; Deborah, que observa o marido com um olhar cúmplice, está de vestido verde claro com pintas escuras, botas marrons de cano longo e touca sobre a peruca. Lembra um pouco a personagem de Barbra Streisand em "Essa Pequena é Uma Parada".

Os Hartmann, à dir., e as autoridades cantam o Hino Nacional, antes da solenidade (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

O apresentador oficial assume o microfone. Enquanto anuncia os homenageados a toque de caixa, já que são muitos, faz gracinhas para imprimir uma atmosfera leve ao evento. O "jornalista autônomo" contratado para fazer as entrevistas lê uma pequena preleção com elogios a Hartmann e à mulher, diz que a cerimônia do prêmio "é um dos maiores eventos meritórios do Brasil em honrarias entregues". "Cada vez que alguém procurar seu nome no Google, vai aparecer a confirmação da publicação feita pelo Diário Oficial da outorga do título de comendador."

Mérito em estética

As placas apoiadas sobre uma mesa na parte de trás do palco saem que nem pão quente. Os homenageados fazem fotos, cumprimentam as autoridades e dão entrevistas. O critério de reconhecimento de méritos da Associação Brasileira de Liderança é bastante amplo. A esteticista e psicóloga criminal pernambucana Elani Calado, 39, por exemplo, diz que no ano passado foi intitulada "comendadora com mérito em estética", e esse ano,  "embaixadora com mérito em psicologia criminal".

Sob certo aspecto, o prêmio é bastante lúdico, lembrando um pouco uma brincadeira onde as crianças decidem que todo mundo é príncipe e princesa. O empresário Renato Bandeira, 67 anos, de Porto Alegre, recebeu o título de "comendador em informática": "Fui indicado ao prêmio pelo que eu fiz em 1988", diz. Nunca é tarde quando se trata do Prêmio Excelência e Qualidade Brasil. E qual teria sido o feito de Bandeira? "O segundo nó da Internet no Brasil, para o CNPQ (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico)." Parabéns! Ele posa com a mulher, a empresária Luciane Vargas, 43, que ostenta tatuagens nos ombros à mostra.

Renato Bandeira, condecorado pelo "segundo nó da Internet no Brasil, em 1988, para o CNPQ", e a mulher, Luciane Vargas (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

Profissional de Saúde Mental

Muito magra, a carioca Valéria Nunes, 43 anos, 1,70m, 47kg, diz que é profissional de saúde mental e que está ali pela segunda vez. Veio representando a Associação Brasileira de Psicologia do Tráfego (ABRAPSIT). "É uma entidade recém criada, existe desde maio, mas já tem nove federadas no Brasil", orgulha-se. "Eu trabalho bem. Até me chamaram para ser presidente da associação, mas como eu não tinha pós-graduação, não achei honesto."  Com um vestido amarelo  tipo esvoaçante, ela fala ao microfone sobre a quantidade de pessoas que morrem no trânsito em toda a América do Sul: "São 140 mil vítimas, 5 milhões de pessoas sequeladas. É com muita honra que eu pretendo lutar por essa causa até o fim dos meus dias", diz. A carga dramática do rosto anguloso de Valéria está reforçada por um espesso contorno dos olhos feito com lápis preto.

Do outro lado do salão, Delcir Sonda, dono do supermercado que leva seu nome, é cercado por seis asseclas que tentam vender um perfil dele para o blog. Sonda, que já havia sido citado por Hartmann, é um dos cartões de visita do evento. Está ali para homenagear o comendador Ricardo Scheurer, "destaque na área de TI". "A história dele (Sonda) é muito bonita. Ele era motorista de caminhão no sul…", começa o diretor médico do supermercado, Cláudio Abduch. "Ele (Sonda) daria uma excelente entrevista", garante outro comendador, Robson Trindade, laureado como "profissional do ano" — que vem a ser uma espécie de "categoria curinga": "É muito genérica. Serve para premiar de professores a doutores", reconhece Hartmann, que tem as bochechas rosadas e um sorrisinho matreiro.

Hartmann, Deborah e placa da comendadora Valéria Nunes, da Associação Brasileira de Psicologia no Tráfego; ela pega o microfone para falar sobre a sua intenção de "lutar pela causa" até o fim de seus dias (Foto: Paulo Sampaio/UOL)

São 22 horas e, pelo que disse Deborah no início, o evento vai longe. Tomo o rumo da porta do clube. A engenheira social Katlin Duarte, 35, que está de saída com o filho pequeno no colo e o marido, me agradece por ajudá-la a libertar um guardanapo que enganchou em um paetê dourado de seu vestido longo. Katlin conta que veio de Telêmaco Borba para receber o título de "comendadora" por "mérito social empresarial". A cidade fica no interior do Paraná, a cerca de 220 km de Curitiba, o que mostra que a associação de Hartmann tem, de fato, um grande alcance. O prêmio é tão abrangente em suas categorias, e Hartmann tão dadivoso, que talvez fosse o caso de laureá-lo também —  por indicação própria. Sugestão de título: grão-mestre do mérito social remunerado.

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.