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Nos anos 80, ela liberou a entrada de solteiras e separadas na noite de SP

Paulo Sampaio

24/08/2018 04h00

Lydia Chagas, durante a entrevista ao blog (Fotos: Marcelo Justo/UOL)

Toda vez que se fala em feminismo, aparece alguém associando a militância a figuras radicais, agressivas e masculinizadas. Lydia Chagas, 92 anos, fez a parte dela sem precisar apelar para nada disso — apenas se divertindo. Sua contribuição para o movimento veio na forma de uma noite que ela criou para receber mulheres desacompanhadas, nos anos 1980, em um bar de São Paulo chamado L'Absinthe. Até ali, muitas casas noturnas ditas "sofisticadas" não permitiam a entrada de solteiras e divorciadas. Se elas quisessem beber um drinque ou jantar, teriam de arrumar um acompanhante do sexo masculino para levá-las — ou correr o risco de serem barradas.

Lydia decidiu tomar uma atitude quando ela mesma foi impedida de entrar com uma amiga no Plano's Bar, um dos mais famosos da região dos Jardins. Apesar de ter sido criado por uma mulher, a decoradora Sylvia Kowarick – que era muito moderna, por sinal –, o Plano's barrava a entrada de avulsas. Não é de espantar que o Baile Maria Cebola, como foi batizada a noite criada por Lydia, tenha se tornado um sucesso instantâneo.

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Sem revanchismos

O nome foi inspirado nos quadrinhos de Ferdinando Buscapé, criados em 1934 nos Estados Unidos pelo desenhista Al Capp. Na famosa saga de Ferdinando, que se passa no Brejo Seco, um dos episódios mais lembrados é o Dia da Maria Cebola, em que todas as mulheres da região travam uma corrida para ver quem agarra primeiro um solteirão para se casar.

No Maria Cebola do L'Absinthe, ninguém precisava correr atrás de homens, já que eles iam atrás das mulheres — e não eram barrados na porta. O feminismo praticado por Lydia não tinha nada de revanchista: senhores desacompanhados podiam entrar sem constrangimento.

Sabesp quem?

O posto de relações-públicas do bar foi passado a Lydia pelo colega Guncho Maciel, que estava se transferindo para o clube noturno carioca Hippopotamus. Ao conversar com Waldemar Issa, dono do lugar, Lydia disse que topava assumir a função, desde que pudesse comandar uma noite para mulheres. "Eu queria ajudá-las a vencer aquela discriminação horrível."

Realizado sempre às segundas-feiras, o baile atraía cada vez mais gente — mulheres e homens. "O número de frequentadores crescia a olhos vistos. Duplicava, triplicava a cada semana", lembra a administradora Elcy Belluzzo, 73 anos, que nos primeiros meses ajudou Lydia com as contas. "Ela não tinha experiência na parte administrativa. Um dia, me perguntou quem era Sabesp."

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Fogão lustroso

A própria Lydia tinha uma experiência pessoal traumática com o machismo. Seu primeiro marido, o engenheiro José Carlos de Figueiredo Ferraz, com quem se casou aos 18 anos e teve quatro filhos, a tolhia em todas as suas tentativas de se tornar minimamente independente. Apesar do empenho dela nas tarefas domésticas, Lydia era frequentemente desqualificada por ele: "Um dia, o José me viu acompanhando meu filho mais velho na lição de casa e disse: 'Como você pode querer ajudar o menino, se é uma ignorante que não sabe nem o que é raiz quadrada?"'

Em outra ocasião, Figueiredo Ferraz comparou o fogão "lustroso de tão limpo" da casa da mãe, com o da casa deles: "Nós estávamos jantando com as crianças, meu pai e minha mãe. Eu disse a ele que a moça que trabalhava com a gente cuidava de tudo, estava sobrecarregada, e que muitas vezes não tinha tempo para se dedicar exclusivamente à limpeza do fogão. Ele respondeu: 'Eu não admito ser contrariado. Suba para o quarto!' E eu subi."

Aos 32, tchau

Quando Lydia falava em ir embora, ele ria dizendo que em 24 horas ela o procuraria implorando para voltar. Tentava minar a segurança dela, afirmando que nenhum casal das relações deles iria acolher uma mulher desquitada e que ela seria excluída do grupo: "Eu pensava: 'Que grupo? Quem disse que eu quero ser acolhida por alguém das suas relações?"' E assim se passaram 15 anos.

Um dia, quando estava com 32, Lydia enfim disse adeus ao marido. E não voltou em 24 horas, nem nunca mais. "Ele fez tudo para me infernizar. Cortou dinheiro dos filhos, falava horrores de mim para eles, e levou os dois meninos para morar com ele, dizendo que eu não serviria para educá-los. Eu não servia pra nada", ela diz, rindo.

Velho? Então, tá

Figueiredo Ferraz, que mais tarde se tornou prefeito de São Paulo (1971-1973), ainda rogou praga. "Um dia, se você encontrar alguém (outro homem), vai ser um velho e você vai fazer papel de enfermeira." Errou feio. Logo depois da separação, em uma festa junina, um homem dez anos mais novo se encantou por ela. Recém-formado, o advogado José Gustavo de Macedo Soares era "um duro", diz Lydia, rindo, "não tinha nem carro".  Soares se tornou o segundo marido dela. Não havia divórcio ainda, e a lei brasileira não permitia que desquitados se casassem de novo. Como muita gente fazia à época, o casal oficializou o relacionamento em um cartório no Paraguai. Os dois  ficaram juntos apenas quatro anos, porque ele era muito ciumento e, naquele momento, tudo o que Lydia não precisava era de um homem para controlar seus movimentos.

Ao terceiro marido, o empresário bon vivant Mário Fix, ela atribui seu début na boemia. "Ele era uma pessoa maravilhosa, adorava estar no meio dos músicos, nossa casa vivia cheia. Ia Toquinho, Vinicius, Trio Mocotó, era tão divertido", lembra. Ela calcula ter ficado dez anos com ele. E por que o casamento acabou? "Porque nossa vida era música o tempo todo, e não dá para viver cantando."

Com o terceiro marido, Mário Fix, e amigos, em Acapulco (Foto: Arquivo pessoal)

Lydia afirma que seus filhos nunca a reprimiram em seus relacionamentos. "Diziam que eu poderia me casar quantas vezes quisesse, contanto que não tivesse mais filhos." Com a primogênita, Maria Marta, ela viveu a experiência mais dolorosa de sua vida. A adolescente não reagiu bem quando os pais se separaram e, para tentar ajudá-la, eles a enviaram para uma temporada de estudos em Paris. Foi pior. Lá, ela aumentou a dose do medicamento para emagrecer, tornou-se dependente e nunca mais conseguiu abandonar de vez as drogas. Quase 20 anos mais tarde, aos 33, depois de um casamento relâmpago, Maria Marta se suicidou. Lydia é econômica ao falar do assunto. Compreensivelmente, passa a ideia de que a vida precisava prosseguir.

Socialmente desamparadas

Antes de criar o Maria Cebola, Lydia vendeu produtos Avon e trabalhou por mais de dez anos com turismo, organizando grupos para viagens ao exterior. Até que foi convidada por um amigo para tocar órgão no restaurante dele. Ela já tinha o instrumento havia muito tempo. Ganhou quando era casada com Figueiredo Ferraz, que à época perguntou: "O que você prefere, um anel de brilhante ou um órgão?". Apaixonada por música, ela respondeu imediatamente: "Um órgão!"

Foi nessa primeira incursão pela noite que Lydia começou a sentir de perto a discriminação às mulheres. No caso das desquitadas, como ela, piorava muito. "Um dia, acordei pensando no problema das mulheres socialmente desamparadas. Sempre quis fazer algo para agregá-las. Não achava aquilo justo."

Whisky com guaraná

No Maria Cebola, Lydia bebia whisky com guaraná ("uma dose durava a noite toda"), enquanto entretinha os frequentadores com brincadeiras como a do "baralho do mico". Cada carta representa um bicho que, por sua vez, tem o seu par. O dono da figura do coelho, por exemplo, deve encontrar a "sua" coelha no salão. A psicóloga Heloísa Carneiro, 72 anos, se recorda do Maria Cebola com saudade. "O baile tinha uma proposta inédita, e o sucesso rápido mostrou que as mulheres estavam precisando de algo do gênero. Não havia nada igual em São Paulo, e nem vai haver. Os tempos são outros."

Entre o empresário Estêvão Bottini e o colunista Tavares de Miranda, promovendo o champagne René Lalou (Foto: Arquivo pessoal)

Guido Mantega

Muito discreta, Lydia garante que não tinha acesso a informações privilegiadas sobre os frequentadores. Apesar de sempre chegar ao Maria Cebola por volta das 21 horas e sair apenas depois que o último cliente fosse embora, ela jura que nunca soube de casos entre figuras já comprometidas. "É verdade que na época das férias, quando as mães desciam para o litoral com as crianças, o baile enchia de gente (risos)."

No auge do sucesso, quando o programa Fantástico, da TV Globo, esteve no Maria Cebola para gravar uma reportagem, uma das entrevistadas escondeu o rosto do seu "coelho" dizendo: "É que ele é casado kkk." (Ao fundo, nessa reportagem, muito jovenzinho, vê-se de passagem a figura de um personagem que ficaria famosíssimo nos governos de Lula e Dilma: o ex-ministro Guido Mantega).

Ta Matete e Regine's

Com a consagração, o Maria Cebola cresceu muito, e o L'Absinthe ficou pequeno para abrigá-lo uma vez por semana. Logo Lydia recebeu convites para estabelecer seu baile em casas noturnas maiores, como a lendária discoteca Ta Matete, na avenida 9 de Julho. Ela foi.

No Regine's, frequentado pela alta sociedade paulistana, ela recebia para almoço, aos sábados. "O Ricardo Amaral queria porque queria que eu fosse trabalhar com ele no Hippopotamus, mas eu não tinha ambição de me tornar tão grande, apenas de continuar fazendo algo personalizado", lembra. Depois de seis anos no Ta Matete e uma passagem pelo Saint Paul, outro bar que fez história na cidade, o baile voltou ao L'Absinthe.

Quarto marido

Um dia, um amigo de Lydia apareceu no bar com o executivo americano Charles Hussey, que estava em viagem de trabalho no Brasil. Hussey se encantou com Lydia. Deixou seu cartão e disse que voltaria. Ela avisou de saída que seria preciso esperar o fim da noite para dar atenção a ele. Para surpresa dela, Hussey voltou na semana seguinte, os dois começaram a sair e acabaram se casando. Ela chegou a se mudar com o marido número 4 para Chicago, mas não se adaptou.

Com o quarto marido, o executivo americano Charles Hussey (Foto: Arquivo pessoal)

Sem arrependimentos

Lydia Chagas recebeu o blog  em um lugar autodefinido "residencial sênior", em Higienópolis, bairro na região central de São Paulo. O nome é um eufemismo para asilo de luxo. Até dezembro, ela morava no apartamento que Hussey deixou depois da separação. "Eu queria ter vendido, para comprar um menor e morar nele, mas por uma série de motivos meus filhos acharam melhor que eu viesse para cá", diz ela, que não desgosta do residencial.

Muito elegante em um conjunto de calça e blusa preto e brancos, e um colar nos mesmos tons, ela diz que passou a depender de cadeira de rodas depois de levar oito tombos em um curto espaço de tempo, por conta de problemas no fêmur . Apesar da limitação física, e de já não escutar muito bem, ela se divertiu a valer rememorando o tempo do Maria Cebola.

Fica claro que, ainda que tenha pagado um preço alto pela independência, foi a partir dali que sua vida aconteceu. Isso explica por que ela não alimenta sentimento de culpa por ter feito sempre o que quis. Não seria nem justo, com uma mulher que ajudou tantas outras a colocar um fim na descortesia dos caretas.

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Sobre o autor

Nascido no Rio de Janeiro em 1963, Paulo Sampaio mudou-se para São Paulo aos 23 anos, trabalhou nos jornais Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo, nas revistas Elle, Veja, J.P e Poder. Durante os 15 anos em que trabalhou na Folha, tornou-se especialista em cobertura social, com a publicação de matérias de comportamento e entrevistas com artistas, políticos, celebridades, atletas e madames.