Parada gay denuncia Prefeitura por patrocínio ilegal em trio
Paulo Sampaio
15/08/2018 05h00
A Associação da Parada GLBT (ONG de defesa dos direitos de gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais e transgêneros) deve entrar com uma ação no Ministério Público contra a Prefeitura e a secretaria municipal de Direitos Humanos e Cidadania, pela venda de apoio e patrocínio para o trio elétrico do Transcidadania (projeto de inserção social da Prefeitura). "Os trios são públicos, não se pode vender patrocínio. A gente assina com a municipalidade um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) que define bem isso", diz o vice-presidente da parada, Renato Viterbo.
O trio foi cedido ao empresário Estêvão Delgado, do perfil de humor LGBTT+ Ezatamentchy, que vendeu cotas de R$ 5 mil para a ajudar na produção. O empresário diz que não visava lucro, apenas precisava de uma ajuda financeira. "Consegui R$ 15 mil, mas ainda tive de colocar dinheiro do meu bolso", afirma ele. Entre outros, o trio do Transcidadania apresentou um show da cantora Gabi Amarantos. "Não paguei nada para nenhuma das atrações. Todas foram por conta da minha credibilidade", garante o empresário.
Delgado conta que esteve na Prefeitura no primeiro semestre para apresentar o projeto de uma revista que ele pretendia lançar. "Eles me ofereceram um trio, mas limpo, sem nenhuma produção. A decoração, as atrações, as bebidas, tudo ficou por minha conta." Na ocasião, o coordenador de políticas LGBTT da secretaria era Ivan Inácio Batista. Ele diz que não quer se manifestar.
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Comprovante de compra
O ativista Alexandre Peixe, o Xande, organizador da Marcha Trans, afirma que ele mesmo comprou uma cota: "Eu comprei uma, o dono da Ssex Bbox (sex shop virtual), outra, para provar depois que eles estavam vendendo patrocínio em um trio público", conta. A marca Chilli Beans também comprou uma cota do Ezatamentchy.
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Gabi Amarantos, no trio do Transcidadania (Foto: Arquivo Pessoal)
Parada x Ezatamentchy
Renato Viterbo diz que havia procurado a Chilli Beans para captar recursos para a ONG, e a empresa se mostrou animada, "mas depois deu uma sumida": "No dia da parada, percebi que uma porção de frequentadores do trio do Transcidadania usava camisa com o logo deles."
A assessoria da Chilli Beans confirma que foi procurada pelo empresário Heitor Werneck, ligado à parada, e que ele ofereceu uma cota de patrocínio. "Mas aí, pelo que a gente soube, o Heitor sofreu um acidente e a conversa morreu. Uma semana antes do evento, o Ezatamenchy nos procurou. Achamos que seria interessante participar, porque os artistas convidados do trio tinham a ver com a marca."
Pela cota de R$ 5 mil, a assessoria da marca diz que obteve o direito de colocar um banner "do tamanho permitido": "Tudo dentro da legalidade. A marca não pagou um tostão para a Prefeitura."
Termo de Declarações
De acordo com Xande, não foi só o banner. No dia 25 de julho, pouco mais de um mês depois da parada, ele esteve pessoalmente na secretaria dos Direitos Humanos e Cidadania para "questionar irregularidades" ocorridas no trio do Transcidadania. Segundo um "termo de declarações" assinado por ele, pelo secretário adjunto de Direitos Humanos e Cidadania, Eduardo Barbosa, e pelo chefe de gabinete da secretaria, Luiz Osete Filho, cada cota de patrocínio dava direito ao logotipo nas camisetas, na capa do evento no Facebook e em todos os posts institucionais no Facebook e Instagram; um na timeline do Instagram; um mínimo de seis posts no stories do Instagram; aparição em vídeo na cobertura feita pelo Youtube, mais logo nos créditos finais; cinco convites para o carro.
Xande, que foi presidente da associação da parada e hoje é coordenador regional do Insituto Brasileiro da Transmasculinidade (IBRAT) , afirma que "o que menos se via no carro do Transcidadania era transexuais, travestis e transgênero". "Eu só entrei porque estava com a pulseira de cotista. Uma amiga transexual que me acompanhava, e não tinha a pulseira, foi barrada."
Camiseta com o logo da Chilli Beans, da Marcha Trans e da Ssex Bbox usada por frequentadores do carro do Transcidadania (Foto: Arquivo Pessoal)
Interesses políticos
Delgado diz que está sendo "envolvido em uma briga de interesses políticos". "Isso é intriga. Havia quatro cantoras trans no carro. Sempre defendi a causa trans. Já tirei trans da prostituição e dei emprego. Uma das minhas colaboradoras mais próximas é trans. Produzi o trio com a maior dedicação, amor mesmo, ficou tão lindo, não acho justo me envolverem nisso", afirma.
Renato Viterbo não questiona o amor empenhado por Delgado para produzir um carro bonito e enchê-lo de atrações: "O que eu questiono é a Prefeitura oferecer um carro para um cidadão comum, que ainda por cima vende cotas para 'ajudar na produção do trio'. Imagine se uma empresa particular cederia um trio dela, em um evento, para alguém usar e ainda vender cotas."
A matemática dos trios
Segundo Viterbo, em 2018 a parada contou com 18 trios. Dez contratados pela própria associação; seis por licitação pública; um da HF (ONG internacional que lida com prevenção da Aids) e um reserva, para o caso de acontecer algum problema com os outros. Ele diz que, nas primeiras edições do evento, que tem 22 anos, a Prefeitura cedia três trios para a associação, um para cada letra da sigla, que até então era GLT: "Os carros eram especificamente para a militância. Tinha o carro dos gays (G), das lésbicas (L) e das travestis (T)."
Entretanto, com o passar dos anos e o aumento da visibilidade da parada, cada novo governo acrescentou um trio. As letras da sigla aumentaram também. Foram de GLT para GLBT (B, de bissexuais); depois LGBT (as lésbicas reclamaram a precedência); e atualmente é LGBTT+. "Ocorre que, com o tempo, a finalidade dos trios foi se perdendo. Em 2017, a Prefeitura doou dois trios, e em 2018, apenas um, que a gente cedeu para o coletivo 'Mães pela Diversidade'."
De quem é o evento?
O que passou a acontecer nos últimos anos, de acordo com Viterbo, foi que os coordenadores das Políticas LGBTT da secretaria de Direitos Humanos e Cidadania deixaram de ceder os trios para a mitância, para dar para amigos. "Essas empresas que usufruíram do trio foram direto na Prefeitura. Só que o evento é da associação, não da Prefeitura. Ela não pode nos atravessar para fazer política."
Insatisfeitos com a gestão de Ivan Batista na coordenadoria, militantes LGBTT foram se queixar com a ex-secretária Eloísa Arruda. Depois de promover uma investigação interna, ela chegou a pedir a exoneração de Batista e chamou para ocupar o lugar dele o ativista Marcos Freitas. Porém, o prefeito Bruno Covas não assinou nem a exoneração de Batista, nem a nomeação de Freitas. Também não respondeu às mensagens enviadas pela militância por WhatsApp, nem a uma carta protocolada. Eloísa acabou sendo exonerada.
O Ministério Público de SP abriu um inquérito para apurar se houve improbidade administrativa na gestão de Ivan Batista. Ao procurador Wilson Tafner, da Promotoria do Patrimônio Público Social, Eloísa afirmou que não se deveria pagar por ingressos para ter acesso ao trio, e que esses carros deveriam ficar disponíveis aos programas e equipamentos de atendimento à população LGBTT+.
Outro lado
A Secretaria Municipal de Direitos Humanos informa que o Termo de Declarações citado, bem como outros questionamentos referentes ao assunto, foram encaminhados à Controladoria Geral do Município. As denúncias estão em apuração pela CGM, motivo pelo qual não podem ser comentadas até a conclusão dos trabalhos, quando serão tomadas todas as medidas cabíveis.
Sobre o autor
Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.